Fotos: Guga Melgar

Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 10.09.2018

“A gaiola com mais céus que já vi”

Essa frase, no programa da premiada peça infantil em cartaz no Teatro Vivo, diz tudo sobre um espetáculo perfeito que fala “do amor com asas” e prega o desapego como a melhor possibilidade de amar.

Há espetáculos que inexplicavelmente ficam ‘encantados’ na vida de um crítico. Você ouve referências incríveis, sabe que ganhou prêmios e… não consegue ver, por um motivo ou outro. Isso se deu comigo com A Gaiola, produção carioca de 2016, que se fartou de receber prêmios e elogios da crítica do Rio de Janeiro e até chegou a fazer uma temporada em São Paulo em janeiro de 2017, a qual não tive a chance de prestigiar por estar viajando. Pois neste último fim de semana a peça reestreou em São Paulo, no Teatro Vivo, para mais uma curtíssima temporada (não vacile e vá!). E eu – com medo de perder mais uma vez – já corri no primeiro dia!

Como previsto, saí extasiado. Ufa, tirei o atraso.

A Gaiola é baseado no livro de Adriana Falcão e adaptado para o teatro por ela mesma com a participação de Eduardo Rios. Adriana Falcão, para mim, é top das tops. Sua escrita é de uma poesia e delicadeza incomuns na dramaturgia nacional contemporânea. É fada das palavras. Diz o que a gente precisa ouvir, de um jeito sempre simbólico, metafórico, imagético. Nos toca fundo. Não entrega nada de bandeja para as crianças, ao contrário, as faz descobrir sozinhas, as faz tomar contato com as infinitas possibilidades do jogo dramatúrgico. Na obra de Adriana Falcão, os sentimentos pulam à nossa frente de formas inusitadas, potentes, sem facilitações nem moralismos mastigadinhos. Eu saio das peças de Adriana Falcão dando pulinhos dentro de mim, incontroláveis, descompassados, feito criancinha eufórica que acaba de ganhar seu doce preferido.

A impecável direção é da igualmente cativante Duda Maia, de quem elogiei recentemente – com esse mesmo entusiasmo – Contos Partidos de Amor, baseado em textos de Machado de Assis sobre o ciúme.  Duda veio da dança. Sabe organizar o corpo cênico como poucos diretores. Em A Gaiola, a ‘partitura corporal’ dos atores, por assim dizer, deveria ser alvo de estudos acadêmicos aprofundados. Tudo é muito bem pensado e coreografado. A distância entre os corpos, o momento em que se aproximam, agachar, levantar, pular, sentar, enovelar-se, dar as mãos, pendurar-se, estender os braços, virar de costas, mover o pescoço – cada gesto e cada movimento estão ali conversando o tempo todo com o texto, com as intenções da dramaturgia, enriquecendo a narrativa.

A peça é rica demais por ter camadas temáticas diversas. Pode simplesmente ser vista como uma fábula linear sobre o apego de uma menina pelo passarinho que despencou machucado em seu quintal e de quem ela cuidou até que ele se curasse. Só isso já seria encantador para mexer com o mundo imaginativo das crianças. Mas A Gaiola é muito mais. Foi escrito durante um processo de separação, de forma que não é à toa que fala de desapego, de ciúme, de posse, de despedida – e fisga os adultos da plateia com a mesma intensidade com que cativa as crianças pela fábula.

A gaiola surge na trama como forma de garantir a segurança do amor. Prender para assegurar-se. Prender para controlar. Prender para perpetuar o sentimento. Prender para proteger. Mas que doce ingenuidade da menina apaixonada… Como escreve Adriana Falcão no texto do programa, “até onde protegemos quem amamos, até onde essa proteção impede o outro de voar?” E completa o coautor Eduardo Rios: “Essa é a gaiola com mais céus que já vi. Cabe a cada um de nós vislumbrar o que aprisiona e o que liberta.” Assim, de dentro da gaiola, o passarinho se apaixona também pelo sol, pelos raios de sol – e por tudo o que eles significam em termos de liberdade e desapego. A menina, então, sente ciúmes. Entende que a gaiola não é garantia de nada. Que seu amor será mais amor se aceitar o sentido das asas. Pois não há amor sem asas. Asas bem abertas para tudo o que “pode ser”. E, puxa, como existem tantos e tantos “pode ser” em nossos caminhos…

Os dois intérpretes são nota mil, para dizer pouco. Tudo neles é pura sensibilidade, da voz ao gesto, do canto ao solilóquio, do dialógico ao narrativo. Acertam em tudo. Carol Futuro faz a menina completa, com todas as nuances e as inseguranças de uma garota descobrindo a vida. É isso. A atriz achou o tom perfeito da menina assustada em fase de descobertas. Pablo Áscoli é um passarinho sem caricaturas nem estereótipos. Cativante, capaz de arrancar suspiros da plateia com um mero olhar, um meio sorriso, um abraçar dos próprios joelhos. Nem Carol nem Pablo se infantilizam, felizmente. São personagens ao mesmo tempo complexos e comunicativos. Vivem intensamente o texto, isso é visível, mas com a sabedoria de permitir que a emoção esteja só na plateia, não neles. Isso é ser ator e atriz, a meu ver: veículos para a emoção da plateia, só da plateia –  o que não é pouco.

 

João Modé, Flávio Souza e Renato Machado dão seus recados com talento e competência, respectivamente em cenografia, figurinos e iluminação. Bom gosto extremo nos três quesitos. Sem exageros, sem realismos desnecessários em um espetáculo de natureza tão etérea. Parabéns ao trio. Destaco, ainda com mais e mais ênfase, a trilha sonora original de Ricco Viana, com as letras das canções a cargo dos dois autores, Eduardo Rios e Adriana Falcão. Repare em cada verso, em cada harmonia. É uma das trilhas mais deliciosamente certeiras das peças recentes que tenho visto.

Não faça como eu: não demore para ir ver A Gaiola. Corra, pois serão 50 minutos do mais puro êxtase.

Serviço

Local: Teatro Vivo
Endereço: Avenida Doutor Chucri Zaidan, 2.460, Morumbi, São Paulo
Telefone: (11) 3279-1520
Quando: Sábados e domingos, às 15h
Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)
Duração: 50 min
Capacidade: 274 lugares
Classificação indicativa: livre
Temporada: De 8 a 30 de setembro de 2018