Crítica publicada no Jornal do Brasil – Teatro
Por Yan Michalski – Rio de Janeiro – 07.06.1974
O Lenço Azulzinho e o Personagem Papel
Pode parecer exagero ou desproposito, mas acredito que o melhor espetáculo atualmente em cartaz no Rio – o melhor, no sentido de ser o mais criativo e poético, e de realizar com a maior coerência e inspiração a proposta teórica da sua concepção – talvez seja um espetáculo oficialmente enquadrado na categoria do teatro infantil: Histórias de Lenços e Ventos, de Ilo Krugli, que pode ser visto no Museu de Arte Moderna nas tardes de sábado e domingo.
Não pretendo abordar aqui a adequação do espetáculo ao publico específico ao qual ele se destina; Ana Maria Machado já se ocupou do assunto na coluna Aonde Levar as Crianças de sábado. Quero, apenas, chamar a atenção dos leitores para a notável qualidade do empreendimento visto como uma realização teatral tout court, independentemente do seu rótulo de espetáculo para crianças.
O que mais me impressiona em Histórias de Lenços e Ventos é o intenso sopro de teatralidade que o percorre de ponta a ponta. Teatralidade quer dizer, entre outras coisas, intensidade de vida levada às últimas conseqüências; e uma vida das mais intensas que possam ser imaginadas vibra em cada cena e cada elemento do espetáculo. Empostando magnificamente o seu trabalho dentro de um clima autenticamente mágico, Ilo Krugli da vida a lenços, bonecos, pedaços de papel e inúmeros outros objetos normalmente considerados como inanimados. Um dos pontos altos do espetáculo e o momento em que um pedaço de papel de jornal, que todos fomos convencidos a aceitar como um personagem chamado Papel, e imolado numa fogueira. Todos nós sofremos na própria carne a morte deste pedacinho de papel magicamente transformado em personagem. Mas a maneira poética pela qual esta morte e cenicamente proposta faz com que o sofrimento não se transforme em desespero: o personagem Papel morreu queimado, mas antes disso já vimos que basta um novo pedacinho qualquer de papel para criar um· novo personagem chamado Papel. Tão querido quanto o primeiro Papel. Tão querido quanto o lencinho-personagem chamado Azulzinha.
Obviamente, não só os objetos inanimados têm vida. Os atores também: eles atuam com uma vitalidade, uma simplicidade, um entusiasmo e alegria de encher as medidas. Todos estão exemplarmente unidos na mesma proposta interpretativa, mas pela sutileza maior do seu senso de humor o próprio Ilo Krugli e Silvia Aderne destacam-se ligeiramente dos demais, todos excelentes: Alice Reis, Silvia Heller, Caíque Botkay e Beto Coimbra.
A vida vibra também na exemplar musicalidade do espetáculo – musicalidade que se manifesta não só nos momentos em que as simpaticíssimas músicas estão sendo cantadas ou tocadas, mas também no movimento harmonioso dos corpos no espaço, mas também nos silêncios. A vida vibra também no caleidoscópio das imagens concretas e abstratas que ocupam nosso campo visual num constante vaivém. Numa certa hora, os lenços coloridos dançam roda, formando um quadro que eu gostaria de levar para casa e pendurar na parede, se não soubesse que tal transplante – que, dentro do clima mágico da festa me pareceria em tese possível – esvaziaria a riqueza da imagem, indissoluvelmente ligada ao que a belíssima composição coreográfico-plástica tem de movimentado, dinâmico.
O texto, se o analisássemos como elemento avulso, talvez não pareceria a altura da encenação. Ele é composto de pequenos flashes que, examinados cada um por si, não parecem fazer muito sentido, e correm o risco de não se ligar coerentemente uns aos outros. Mas à medida que o espetáculo se desenrola, as coisas começam a se amarrar perfeitamente, graças à complementação que a mensagem verbal recebe das riquíssimas insinuações plásticas, gestuais e sonoras. Por outro lado os diálogos têm uma carga de humor cujo charmoso nonsense não o impede de ser inteligentemente critico e irônico.
E toda esta pequena joia – que deveria ser mostrada pelo menos uma noite por semana ao publico adulto – foi feita com meios de produção extremamente modestos. Aqueles que costumam justificar a ruindade de determinados espetáculos com a falta de adequadas condições econômicas deveriam ser condenados a assistir a 10 sessões seguidas de Histórias de Lenços e Ventos. Eles perceberiam então que com inteligência, sensibilidade e muito pouco dinheiro pode-se fazer teatro da melhor qualidade.