Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 08.06.2018
Dois irmãos afetuosos que a intolerância desuniu
De olho no público jovem, Cláudia Jordão e sua Cia. do Flores encenam a segunda parte de uma potente trilogia sobre identidade de gênero, Flores Vermelhas – um espetáculo imperdível sobre a influência religiosa e dos discursos conservadores nos rompimentos afetivos familiares.
No finalzinho de 2016, entrou em cartaz no Centro Cultural São Paulo uma peça de nome Flores Amarelas, que encantou pela honestidade com que tratava do sério tema da identidade de gênero, a partir da história de uma mãe praticando a compreensão e o amor pelo filho trans. Era o primeiro espetáculo de uma futura trilogia a cargo da Cia. das Flores, de São Bernardo do Campo, companhia fundada em janeiro de 2015 por artistas do ABC paulista.
Eis que o CCSP volta a abrigar o mesmo grupo, com a segunda parte da trilogia, agora Flores Vermelhas. E, assim, pude constatar mais uma vez a garra dessa trupe, o estilo e a linguagem que a companhia já começa a amadurecer. Vendo a segunda peça, constatamos que a Cia. do Flores quer deixar uma marca, ter uma cara própria, em vez de fazer de cada projeto algo totalmente distinto do anterior. Ao contrário, em Flores Vermelhas, não só por ser o mesmo grupo e a mesma temática LGBT, mas há muita coisa de Flores Amarelas, ou seja, já se identificam características persistentes nas duas peças, marcas que dão consistência inclusive à estética do grupo.
Por exemplo, a falta de pressa para entrar na história principal. Na peça anterior, Flores Amarelas, a diretora e dramaturga Claudia Jordão propositalmente fez a trama de amor entre trans e cis demorar a acontecer no espetáculo, que tinha músicas, danças e até o momento em que os atores serviam um doce de cacau para a plateia. Isso tudo foi dramaturgicamente calculado por Cláudia Jordão, que queria, de fato, surpreender o público, ou seja, primeiramente envolver a plateia de forma poética para depois apresentar o conflito da identidade de gênero.
Em Flores Vermelhas, tudo se dá da mesma forma, com calma, e de novo vira um grande acerto. Há muita música boa na trilha, preparando o público para a temática (Direção musical de Pitty Santana e Composição musical de Alef Barros). Há uma morosidade inteligente do elenco (Alef Barros, Alessandra Moreira, Fran Rocha, Josy Santana, Lucas Vedovoto, Osni Rossi), sem pressa de se ‘apossar’ do cenário, uma lentidão até plástica para se entrar com reverência e respeito na ambiência criada com panos, varas, bacias, barris e baldes (cenário de Mauro Martorelli). E, de novo, os atores servem a plateia à beira do fogão aceso, oferecendo café e um prato quente chamado ‘afogado’, à base de carne. Assim, com segurança, a diretora e dramaturga imprime ao grupo um ‘jeitão’ que parece ter vindo para ficar. Até os figurinos remetem ao espetáculo anterior, com seus tons crus e tecidos leves (figurinos de Josy Santana).
Quando surge a história principal, que vai sendo montada aos poucos na cabeça da plateia, vemos que se trata de novo de retratar a questão de gênero no seio de uma família, sob o ponto de vista familiar. A clara intenção é construir no palco um diálogo com os jovens LGBT de hoje, para falar do forte papel da influência religiosa e dos discursos conservadores nos rompimentos afetivos familiares. Rompimentos afetivos. Uma cidade não pode mais ter manifestações de rua, como o carnaval ou a Festa do Divino, pois o padre proíbe. “As moças da cidade saíam dos bailes, ainda com confetes no cabelo e iam comungar. Segundo o Supremo, se houver carnaval, o rio tomará conta da cidade como castigo pela desobediência.” E isso se deu. No terceiro dia de carnaval de determinado ano, veio uma enchente que acabou com a cidade. A Igreja aproveitou e incorporou à tragédia um aspecto religioso-moralista. “Desde então se passaram 30 anos, e a população não brinca mais o carnaval, pois além do castigo da enchente, acreditam que folião pode ganhar rabo e chifre do demo”.
Numa família formada por pai, mãe e dois meninos, o pai é justamente compositor de marchinhas. Tragédias se sucedem – não vale a pena contar aqui para não virar spoiler desnecessário neste texto. O fato é que um dos irmãos é gay e o outro, o mais velho, ao perceber, vai hostilizá-lo, pressionado pelo meio, apesar de todo o afeto que permeou o crescimento de ambos. Uma das cenas mais impactantes da peça – há tempos eu não via no teatro algo tão potentemente violento – é quando um coro de cidadãos atira barro no menino afeminado, gritando coisas do tipo: “ – Diz pra ele que ele é nojento/ – Diz pra ele que você vai sentir vergonha/ – Diz pra ele fazer teste de aids / – Diz pra ele separar o prato, o garfo e o copo / – Diz pra ele separar toalha e escova de dente / – Diz pra ele que todos estes que dão a bunda, serão responsáveis pelo fim da família… / – Diz pra ele que bicha com bicha não é normal / – Que o reto não foi feito pra ser penetrado./ – Diz pra ele que ele não poderá ter filhos / – Diz pra ele que ele será responsável pela extinção das palavras pai e mãe / – Diz pra ele que os pais são incapazes de amar um filho viado. / – Diz pra ele que é melhor que um filho morra num acidente do que apareça com um bigodudo por ai ./ – Diz pra ele que não se deve ensinar para as crianças que ser gay é normal / – Diz pra ele que dá nojo / – Diz pra ele que gay é como punheta / – tem que bater mesmo! / – Diz pra ele que ele é assim porque não apanhou em casa / – Diz pra ele que tá merecendo porrada/ – Diz pra ele virar homem de verdade / – Diz pra ele que você o odeia / – Diz pra ele que tem nojo dele.”
O irmão mais velho realmente diz tudo isso. E mais: “E assim eu aprendi a ter ódio e nojo de você! De hoje em diante esquece que tem irmão, esquece que tem família, esquece que você fez parte disso tudo, porque eu acabei de me esquecer…” Enquanto o surpreso protagonista, sensível e assustado, só consegue repetir, com dor: “Não consigo me livrar da culpa de… ter gostado daquilo”, referindo-se à sua sexualidade diversa da do irmão. A repulsa da população ao menino ‘diferente’ vem muito apropriadamente pela boca da cozinheira: “Por essas banda de terra, homi só si deita com muié, e muié só si deita cum homi. Esses homi da roça fica com a espingarda a postos, com dedo no gatilho e aperta mesmo, sem titubiá.”
O texto de Claudia Jordão é pura poesia dinamitada. Tem uma delicadeza estrutural que escava dentro de nós, aos poucos, um buraco fundo de indignação pela intolerância, pela ignorância, pela crueldade. Por que uma peça assim é importante para o público jovem? Justamente por seu caráter histórico sociológico, por assim dizer. A juventude atual precisa sempre ser lembrada de que, se hoje há conquistas comportamentais que a faz ser livre em suas escolhas, é porque antes, ao longo da história da humanidade, houve muitas vítimas de preconceitos, como o menino gay de Flores Vermelhas.
Uma peça como essa, nesse período de ameaça de retrocesso nos costumes da população brasileira, vira programa fundamental, para que se anulem essas forças conservadoras retrógradas de uma vez por todas dentro das mentes da nova geração. Claudia Jordão dá esse recado sem agredir ninguém, sem berrar militâncias, sem impor opiniões. Ela simplesmente mostra uma família vitimada pelo preconceito e, em seguida, sugere como arma de combate o mais puro afeto. Tudo de que o Brasil de hoje está precisando: de afeto. Pronto: vira peça obrigatória para você ir com toda a família, sugerir na escola, envolver educadores. O teatro praticado com potência transformadora.
É genial como a dramaturga diretora e seu grupo, em processo colaborativo, utilizam com força a imagem do barro em toda a peça. Não só na doída cena do coro que ataca o garoto protagonista, mas sobretudo como referência religiosa entranhada no inconsciente do público. Em essência, ali está só um menino, com medo dos castigos. Como tantos meninos e meninas que a gente conhece ou já conheceu. Um menino que guardava as vontades e soltava os medos. Como o medo de virar barro de rio. Um menino e seus silêncios, “silêncios que serão levados para o fundo do rio e que vão doer durante uma vida inteira”, como o sensível personagem diz à certa altura da peça, comovendo a todos.
Para finalizar, reproduzo o lindo trecho que justifica o título da peça – e tem a ver com o pai dos meninos, o compositor Vicentino. “Vicentino era homem de superstição e um dia disseram pra ele que flor vermelha atraía amor… Então ele nunca deixou de trocar as flores dos vasos, porque se tinha coisa que Vicentino sempre fez questão foi de que o amor entre pai e filho, pai e mãe, mãe e filho, e filho e irmão, fosse coisa pra vida toda… Ele dizia que toda vez que as flores vermelhas murchassem, era hora de rever o amor pela família… por isso tinha que trocar a flor murcha por flor nova… e os filhos de Vicentino eram amigos, irmãos amigos, dessas fraternidade em, que homem beija homem, dá abraço apertado, sente peito no peito e tem certeza de que o cheiro de um vai estar sempre no colarinho da camisa do outro depois de um beijo de bom dia.” Os dois meninos cresceram assim. Dois homens. Dois irmãos que a ignorância e a intolerância conseguiram desunir, enquanto murchavam de vez as flores vermelhas da vida, sem tempo de serem trocadas.
Serviço
Local: Centro Cultural São Paulo
Endereço: Rua Vergueiro, 1.000 – Paraíso – São Paulo
Telefone: (11) 3397-4002
Quando: Terças, quartas e sextas às 20h
Duração: 60 minutos
Ingressos: R$ 20,00 e R$ 10,00 (meia)
Temporada: Até 15 de junho de 2018