Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 07. 09.1979
Bumba-Três-Bois
Em Folia dos Três Bois, espetáculo infantil com texto e direção de Sylvia Orthof, em cartaz no Teatro do Sesc da Tijuca, é mais uma vez a utilização de recursos expressivos próprios à cultura popular que marca os contornos da encenação. Aqui, ao contrário do que acontecia em O Pavão Misterioso, de Benjamin Santos, o ponto de partida não é o romanceiro popular nordestino. São as festas populares, sobretudo o bumba-meu-boi, que fornecem à Sylvia Orthof os instrumentos plásticos e dramáticos com que procura recriar em cena uma visão de mundo em sintonia com a matéria prima popular de que se utiliza.
Não há propriamente uma história ligando os diferentes episódios que se sucedem em cena. Sabe-se apenas que há um casal de nordestinos em busca de um lugar onde seu filho pudesse nascer. E o que se assiste é a uma série de episódios quase independentes ligados apenas por um fio de enredo: a trajetória do casal. Além de um cenário sempre idêntico: um fundo negro e uma rede que atravessa o palco; uma escolha musical homogênea: cantigas retiradas do folclore brasileiro; e uma permanente referência à cultura popular que percorre todo o espetáculo. E, como o homem nordestino que lhes serve de molde, Zé e Das Graças estão permanentemente em trânsito. Como em qualquer estrada, por eles passam inúmeros personagens. E o espetáculo vai se construindo com base nos diferentes desdobramentos que sofrem os cinco atores em cena. Fátima Malheiros, João Moita, Gê Menezes, Robson Guimarães e Flávio Peixoto se substituem constantemente e dão origem a personagens diversos, cuja caracterização obedece a recurso bastante comum nos espetáculos populares. Tanto os bichos, como os reis e outros personagens que se colocam no caminho de Zé e Das Graças, se acham representados por meio de armações recobertas de saiotes e dotadas de máscaras no lugar da cabeça. Como se costuma representar o boi no reisado ou no bumba-meu-boi. Muito boas as caracterizações, roupas e máscaras, sobretudo da ema e dos bois.
Já o casal de nordestinos está representado por uma dupla de bonecos com rostos enormes que funcionam como caricatura do homem do interior e cujas roupas são vestidas em parte por João Moita e Fátima Malheiros, ambos com
Um bom desempenho. A caracterização do galo, por sua vez, se limita a alguns penachos e colares que se colam ao corpo do ator. Essa variedade de materiais e recursos utilizados na caracterização dos personagens acaba servindo para dinamizar o espetáculo. Repete-se uma mesma situação, o encontro de diferentes personagens na estrada, mas o aparecimento das figuras é sempre uma surpresa. Até figuras que já apareceram podem se revestir de diferentes características. Como acontece com o galo. Primeiro surge cheio de penas, alegríssimo. Depois, quase careca e desesperado porque uma rainha lhe teria arrancado as penas para contar quantas eram.
Se, entretanto, o aproveitamento do popular enriquece a encenação e a caracterização plástica dos personagens, parece faltar ao espetáculo algo que habitualmente não é muito necessário em festas, narrativas ou manifestações populares: uma ação dramática que catalize os episódios e a atenção do público. Quando apresentados diante de uma comunidade que já conhece de antemão as inevitáveis peripécias dos personagens e o rumo das ações, os espetáculos populares não precisam estabelecer contornos muito nítidos para as histórias. A partir do momento em que não se trata mais de uma manifestação popular pura e simples, mas de sua teatralização frente a uma plateia não mais ligada por laços comunitários e que, via de regra, desconhece as referências mobilizadas, faz-se necessária uma ação que determine um envolvimento maior da criança com o espetáculo. Isso é o que fica faltando, por vezes, em Folia dos Três Bois, espetáculo onde a representação caricatural dos bonecos não determina uma visão igualmente caricatural do universo popular que se converte em eixo da encenação. Ou, como dizem os atores diante dos bonecos: “Parecem conosco”. Entre o ator e o boneco, o popular e sua representação teatral, inúmeras diferenças, que encontram, no entanto, uma combinação cênica interessante em Folia dos Três Bois.