Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 13.10.2018

Um espetáculo exemplar que radiografa a primeira infância e diz muito sobre os adultos

Hannà e Momò, da companhia italiana Principio Attivo, de passagem pelo Brasil, em três unidades do Sesc, fala com metáforas incríveis sobre a fase de disputa entre as crianças nas brincadeiras infantis, ao mesmo tempo em que escancara para os adultos os jogos de poder e egoísmo que culminam na vida de desencontros e desafetos do mundo contemporâneo. É imperdível, necessário, atual e delicioso de ver. Um infantil para todos.

Uma peça do chamado “teatro para bebês” ou “teatro para a primeira infância (0 a 6 anos)”, tão segmentada em seus objetivos de alcance e em suas temáticas, não seria melhor teatro se conseguisse também atrair o interesse de adultos, jovens e das crianças maiores? Mas isso é possível? Deve-se tentar fazer antes de mais nada um bom teatro e só depois pensar para qual faixa etária ele se destina? Ou, na hora de escrever uma peça infantil, o autor precisa de antemão saber qual idade quer atingir? Mas que segmentação é essa, afinal? O teatro para bebês teria apenas um cunho oportunista mercadológico? É modinha mundial?

Passa pelo Brasil um espetáculo da Itália que é um exemplo perfeito de como se pode, sim, fazer teatro segmentado por faixa etária que interesse também a todas as idades. É teatro para a primeira infância, mas que diz muito inclusive aos adultos, por sua acertadíssima e acurada escolha temática, humana e universal, sua estética atraente, o uso de poucas palavras, o carisma das atrizes, enfim, vários elementos que fazem da peça uma das mais digníssimas representantes do que se chama hoje em dia de “teatro para todos”.

Estou falando de Hannà e Momò, da veterana companhia italiana Principio Attivo. São duas magníficas atrizes em cena, Cristina Mileti e Francesca Randazzo, que também assinam a direção e a ideia/concepção do espetáculo, vivendo duas crianças de personalidades bem diferentes, brincando com varetas de bambu e outros objetos, em volta de um tanque redondo de areia. O trabalho de iluminação (Marco Oliani) é primoroso, instaurando eficientes climas e jogos de cores em torno da circunferência de areia.

O público se acomoda em torno do círculo, adultos em cadeiras, crianças no chão. Uma concepção cenográfica apropriadamente intimista e aconchegante. Antes de entrarem todos na sala, alguém avisa que será preciso impedir as crianças da plateia de entrarem no tanque de areia. Não pode. Na fila de entrada, ouvi pais reforçando a regra: “Você ouviu o que o moço disse, filho? Não pode entrar no tanque de areia, tá bom?”

Não pode. Eis que o espetáculo começa – e é justamente sobre isso. Não pode. Momò (Francesca Randazzo), desde o primeiro minuto, se impõe e define as regras da brincadeira à amiga que se aproxima, Hannà (Cristina Mileti). “Isso é meu, não é seu.” Ou: “Eu posso, você não pode.” Se a outra quiser ficar ali, terá do ser do jeito que Momò determinar. Momò é “a dona da bola”. Começa a desenhar na areia. Hannà também quer. Mas não pode ser do jeito que ela quer. Momò, enfim, cede e traça um risco na areia, impondo o limite. Um cantinho minúsculo para Hannà, e mais da metade da área do círculo para Momò.

Hannà é a criança sedutora, lúdica. Finge que cede às imposições da amiguinha mandona, mas testa o tempo todo os limites da outra. Tenta invadir a área ‘proibida’ da circunferência, propõe brincadeiras, inventa compartilhamentos. Não adianta. Momò, criança possessiva, não quer compartilhar nada. Ela só diz: “É meu.” Combinam de trocar alguns objetos. Hannà entrega o dela, Momò fica com os dois, descumpre o combinado. As crianças da plateia assistem a isso fazendo um tenso silêncio, remexendo-se irrequietas em seus colchonetes. Hannà é a mosca, brincalhona, atrevida e provocativa. Momò é o inseticida. Não é apenas uma metáfora: essa cena realmente acontece na peça. Momò dispara o inseticida e mata a mosca. E, em outra cena, quem vai literalmente estender a bandeira branca, com a ajuda da plateia? Hannà, claro.

Notem que primor de temática. Bonita, tocante, reveladora, humanista. Celebra o convívio, o encontro, o afeto. Ao mesmo tempo em que é uma peça que, com um olhar agudo e milimétrico, põe uma lupa em uma importante fase da vida das crianças (aprender a brincar junto, a conviver, a compartilhar, a seduzir, a comandar, a obedecer, a entender limites, a reconhecer diferenças), também tem uma dramaturgia toda metafórica e simbólica que diz muito sobre nós adultos, sobre os adultos em que nos transformamos. Adultos que pensam de forma diferente e não se entendem. Viramos libertários, abertos, afetivos, sedutores, brincalhões e criativos? Ou controladores, egoístas, possessivos, limitados, poderosos e dominadores? Ou somos um pouco de cada ‘lado’? Sem contar que esse tema da polarização pela disputa de poder, que, afinal, nasce mesmo desde as brincadeiras infantis, além de ser universal, está absolutamente atual neste Brasil das eleições presidenciais de 2018. O grupo italiano talvez não tenha ideia do quanto seu espetáculo, criado em 2013, cinco anos depois chega tão potente e atual no Brasil deste mês de tensões, disputas, desencontros, rompimentos e desafetos.

Os nomes Hanná e Momò, curiosamente, em japonês significam Flor e Pêssego. Foram escolhidos para marcar a ideia de transformação, crescimento, a semente que vira flor, que vira fruto. A alusão à cultura oriental não está só no nome das personagens. O uso de materiais como varas de bambu e o figurino inspirado em quimonos também nos lembram o Japão. Outra curiosidade é que a dramaturgia foi livremente inspirada em uma das histórias curtas do livro do escritor alemão Hermann Hesse, Pictor’s Metamorphoses: And Other Fantasies, que na Itália ficou mais conhecido como Favola d’Amore (Fábula de Amor). O ‘conto’ de Hesse também é de inspiração oriental.

Hannà e Momò foi apresentado em duas sessões no feriado do Dia da Criança (12/10), no Sesc Pinheiros. Logo mais terá duas sessões no Sesc Jundiaí, dentro da programação do Festival Um Novo Olhar de Artes para a Primeira Infância, no sábado (13), às 15h e 17h. E se despede do Brasil no domingo (14), às 10h, no Sesc Piracicaba