Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 15.03.2000
Montagem afinada
A história do astrólogo e alquimista alemão Johann Faust faz parte do conjunto de lendas germânicas da primeira metade do século 16. A lenda corre o mundo e, e, 1952, Christopher Marlowe, contemporâneo de Shakespeare, escreve o seu Dr. Faustus. Em 1808, é a vez de Goethe se entregar ao mito, fazendo de sua obra a versão mais famosa. Texto do norte-americano Richard Schecher, escrito no começo dos anos 90, Fausto Gastrônomo é a triste constatação de que o jogo do poder a qualquer preço não vai sair de cena tão cedo. Descoberto num teatro off Broadway Gustavo Ariani, um dos diretores da Casa das Artes de Laranjeiras, a peça se tornou objeto de estudo do grupo que encena o espetáculo, as terças e quartas-feiras, na Casa da Gávea.
Inspirado em Goethe, Fausto Gastrônomo, mantém a estrutura do texto original, com seus personagens principais, como Mefistófeles, Gretchen, Martha e o próprio Fausto. A versão ganha contornos mais modernos ao colocar o protagonista como um grande chefe gastrônomo e entregar a Mefistófeles um Hitler como secretário idiotizado. Ainda na nova versão há um talk show aterrorizante, onde o que está no mundo agora deixa qualquer proposta nazista do III Reich parecer ingênua.
E este é o fascínio do texto que a peça pode exercer sobre a nova plateia. Está tudo na mídia, no vizinho e, quem sabe, dentro da própria casa. A nova ética que exalta a competição desmedida, a derrubada geral e a venda da alma, sem maiores problemas.
A direção de Luiz Furnaletto mostra um espetáculo de jovens atores traduzido numa vitalidade cênica pouco vista nos tempos atuais. Em alguns momentos, o espetáculo se remete à estética dos anos 70, o auge das “tribos teatrais”, onde o ator podia tudo no palco. Essa doce lembrança só reforça o vigor do texto e o peso da mensagem. No minúsculo palco a cena se agiganta em pontes vazadas que sustentam o elenco, uma boa ideia dos cenógrafos Suzane Queiroz e Fernando Alexim que permite ao diretor criar movimentos de apoio sem tirar o foco da cena principal. Os figurinos de Maria Luiza Frieze, grifados na linha do humor, são interessantes contrapontos ao texto. Fechando a técnica, a iluminação de Eduardo Salino marca a cena em irrepreensível interferência.
No elenco afiadíssimo, Pedro Osório é um Fausto encantador que seduz a plateia na mesma medida em que seu texto pode nauseá-la. Pedro Garcia é um Hitler ainda um tanto tímido na interpretação e Augusto Negrelly faz um Mefistófeles muito atraente. No elenco feminino, Mônica Emílio se destaca como Gretchen pela bonita presença em cena, mas Cristiane Credídio caricatura demais a sua Vernice no talk show. Aliás, esta é a única parte do espetáculo que poderia ser revista, não pelo texto, que é imprescindível, mas pela forma um tanto lenta de como está sendo realizado.
Fausto Gastrônomo é uma montagem afinada com sua plateia, que de lá sai comentando o que foi visto. Na síntese das sínteses o adjetivo mais comum é: “Irado!” – Deve ser mesmo.
Cotação: 3 estrelas (Ótimo)