Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 30.04.2019

Pequenices – Minipeça Viajante de Dança. Foto: Carolina Cândido

Pequenices – Minipeça Viajante de Dança. Foto: Carolina Cândido

Pequenices – Minipeça Viajante de Dança. Foto: Carolina Cândido

Pequenices – Minipeça Viajante de Dança. Foto: Carolina Cândido

Malassombros: Contos do Além Sertão. Foto: Thais Eduarda

Malassombros: Contos do Além Sertão. Foto: Thais Eduarda

Malassombros: Contos do Além Sertão. Foto: Thais Eduarda

Gaúchos e pernambucanos fazem bonito em festival mineiro

Estive por duas noites em Belo Horizonte, convidado do Festival Nacional de Arte para as Infâncias, o Fenapi (14 a 21/4), e tive o prazer de conhecer dois grupos que são de fora do eixo Rio-SP: um de Porto Alegre (RS) e outro de Arcoverde, no interior de Pernambuco. Leia aqui meus comentários sobre os dois espetáculos. Festivais nacionais são muito importantes para a gente ficar sabendo como as heroicas companhias espalhadas por esse Brasilzão profundo têm encarado o desafio de atrair crianças para o teatro. Boa leitura.

Uma gaúcha que conjuga o verbo ‘criançar’

Os riscos e as delícias de se realizar um espetáculo interativo de dança para crianças

Especial para O FENAPI – BH

Dança para crianças é uma vertente que considero ‘encantatória’ na vasta gama de possiblidades das artes cênicas. Há sempre uma multiplicidade de recursos e linguagens envolvidos na dança: expressão corporal, coreografia, movimento, música, interpretação, mímica, jogos, brincadeiras, cores, transformações, manipulações… Alguém importante já disse: dança é a arte mais completa.

Pequenices – Minipeça Viajante de Dança, de Porto Alegre (RS), apresentado no Palácio das Artes – Sala João Ceschiatti – vai por essa linha da arte total. Tudo ao mesmo tempo agora – e para os pequenos! Trata-se de uma realização do projeto “Pequenices: Arte e Educação”. É um trabalho assinado principalmente pela jovem Fernanda Bertoncello Boff – concepção, criação e interpretação. Ela é simplesmente alguém capaz de escrever a seguinte pérola: “Por que criança não é verbo, se criança é movimento?” Como não se apaixonar de cara por uma artista que conjuga o verbo criançar?

Fernanda concebeu um espetáculo interativo. Crianças ficam com ela no palco o tempo todo. O que muito me impressionou foi o roteiro muito bem alinhavado, muito bem pensado. E sutil. Mais do que dar pinceladas nos princípios da dança, na minha avaliação, o que Fernanda criou foi uma pérola de iniciação à arte teatral, quase um “passo a passo” de como produzir uma peça de teatro.

Explico. Primeiro, ela conversa com a plateia. Faz perguntas. Estimula a participação. Usa a palavra. Teatro é palavra. E deixa claro que há espaço para o rompimento imediato da quarta parede. Depois, introduz os figurinos, fazendo cada criança participante vestir um cinto e uma capa com capuz. Aí começa a propor movimentos. Em seguida, a música. Logo entra um elemento cenográfico, um mapa, uma espécie de máquina do tempo – e assim a peça dá noções do quanto a cenografia também precisa estar presente. Mais tarde, há o momento design de luz. Efeitos de iluminação compõem uma cena inteira. Há também o infalível momento em que um grande pano/véu azul vira mar. Teatro é imaginação. Não falta nem mesmo a proposta de trabalhar com as crianças as máscaras faciais: vamos fazer caretas horríveis para a plateia? Ou seja, um roteiro que pensou em tudo.

Fernanda faz tudo isso aos poucos, sem pressa, com calma de quem está dando uma aula sem as chatices explícitas de uma aula. Sem perceberem, inconscientemente, as crianças tomam contato com todas essas partes integrantes de um espetáculo, uma a uma: texto, luz, figurino, cenário, trilha, coreografia… Pequenices é, sem sombra de dúvida, antes de mais nada, uma sutil atração didática. De agora em diante, toda vez que me perguntarem sobre bons espetáculos que dão noções básicas para as crianças sobre a arte teatral, citarei Pequenices.

Mas não posso deixar de fazer três ressalvas que considero bem importantes. Fernanda Bertoncello Boff, no final, ao sentar para conversar com a plateia, faz questão de contar que, em eventos de amigos, ela sempre ficava com as crianças de forma espontânea – e começaram a brincar que ela era “a recreacionista” das festas. Maravihoso. Mas uma recreacionista não é, de forma alguma, uma atriz. Sinto falta em Pequenices de ver mais a Fernanda atriz, e isso seria talvez facilmente resolvido se houvesse um diretor convidado, alguém que dirigisse de fato a ‘recreacionsita’, que fizesse dela mais atriz e menos uma amiga brincalhona das crianças.

A segunda questão é que, na apresentação em que estive presente, com 15 crianças em cena, Fernanda perdeu o controle ao constatar que seu “elenco” mirim desandou a fazer o que queria no palco, tendo ela que quase gritar para restabelecer a ordem. Eis o perigo paradoxal do teatro infantil interativo: dar muita corda à espontaneidade e depois ter de segurá-la a favor do bom andamento do espetáculo… Há que se achar esse equilíbrio, e fica claro que Fernanda está no caminho certo, aprendendo a cada sessão.

E o terceiro ponto é que, a partir de determinado momento, o espetáculo de Fernanda perde a plateia, esquece da plateia… Como se deixasse de lado o fato de ser um espetáculo que também está sendo apenas visto por quem ficou nas poltronas. Isso é imperdoável, a meu ver. Tem de ser dinâmico e movimentado na interação com as crianças no palco, mas também tem de ser atraente para os adultos e para outras crianças que escolheram não subir no espaço de encenação. Senão, viramos meros pais que levamos as crianças para brincar com monitores no shopping e, sem envolvimento nenhum, sentamos impacientes e passivos, à espera do final da brincadeira.  Falta, portanto, em Pequenices esse cuidado em ser atraente não só para quem está no palco. Precisa ser vistoso e espetaculoso também para quem escolheu só assistir. Pequenices é lindo de se ver em muitos momentos, sem dúvida. Mas não o tempo todo.

Grupo do interior pernambucano explora o medo com bom humor

Peça de rua reúne tradicionais contos de ‘malassombros’, típicos do sertão nordestino

Como é importante fazer teatro de rua com a meta de recuperar histórias de tradição oral! É lindo ver o teatro contribuindo para que contos e recontos populares atravessem gerações. É por isso que aplaudo de pé o grupo Teatro de Retalhos, da cidade de Arcoverde, em Pernambuco, que acabo de conhecer, mas já há dez anos se dedica à pesquisa e à montagem de espetáculos independentes sobre o sertão nordestino e sua cultura muito peculiar.

Vi na ‘cult’ Praça Duque de Caxias, em BH, Malassombros: Contos do Além Sertão, um infantojuvenil que nem precisa desse rótulo: é teatro para todos nós, de todas as faixas etárias. É uma competente atração feita de camadas e, por isso mesmo, de uma riqueza plural. Às vezes o que predomina é a empolgante alegria de rua, dali a pouco aparece a graça ingênua de brincantes e clowns e ainda a surpresa da técnica de meia máscara, que permite aos atores o uso da voz. Depois surge a exploração do medo, na complexidade que é lidar com o interior de uma criança. Em seguida, as canções ao vivo recuperam um repertório popular riquíssimo em ritmos, tudo intercalado pela boa prosa de contadores de histórias que dominam técnicas e controlam emoções. Sem falar no cuidado com a manipulação dos bonecos, uma forma de expressão muito usada para crianças e que carece de especificidades. Ou seja, são mesmo camadas, camadas e mais camadas de linguagens e técnicas,a serviço de um delicioso entretenimento.

É importantíssima essa opção do grupo por contar só histórias de causar espanto, instigando o frio na barriga das crianças menores, sacudindo a fantasia e a imaginação com insinuações de perigosos monstros e criaturas fantasmagóricas horripilantes. Como é sério fazer isso no teatro e, assim, permitir que o público mirim vivencie seus medos, entre em contato com seus escuros da alma. Tiro o chapéu para o talento com que o grupo Teatro de Retalhos escolheu fábulas, garimpou personagens, recolheu histórias, mesclando sagrado e profano, mito e religiosidade, fé e mundanismo. Sem precisar de grosserias, nem de apelações.

Os personagens Dona Nina, Seu Biu e Zé das Cangas são carismáticos e prendem nossa atenção, mesmo concorrendo com as interferências sonoras normais da rua, típicas de peças ao ar livre. Tudo o que eles contam pode ser mentira de prosador, floreios de contadores de causos, exageros de fabuladores. Mas como a gente acredita. E, ao final, eles avisam cantando: “Se houver alguém presente, alguém que possa duvidar, que venha aqui e conte outra, bem melhor, no meu lugar.” Parabéns, pernambucanos virtuosos do Teatro de Retalhos. Muito prazer em conhecê-los.