As Histórias da Carochinha em Büchner

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A fatalidade persegue o casal amoroso, o príncipe Leonce do reino Popo e a princesa Lena do Reino Pipi.

Leonce e Lena se apaixonam um pelo outro, sem conhecer a sua verdadeira identidade. A cerimônia de casamento é realizada como uma mascarada pelo pai do príncipe, o rei Pedro.

A identidade é dissolvida quando Valério tira, lentamente, uma máscara após a outra apresentando o casal de namorados: … na verdade quero anunciar a essa alta e seleta sociedade que aqui chegaram dois autômatos mundialmente famosos … vejam, minhas senhoras e meus senhores, duas pessoas de ambos os sexos, um homenzinho e uma mulherzinha (…) nada mais do que arte e mecanismo, apenas papelão e engrenagens de relógio. Cada um tem, sob a unha do mindinho do pé direito, uma delicada, delicadíssima mola de rubi. Pressiona-se um pouquinho e o mecanismo funciona durante cinquenta anos.

Esses personagens foram tão bem construídos que não saberíamos diferenciá-los de outros seres humanos se não soubéssemos que é apenas papelão.

Em epígrafe à peça encontramos duas perguntas em italiano, que Büchner atribui a Alferi e Gozzi. E a fama? Pergunta o idealista Alfieri e o realista Gozzi retribui a questão: E a fome?

Mesmo na comédia Büchner não se esquece da fome. Os camponeses devem comparecer em trajes domingueiros ao casamento do príncipe. Büchner também zomba dos camponeses, cuja incapacidade para a Revolução ele já havia experimentado como estudante em Giessen. Os camponeses entregaram o seu panfleto Paz às choupanas! Guerra aos palácios! para as autoridades policiais dos palácios. Na emigração para Estrasburgo, à qual foi enviado devido ao panfleto, Büchner desistiu da Revolução. A miséria alemã lhe parecia irrevogável e só restava fazer zombaria, ainda que amarga.

O jovem revolucionário escreveu a seus pais que estavam em Darmstadt… me chamam de zombeteiro. É verdade, eu dou muita risada, mas não rio de como é um homem, mas sim do fato de ser homem diante do que nada pode fazer, e dou risada de mim mesmo, partilhando desse destino. Assim ri Leonce. A crítica social em Leonce e Lena não é a causa, mas apenas parte da melancolia dessa comédia que se pergunta sobre a impotência da vida antes da morte.

Lena, enamorada pela morte, recebe um beijo de seu amado sobre as pálpebras cerradas e Leonce diz: Então deixa que eu seja o seu anjo da morte. Deixa que os meus lábios, como asas, desçam sobre os teus olhos. Belo cadáver repousa tão docemente sobre a mortalha da noite que a natureza detesta a vida e se apaixona pela morte.

A morte como a sedução do primeiro beijo e o primeiro beijo como a sedução para a morte. A morte também domina o companheiro de Leonce, Valério, que decide beber para escapar às agruras da vida. A morte, poderosa, diante da impotência da vida. Leonce sofre pelo fato de existir e a essência da vida está para ele no tédio. Lena pergunta Meu Deus, meu Deus, então é verdade que devemos nos purificar através da dor? Então é verdade que a terra é o salvador crucificado, o sol a sua coroa de espinhos e as estrelas os pregos presos em seus pés e nas suas mãos? formando um eco com Danton.
Essa comédia deixa um gosto amargo de melancolia. O casamento principesco não fez com que a proximidade da morte fosse superada. O idílio é ironizado através de uma visão: Vamos quebrar todos os relógios, proibir todos os calendários e contar as horas e aas luas pelo relógio das flores, apenas pela floração e pelo fruto. E depois cercamos nosso pequeno reino com espelhos solares para que não haja mais inverno. No verão nos evaporamos até Ísquia e Capri, ficando o ano inteiro entre rosas e violetas, entre laranjas e louros.

A peça termina como comédia através da fuga para a utopia do conto de fadas no qual não há mais fome nem tédio. O universo do qual foram expulsos os calendários, os relógios, o inverno, não pertence a esse mundo. O fato de o idílio ser necessariamente um sonho é revelador da realidade… somente assim a comédia pode permanecer comédia. Mas a risada de Büchner permanece medonha, rindo da condição humana.

O que Büchner pensava da Alemanha de Metternich já está contido no nome de seus reinados: Popo e Pipi. Ele ironiza os pequenos estados, que podem ser vigiados da janela de uma sala. Os serviçais se divertem com a vida palaciana, mesmo para o presidente do conselho de estado a palavra real…é algo, que nada é; todos os súditos são convidados a partilhar os sentimentos de Vossa Majestade e o rei Pedro precisa dar um nó no lenço para lembrar-se de seu povo.

A metáfora dessa peça na qual se percebe uma nítida influência de Shakespeare propõe o maneirismo e gongorismo (…) minha cabeça é um salão de festa vazio, algumas rosas murchas e fitas amarrotadas pelo chão, violinos rachados a um canto. Os últimos pares tiram as máscaras e olham uns para os outros com olhos mortos de sono (…) todos esses heróis, esses gênios, esses idiotas, esses santos, esses pecadores, esses pais de família, não passam de requintados vagabundos. Mas por que logo eu tenho que saber disso? Por que não me julgo importante e visto esse pobre boneco com um fraque, colocando um guarda-chuva na sua mão, fazendo-o parecer um homem direito, cheio de utilidade, cheio de moral?

A questão formulada por Leonce: Você sabia, Valério, que mesmo o mais ínfimo dos homens ainda é tão grandioso que uma vida ainda é curta demais para amá-lo o suficiente? é retomada por Büchner em Woyzeck, um ser humano ínfimo, com quem nos cativa a ponto de o amarmos.

Woyzeck, soldado e barbeiro, faz a barba do capitão falador e bitolado. O Médico, o Tambor-Mor, e o Capitão podem mandar em Woyzeck enquanto que este pode apenas cumprir ordens, sem manifestar vontades.

Através de um paralelo que traçamos entre o conto dos irmãos Grimm, As Moedas de Estrelas, e a história que a avozinha conta para as crianças na peça Woyzeck, de Büchner, procuramos mostrar como a ordem do cosmo é deslocada em favor do caos, na dramaturgia de Büchner. A experiência trágica fundamental em Büchner é a transferência da tragédia da escala humana, do herói clássico, para o sentido último da realidade. A personagem é apenas um átomo, um fragmento dentro da tragicidade cósmica. Ela se perde em sua insignificância e todo seu esforço para saber qual é a sua culpa, resulta em absurdo no conto As Moedas de Estrelas.

Era uma vez uma menina que não tinha pai nem mãe. Era tão pobre que não tinha mais nem cama onde dormir. Nada mais tinha senão as roupas sobre o corpo e um pedacinho de pão que uma boa alma lhe havia dado. Mas era boa e piedosa. E por estar tão abandonada por todo mundo, foi para a floresta, confiando em Deus. Aí encontrou um pobre homem que disse: Me dê alguma coisa para comer, estou com tanta fome. A menina lhe deu todo o seu pãozinho e falou: Deus te abençoe. Aí veio uma criança que chorava e disse: Sinto tanto frio na cabeça, me dê alguma coisa para cobri-la. A menina tirou seu boné e o deu. E depois de ter andado ainda mais, veio uma criança que estava sem camisa e sentia frio. A menina deu-lhe a sua. E depois de mais um pouco uma outra pediu a sua saia e ela também a deu. Finalmente chegou na floresta e já estava muito escuro. Veio mais uma criança e pediu a sua camisa de baixo e a menina pensou. Já está escuro e ninguém vai me ver, posso dar também a camisa de baixo e tirou toda a sua roupa. E quando não tinha mais nada, de repente caíram as estrelas do céu e eram moedas brilhantes. Ela estava vestida com uma nova camisa de baixo que era do mais fino linho. A menina juntou as moedas e ficou rica para sempre.

A esse gênero a língua alemã reserva o nome de Märchen que geralmente se traduz com designações compostas como fairy tales, contes de fés, contos de fadas ou das carochinhas. Em seu sentido mais autêntico, esses contos nos falam da vitória de seres puros e frágeis, de crianças ou animais, de poderes malignos encarnados por bruxas ou adultos cruéis e desnaturados. Mostram-nos um mundo em que as coisas acabam satisfazendo o nosso sentimento de justiça e ética. A maior parte dessas narrativas desenrola-se em arcaicas florestas repletas de mistérios. Os irmãos Grimm coletaram esses contos populares alemães que têm origens remotas na Idade Média Kinder und Hausmärchen (Contos Infantis e Caseiros), Grimm 1912-1815, transmitiram assim um legado cultural através de uma linguagem a mais próxima da maneira de se expressar do povo. Este livro determinou, mais do que qualquer outro, a educação linguística e cultural das crianças alemãs. É o livro de maior impressão na Alemanha, depois da Bíblia de Lutero.

Na polêmica com o poeta Achim von Anim, Jacob Grimm faz uma distinção teórica entre contos populares e artísticos. Enquanto os contos populares nascem da tradição oral, exigindo do compilador a mais estrita fidelidade, os contos artísticos ostentam as marcas nítidas da elaboração subjetiva. Heinrich Heine emprega a palavra Märchen com um sentido irônico em 1844 em uma das mais importantes sátiras da literatura alemã intitulada Alemanha-Um Conto de Inverno. Para a literatura do século vinte, os contos dos irmãos Grimm constituem uma referência de primeira ordem, abrindo um amplo leque de relações intertextuais. Brecht alude ao cavalo falante Falada em seu conto A Moça dos Gansos, 1931, referindo-se ao esquartejamento de um cavalo por homens famintos – Oh Fallada que aí estais pendurado. Também Thomas Mann recorreu com frequência a esse gênero e em praticamente todos os romances de Günther Grass a citação dos Irmãos Grimm se faz presente. O exemplo mais expressivo é O Linguado que retoma em mais de seiscentas páginas o conto recolhido em dialeto pomerano O Pescador e sua Mulher.

Também em A Ratazana Grass se vale de personagens como Joãozinho e Maria para denunciar as catástrofes ecológicas do século vinte, em particular a destruição das florestas.

No conto dos irmãos Grimm, o universo está em harmonia com o homem. Deus dá sentido a esta cosmovisão, onde há valores estabelecidos – o bem e o mal. O homem faz sentido, ele deve praticar o bem para ser recompensado. Embora a menina esteja sozinha, ela está apenas abandonada. Sua situação existencial é transitória. Na sua confiança em Deus, vai para a floresta, buscar proteção na natureza. Embora esse ser humano esteja só, desamparado, na miséria, ainda existe a possibilidade de relacionamento com o outro através da caridade. E esta caridade é amplamente recompensada. Os atos humanos encontram eco na forma de uma instância metafísica que é o Deus cristão e a piedade.

Georg Büchner conserva o mesmo tom dos contos contados pela avozinha perto da lareira, o que faz com que o grotesco das imagens que cria, resultem ainda mais sarcásticas. Este tom se caracteriza pelo emprego de formas tiradas da Bíblia na tradução de Lutero, do uso de provérbios, da pobreza de vocabulário e do apelo constante à emotividade do leitor. Acostumados desde a infância com o tom desses contos, suas fábulas permanecem como mitos. Isto faz com que o grotesco das imagens criadas por Büchner atinja diretamente o âmago da nossa vida íntima, o universo simbólico que inconscientemente guardamos encerrado e à parte da realidade. No conto negativo, o que torna a narrativa ainda mais dolorosa é o tom do relato, feito pela avó.

De acordo com Rosenfeld (Rosenfeld, 1969) também as histórias da carochinha apresentam um mundo fantástico e estranho, sem que por isso se afigurem grotescas. Evidentemente porque são em si coerentes e seguem suas próprias leis que não entram em conflito com as da realidade empírica. O reino dos dragões e fadas não colide com o nosso mundo, tampouco como o das fábulas em que os animais falam como gente. Na arte grotesca, porém, há o entrechoque entre as duas esferas. O fantástico, monstruoso, macabro, excêntrico, obsceno invadem nossa realidade cotidiana, as suas leis de repente estão suspensas, a ordem habitual das coisas se desfaz. E daí, ante a alienação surpreendente do nosso mundo, que decorre a reação de horror, espanto, nojo e, por vezes, de riso arrepiado. Mesmo nos graus atenuados do grotesco, de tipo mais lúdico ou satírico, não podemos deixar de sentir um ligeiro estremecimento, ante o espetáculo descomunal de um mundo, cujas categorias básicas perdem a sua validade.

Em Woyzeck , o conto de Grimm é citado através de uma releitura, um processo de construção artístico intertextual, tão valorizado na pós-modernidade, mas inaugurado por Büchner em 1836.

Era uma vez uma menina pobre que não tinha pai nem mãe. Estavam todos mortos e não tinha mais ninguém no mundo. Todos mortos. A menina foi para o céu e a lua a olhava com tanta simpatia; e quando finalmente chegou na lua, ela era um pedaço de madeira podre. Aí foi para o sol e quando chegou, o sol era um girassol murcho. Quando chegou às estrelas, elas eram pequenos vagalumes dourados que estavam fincados assim como o pica-pau os espeta na ameixa brava. E quando quis voltar para a terra, a terra era um porto derrubado. E estava completamente sozinha. Aí ela sentou-se e chorou e até hoje está sentada e sozinha.

No conto de Büchner, o homem é reduzido à mera criatura. Ao seu redor tido está morto. A realidade é esvaziada de sua substância, os objetos perdem a sua função. Esta criatura, incapaz de se relacionar com a realidade, procura o sentido último para sua existência. Como na terra não havia ninguém, queria ir para o céu. Traduz-se aqui uma inquietação metafísica, na qual Deus é questionado e a própria natureza se desintegra. A lei que rege esse universo é a crueldade. Não é dada tampouco a possibilidade de voltar ao seio da terra, reestabelecendo um sentido para o real, pois nada determina ou explica essa realidade. A própria natureza se torna estranha, volta-se contra o homem. Só resta à pobre criatura, situada num mundo absurdo, sentar-se e chorar, sozinha, com a pergunta desesperada pelo sentido.

A inserção de canções, versos e contos de fadas é comum ao Teatro Épico. Através delas é enfatizado o movimento circular. A origem popular deste recurso utilizado por Büchner, que remonta às ruas e feiras, assemelham-nas a uma curta canção de roda. As canções provocam estranhamento, criando uma nova tensão diante das ações dramáticas, que as desmascara. Muitas vezes as canções servem de comentário aos acontecimentos, resultando em uma interrupção da ação dramática.

As cenas autônomas evocam se comparadas à dramaturgia tradicional, uma impressão de desordem formal. Mas esta suposta desordem acarreta, por sua vez, uma nova ordem. Embora aparentemente fragmentada e desordenada é desbravadora de novos caminhos, tornando possíveis inúmeras interpretações e leituras, permitindo a atualização constante da obra de Büchner.

Através do esvaziamento da significação ou do poder de comunicação da linguagem, Büchner permite a crítica da própria linguagem que se tornará particularmente fecunda na literatura contemporânea.

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Ingrid Koudela

Rio, 22 de março de 2004
Oficina, Jogo e Texto – materiais de pesquisa