O vermelho (Elvira) e o amarelo (Lígia) não aceitam Flicts

Flicts pede carona ao astronauta na viagem para a Lua

Crítica Publicada no Jornal O Dia
Por Armindo Blanco – Rio de Janeiro – 18.05.1980

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Uma Festa em Liberdade

Em sua volta ao mundo à procura de um lugar próprio, que não implicasse a anulação da sua maneira pessoal e intransferível de ser e de estar no contexto, Flicts, uma cor nova e solitária, tentou emprego na bandeira portuguesa, entre o verde e o rubro. Foi sumariamente recusada: a tarefa básica do salazarismo, que durante mais de 40 anos imobilizou Portugal, consistia em evitar qualquer tipo de mudança.

Agora, Flicts, talvez a peça para crianças mais representada no Brasil, está de volta à cena, sempre aos sábados, 17h, e domingos, 16h, no Teatro Princesa Isabel. E com certas diferenças, umas quase radicais, musicada por Sérgio Ricardo virou literalmente opereta, outras de circunstâncias: a cor errática já não busca abrigo na bandeira portuguesa, mas, e igualmente em vão, na brasileira. Donde se poderá inferir que a ojeriza às mudanças fez como milhões de portugueses e também emigrou.

Todos São Flicts

Flicts, texto de Ziraldo, teatralizado por Aderbal Júnior, resume as biografias destes dois artistas. Ziraldo também veio de Caratinga para o Rio em busca de um lugar ao sol. E Aderbal Júnior é um teatrólogo nordestino, formado na escola da Comédia Cearense, que até hoje tem experimentado dificuldades de afirmação da sua individualidade no cenário artístico do Sul Maravilha.

Como Flicts, ambos sofreram as agruras da rejeição. E continuam sofrendo: recentemente, Ziraldo foi vaiado durante um festival de música popular, no Anhembi; e, entre outros percalços, afinal comuns na vida de quem tem uma visão particular do mundo, foi agredido a bolsadas por um intratável grupo de feministas, num debate público. Aderbal Júnior acreditou num projeto inteiramente novo no âmbito da produção teatral corrente: encenar A Morte de Danton, de Buchner, num subterrâneo do metrô, quando os trens elétricos ainda não estavam trafegando. Conhecem o mesmo insucesso que marcaria a diferença de outros trabalhos seus, como os que assinou em Crimes Delicados, de José Antônio de Souza e Em Algum Lugar Fora Desse Mundo, de José Wilker. Para pagar as contas de luz, confessa ele, o que lhe vale é que sempre resta algum pequeno saldo de direitos autorais na SBAT, por conta do incansável Flicts.

Ambos, portanto, poderiam dizer, como Flaubert, de Madame Bovary: Flicts sou eu. E não só eles: Sérgio Ricardo, compositor com o seu lado de maldito, também é Flicts; José Roberto Mendes, o diretor desta remontagem, continua esperando o reconhecimento da comunidade artística. Parece suficientemente amadurecido, embora jovem, para encenar peças para adultos, mas até agora não teve vez; e no elenco, o que não faltam são os Flicts como Alby Ramos, Daniela Santi, Ligia Diniz, Elvira Rocha, que esbanjam talento em cada novo trabalho, mas sempre acabam retornando à margem do grande do grande rio que deságua na foz da estabilidade profissional.

Talvez por isso, a nova encenação de Flicts pode ser considerada a mais calorosa e envolvente de todas. Sem dúvida, a bela música de Sérgio Ricardo, que segundo o autor, “nasce no choro, engatinha na marcha-rancho, cavalga em cantigas violeiras, procura em valsa e batuque e cai na revolta do samba”, é em grande parte responsável pela irresistível comunicabilidade do espetáculo. Mas o rico cromatismo do cenário, figurinos e adereços de Sérgio Silveira e Lídia Kosovsky (cada ator assume uma cor, em contraste com o vago cinza de Flicts), a alegre encenação de José Roberto Mendes, límpida e fluente, e a entusiástica entrega do elenco, dão à Flicts a transparência de uma festa em liberdade, como convém a um texto que, apesar de se referenciar ao mundo dos adultos, dividido em compartimentos estanques e cada vez mais hostil para quem procura um primeiro emprego, se destina a plateias de palmo e meio, naturalmente infensas ao drama rasgado ou à tônica pessimista.

Curtição Geral

Mesmo com esta destinação restrita, Flicts não deixa, porém, de oferecer regalo e proveito aos adultos acompanhantes. É, aliás, o que acontece habitualmente, quando os críticos especializados, todos adultos, gostam de uma peça dita infantil. Não creio que seja possível resgatar, depois dos 30 anos, a ótica que tivemos quando crianças. Assim, se estou aqui ocupando o meu espaço com uma peça para plateias infantis, é porque, enquanto adulto, ela não me aborreceu, antes me proporcionou um feliz reencontro com aquele doce tempo em que as ilusões ainda eram possíveis e a fantasia escorria como leite e mel no paraíso, dando contornos reais à viagem de Flicts à lua num foguete de pano ou ajudando-o a enfrentar os transes da sua diferença essencial sem acumular azedume nem mergulhar na desesperança.

Mais ainda: a peça nos ensina que a nossa imaginação pode fabricar qualquer tipo de foguete para alcançar as luas do cotidiano, aparentemente inacessíveis por três dos imensos morros que são as instituições e o conformismo dos que a elas se ajustam. E, além disto, as moças do elenco – Carla Camuratti, Tereza Mascarenhas, Cláudia Fares e as outras já citadas – são lindas e versáteis; Alby Ramos prodigaliza o seu humor circense em vários papéis como o astronauta e o feroz Johann Faber, que fez da caixa de cores mais um clube fechado; e Maria Gislene é um Flicts luminoso, cuja individualidade solar se propõe como um desafio vital à inércia.