Crítica Publicada em O Globo
Por Clovis Levi, Rio de Janeiro, 03.05.1980
O Patinho Feio da Cor
A montagem de Flicts, de Ziraldo e Aderbal Jr., já começa trazendo um fato auspicioso: a reabertura do Teatro Princesa Isabel, de propriedade de Orlando Miranda, para as atividades do teatro infantil. Salvo erro, desde que Orlando Miranda assumiu a direção do Serviço Nacional de Teatro, e onde, indiscutivelmente, muito fez pelo teatro infantil, essa é a primeira vez que ele concorda em alugar seu teatro para uma peça dedicada às crianças. Agora, e felizmente, já não se pode mais acusar Orlando Miranda com a frase “faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”. Agora fica tudo mais coerente.
Mas Flicts não é importante apenas porque conseguiu reabrir o Princesa Isabel. Ele é importante porque traz, para a criança brasileira, um espetáculo em que o diretor, José Roberto Mendes, acertou em cheio: Flicts é uma encenação alegre, gostosa, visualmente muito atraente, que traz ao espectador um interesse crescente e mantém sempre um ótimo pique. O que poderia ser negativo, partir do disco para a encenação, quando o natural é que se faça o contrário, tornou-se um dos fatores determinantes do acerto dessa nova montagem. A música de Sérgio Ricardo sustenta e levanta o espetáculo do início ao fim. Utilizando vários gêneros musicais, choro, batuque, samba, valsa, marcha-rancho, Sérgio Ricardo criou uma música para o palco, música com resposta imediata da plateia. E toda a parte musical é ainda muito bem defendida pelo trabalho do coreógrafo, Deoclides Gouveia. Enfim, vemos uma coreografia criada para o teatro infantil em que o autor não se limitou a fazer o óbvio, adotando soluções que os espectadores já viram em inúmeras outras coreografias. Ou seja: mera repetição, sem qualquer imaginação ou esforço. A coreografia de Deoclides, baseada no texto, movimenta os atores enquanto dá continuidade dramática à peça. Em Flicts a ação não para a fim de que entre um número musical. Em Flicts o número musical traz novas ações, novas informações para o espectador. Único senão da parte musical: o elenco não está mantendo uma unidade no seu trabalho: às vezes, todos cantam com o play-back; outras vezes, cantam apenas dois ou três.
O trabalho de Sérgio Silveira e Lídia Kosovski, nos figurinos, adereços e cenários, é outro acerto total, assim como a iluminação de Jorginho de Carvalho.
Flicts conseguiu aquilo tão procurado e nem sempre encontrado: um diálogo criativo entre todos os setores que compõem a feitura do espetáculo. O elenco alegre, simpático, consegue estabelecer imediata comunicação. Destacam-se Lígia Diniz, soltíssima na voz e no corpo; Alby Ramos, bom nos seus vários papéis, apesar de se perder muito texto do J.Faber; e Maria Gislene, que consegue transmitir a fragilidade e a busca de Flicts. Seu trabalho tem verdade. Discordo apenas da linha do personagem, que sorri demais depois de tanta rejeição. Para o Flicts de Gislene, não há um drama progressivo. Parece que ela sai de uma rejeição, apaga tudo e entra firme em nova tentativa: sem marcas, sem feridas, sem passado. Apenas com sua vontade de ir à luta. Não me parece uma linha muito coerente: teria sido estabelecida pela atriz ou pelo diretor?
Flicts, no Princesa Isabel, é um belo espetáculo. O texto trata daquele ser diferente que procura localizar-se e que, nesta busca, vai sofrendo rejeições em cima de rejeições, até chegar ao encontro, Patinho feio da cor. Flicts, sem identidade e sem referências, consegue, enfim, achar o seu lugar. Levem seus filhos. Vale a pena.