Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 16.09.2018
Como é importante aprender a dizer ADEUS
‘Euria (Lluvia), espetáculo espanhol do grupo Markeliñe, que marcou presença no festival Mirada, em Santos, fala de luto para crianças com sensibilidade e delicadeza, desafiando os pais que acham que teatro infantil tem de ser só alegre.
É de arrepiar. De tão bonito. Uma peça para crianças sobre o luto. Isso mesmo. A dor do luto. O luto mesmo, de verdade. Sofrido, doído, pesado, carregado. Um homem chorando copiosamente no palco pela morte da mulher.
Quantas e quantas vezes já ouvi pais dizendo que teatro para crianças tem de ser alegre, que não vão tirar os filhos de casa para verem coisas tristes. Pois esse tabu vem sendo quebrado ao longo dos anos pelos encenadores do mundo todo. E eis que, na programação do Mirada, Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, produzido em Santos pelo Sesc, me deparo com essa verdadeira pérola: Euria (Lluvia), do grupo espanhol Markleliñe. Um primor, uma delicadeza. Tristeza sim, mas desde que a peça traga esperança – está aí a chave desse portal.
Quanto tempo dura um luto? Quantas lágrimas temos de derramar até apaziguar nossa dor? Quanto tem de chover em nós até que um novo sol se levante? Sem texto nenhum, Chuva – dirigido por Iñaki Egiluz e Markeliñe – fala eloquentemente de tudo isso. Desfila essas questões na nossa cara, misturando outras linguagens que não a das palavras. Arrebanhou, no ano passado, o Prêmio FETEN (La Feria Europea de Artes Escénicas para Niños Y Niñas) de melhor espetáculo familiar.
O espetáculo testa a sensibilidade das crianças. Ousa. Arrisca. É todo construído à base de metáforas visuais, sem entregar nada com facilidade. Teatro de objetos, misturado com animação, pantomima, dança, videomapping. Um homem dispara suas memórias, lembranças e saudades a partir de um guarda-chuva negro, que remete à amada morta. E eis que, nesse difícil processo de superar a perda, surge outro guarda-chuva, colorido, mas quebrado. É sua chance de consertá-lo e, assim, reencontrar um apaziguamento, confortar-se com outra felicidade. Mas e a culpa de achar que ainda não é hora de abandonar a dor pela mulher amada? Será que ainda não é cedo demais? Será que começar a reagir não é trair seus sentimentos por alguém que lhe foi tão importante? Quantas dúvidas todos temos em situações assim – e tudo está em Euria (Lluvia).
É muito bem construída a dramaturgia, no sentido de que o homem começa muito sofrido, depois há os momentos em que sua dor já começa a insinuar uma reação, a se amainar e a se misturar com uma ‘vontade de potência’, até chegar à aceitação da perda, à busca por novos caminhos sem negar que a saudade viverá com ele para sempre. Tudo isso está na peça sem nenhuma palavra, só com gestos, movimentos, objetos, projeções, animações. Incrível. Inacreditável. Você percebe claramente todas essas etapas do período em que dura uma tristeza. Para as crianças, essa sutileza do tempo passando é fundamental. Elas são capazes, sim, de construir uma lógica própria em meio a tanta poesia. São levadas a isso, nesse ‘exercício’ cênico sofisticadíssimo proposto pelo grupo espanhol.
O trabalho de corpo dos atores é fenomenal (elenco: Fernando Barado, Natalia Garcia e Itziar Fragua). A interação de seus gestos com o que está sendo projetado no telão é algo apuradíssimo. Um exemplo é a cena em que o homem entra em uma sala de cinema. Ou quando ele e a mulher brincam com o planeta como se fosse uma bola. No palco, apenas uma cômoda, um varal de chão, uma mala, um ferro de passar roupa, uma flor, gotas de chuva (ou lágrimas de papel) e os dois guarda-chuvas pendurados no cabideiro. O resto é talento. Deslumbrante é ver o homem triste pendurando suas lágrimas para secarem no varal. Suas visitas ao cemitério são pungentes. Cada cena é mais sugestiva e vistosa do que a outra. O ritmo nunca se perde. A trama vai sendo empurrada para a frente com um cuidado cirúrgico, auxiliada por uma trilha sonora de adentrar nossas almas.
Como é importante aprender a dizer adeus. É isso o que o grupo espanhol Markeliñe quer, em essência, transmitir às crianças, sabendo que muitos adultos também carecem dessa sabedoria. Bravo!