Brinquedos antigos, como trenzinho elétrico, pião e peteca fazem parte da aventura. Fotos: Marcelo Vittorino

A peça fala sobre a importância da memória.

Critica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 25.11.2016

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Aventura teatral recupera piões, petecas, pipas e até o rádio de pilha

Fábulas de um Sótão tem sua trama tecida na fantasia dos brinquedos de antigamente

Ele despontou no reino da dramaturgia infanto-juvenil em 2011 assinando – como César Augusto – o texto e a direção do ótimo Lobato ou O Labirinto dos Sonhos. Com uma estrutura narrativa labiríntica, o espetáculo falava de sereias e curupiras de uma forma surpreendente, passando pelo tema da crise de criação do personagem principal, um escritor atrasado em sua pesquisa sobre contos populares do Brasil. Agora, assinando como César Baptista, esse mesmo criador nos oferece sua segunda aventura de censura livre: Fábulas de um Sótão, em cartaz em São Paulo, só aos sábados pela manhã, no Sesc Consolação.

Novo acerto. O estudioso César Baptista foi beber na fonte de A História do Brinquedo, de Cristina Von, entre outras pesquisas e leituras, para contar uma história repleta de reviravoltas, aventuras, flashbacks e viagens no tempo.  Se, na primeira peça, ele lançou mão do uso inusitado de objetos banais, como um binóculo, um esnórquel, uma máscara de mergulho e uma bússola, aqui em Fábulas de um Sótão são brinquedos antigos que servem de elo e de mote para cada passo adiante na construção da dramaturgia. Um trenzinho elétrico, um pião, uma pipa, uma peteca, um estilingue, soldadinhos de chumbo – cada lance da aventura é desencadeado a partir de um desses brinquedos antigos.

Não é fácil escrever um texto assim, sem perder o ritmo e sem deixar que se apague na plateia mirim a fagulha do interesse. Esse novo autor consegue. Não deixa pontas sobrando na trama, não descuida nunca dos diálogos ágeis e provocativos (com inteligentes lances de humor) e, o que é melhor, enriquece suas ideias de fabulador com metáforas encantadoras, que fisgam inclusive os adultos, ampliando o alcance do espetáculo para esse afeto saudosista que infalivelmente embala os mais velhos. Isso não impede que César use com moderação e bom gosto também o recurso mais fácil dos bordões, como o Vixe!Vixe! que os personagens dizem algumas vezes na hora do espanto.

Como diretor, seu mérito é igualmente potente. O que, para muitos, poderia virar um problema (dirigir o próprio texto), aqui se revela como um casamento proveitoso e frutífero. Poucas vezes vi nos palcos de teatro para crianças tamanha habilidade em cadenciar ideia e execução. Há claramente no espetáculo menções à linguagem frenética cinematográfica e ao ritmo brincalhão dos desenhos animados – e não é qualquer um que consegue ser tão bem-sucedido nisso. Já vi verdadeiros desastres nessas tentativas de transposição de outras linguagens para o universo das artes cênicas.

Um antigo rádio de pilha também é parte importante da trama, juntamente com a simbologia do pião que roda muitas vezes no palco, em diversas cenas, inclusive na cena final. Se fosse um filme, só faltaria o letreiro anunciando “To be continued…”.  Triste porque terá de mudar de casa a contragosto, um menino chamado Arthurzinho (a sempre correta Paula Arruda) e seu amiguinho vão para o sótão e lá conseguem a proeza de trazer para sua convivência o adulto em que esse menino se transformou, o Arthurzão.

Claro, o enredo fantasioso desafia a física e tantas outras ciências e crenças, ao colocar a mesma pessoa frente a frente com si própria em idade mais avançada. O desafio da trama será conseguir um jeito de devolver Arthurzão ao futuro a que ele pertence. Mas, em vez disso, o imbróglio vai aumentando sucessivamente, pois todos vão parar em locais e tempos variados, como o Egito Antigo, a Europa de Napoleão Bonaparte e o Brasil dos índios canibais. Achei potente a cenografia de Giorgia Massetani, complementada à altura pela direção de arte de Henrique Morais. O público entra na sala e já vê o sótão no palco – podendo assim iniciar antes do espetáculo a sua viagem pessoal pelos cantinhos de sua infância. O relógio-armário que vira televisão na hora em que entra o som do ‘Plantão do Jornal Nacional’ é um dos exemplos de uso, por assim dizer, dramatúrgico da cenografia.

Brincando, divertindo, envolvendo a plateia em uma aventura movimentada, a peça fala, em essência, sobre a importância da preservação da memória de um povo, seus hábitos, sua cultura. Falar disso para crianças? Sim, por que não? Quando eu digo que é difícil fazer um espetáculo tão bem resolvido como esse, insisto, estou querendo dizer que em nenhum momento há tom de pregação, de lição de moral. Mesmo nos poucos trechos do texto que poderiam ser aborrecidamente enciclopédicos (quando se fala da origem dos brinquedos no mundo, por exemplo), isso é feito de forma leve, integrada à proposta lúdica da encenação.

Não deixe de pegar o programa da peça no saguão. Está acima da média dos programas feitos em peças infantis. E tem receita de como construir uma pipa e de como brincar de amarelinha. Ah, e tem também o Desafio da Amarelinha, muito criativo, porque nada mais é do que o texto que o diretor normalmente escreveria para o programa, aqui transformado em cada passo do circuito do jogo. Nota dez.

Serviço

Sesc Consolação – Teatro Anchieta
Rua Doutor Vila Nova, 245 – Consolação, São Paulo
Telefone: 11 3234-3000
Sábados, às 11h.
Indicação da produção: Livre
Ingressos: R$ 17,00. R$ 8,50 (meia), R$ 5,00 (credenciados do Sesc)
Grátis para crianças até 12 anos
Temporada: 19.11 até 17.12.2016