A peça conta, sob óticas diferentes, uma história de amor.
Foto Marco Antonio Cavalcanti


Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 27.05.1995

 

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Duas Versões Para o Funk

Tudo começou na oficina de criação de espetáculo, quando o diretor Ernesto Piccolo e o autor Rogério Blat resolveram investir nove meses de trabalho num tema pra lá de polêmico. Reunindo no mesmo palco atores iniciantes, profissionais e legítimos funkeiros, a história da composição do espetáculo, por si só, sugere um bom enredo para futuras montagens. Fugindo de uma abordagem acadêmica, Blat e Piccolo foram a campo: frequentaram os bailes da galera, entrevistaram lideranças e convidaram alguns destaques, como o coreógrafo Fly, do grupo You Can Dance, e o dublê de cantor, ator e flanelinha do Bar Lagoa Djalma Souza, para participarem ativamente do processo de criação.

Os 39 atores em cena contam a história de amor de Kátia, uma típica adolescente da Zona Sul, e Luciano, um funkeiro de subúrbio. Ligeiramente inspirada no musical West Side Story, Funk-se segue a linha romântica das tramas do amor impossível até o final do primeiro ato. Usada com frequência e sempre com grande efeito dramático, a separação dos amantes pela morte estúpida de um deles comove a plateia. A empatia com o clichê, no entanto, dura pouco. Depois dos aplausos convencionais para o suposto final do espetáculo, a peça recomeça, sob o comando de um novo personagem.

Deus, em versão funk, desce ao palco resolve acaba com a hipocrisia das situações até então apresentadas. E decide reeditar as cenas, com promessa de que agora será contada “a verdade”. O recurso criativo do autor, porém, não tem a princípio, o efeito desejado. Blat foi tão eficiente e sutil na primeira parte da história que a segunda acaba sublinhando demais o enredo original. Trocar o amor verdadeiro de Kátia e Luciano por um jogo de ascensão social é no mínimo um ato de deslealdade para com o público que se envolveu na trama. Substituir a indignação da vizinhança, que observa de binóculo à violência dos bailes, por espectadores sedentos de sangue, é explicitar o óbvio. Afinal, os binóculos não eram usados gratuitamente. No entanto, o resgate da imagem da nação funk, composta não somente por vilões ou mocinhos, acaba justificando a versão final.

A direção de Ernesto Piccolo dá um acabamento excepcional à performance. Conduzindo seus atores e não atores com agilidade invejável, Piccolo concebe um espetáculo coeso, onde as cenas de grupo se destacam pela precisão com que são executadas. A trilha musical, recolhida em exaustiva pesquisa, a coreografia completamente teatral de Fly e os figurinos com citações a marcas conhecidas assinados por Ronald Teixeira fecham o trabalho em perfeita sintonia.

O espetáculo é um fenômeno assistido até o momento por um público de duas mil pessoas, que em sua maioria nunca tinha ido a uma casa de espetáculos. O sucesso do projeto gerou, como subproduto, um manual de sobrevivência urbana. É o teatro vivo em grande fase.

Funk-se está em cartaz no Teatro da Praia, as quintas (17h), sextas e sábados (19h) e domingos (21h30). Ingressos a R$ 5.

Cotação: 3 estrelas (Ótimo)