Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Carlos Augusto Nazareth – Rio de Janeiro – 04.12.2005
Infância universal
Novo espetáculo de Karen Acioly encanta as crianças
Em cartaz no Teatro do Jockey, o novo espetáculo de Karen Acioly, Infância, foge da dramaturgia tradicional, com começo, conflito, meio, fim, para traçar uma linha atemporal onde os acontecimentos obedecem a uma coerência particular. Partindo do universo da memória – não a memória da criança hoje, mas a memória da criança sempre, aquele presente no inconsciente coletivo -, a diretora de sucessos como Pianíssimo e Tuhu, o menino Villa-Lobos traz à cena o lúdico, a inocência, o prazer do jogo e da brincadeira.
E o público mirim se delicia com as cantigas de roda que talvez nunca tenha ouvido, mas que atingem a sua percepção. Este é o diferencial de Karen: ela se utiliza do sensível para tocar o poético e o lírico de sua plateia, que, literalmente, fica encantada durante os 50 minutos da apresentação. Assim, o espetáculo se constrói inspirado no funcionamento da própria memória: por meio de fragmentos, lembranças, cenas, falas, palavras soltas.
Infância mistura realidade e sonho a uma trilha musical muito bem realizada por Deborah Garcia e Cléo Boechat, que, ao piano, conduz o belo cantar do elenco. Este, apesar de ser composto por crianças pequenas e adolescentes, se revela bem preparado para a função, agindo com uma naturalidade absoluta e um despojamento cênico só possíveis a um grupo ao qual foi permitido o pleno exercício de liberdade em sua preparação cênica.
A situação dramática é o jogo, o teatro espontâneo que a meninada realiza desde sempre. A brincadeira se dá entre crianças e seus duplos, na fase da adolescência, e todos convivem no palco. Embora esta proposta possa não estar evidente todo o tempo, o jogo cênico explorado entre os dois grupos é suficiente para realçar a relação da infância e da juventude – dos mesmos personagens ou não, não importa.
Em cena, as crianças e adolescentes são personagens de si mesmos e não personagens com nomes, individualizados, já que o objetivo é falar da infância e da adolescência em seu sentido universal e atemporal. Se a dramaturgia, o elenco e a música criam este clima de encantamento, não são menos importantes os figurinos de Cica Modesto. Sobre o branco, com leve referência de época, mas sem definir ou delimitar estilos, permitem que ali estejam todas as cores e todas as épocas, a partir do estímulo de delicados e românticos figurinos.
O palco nu e o cenário, guardado muito poeticamente, ao fundo, por uma cortina feita de fios de pipoca, deixam entrever um pipoqueiro e sua carrocinha, de onde escapa o irresistível cheiro da infância: o da pipoca. O pipoqueiro, ao final, sai do palco e vai para o salão, numa integração sutil de sonho e realidade. A luz de Jorginho de Carvalho, traduzindo o lirismo de todo o espetáculo, banha com competência este sonho poético que Karen Acioly coloca no palco, mais uma vez, com talento.