Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 27.06.1976

Barra

Uma chuva fora dos trilhos

Sylvia Orthof prossegue desenvolvendo, nesta terceira peça, sua preocupação temática básica: a necessidade de abertura. Se em A Viagem do Barquinho isso se demonstrava pela atuação da lavadeira despertando no menino a consciência de que o ser amado não deve ser aprisionado (além da necessidade de aventura e autonomia do barquinho); e se, em Zé Vagão, ficava clara a posição fechada da mãe Leopoldina, que desejava ter seu filho andando sempre dentro dos trilhos; agora, em Eu Chovo, Tu Choves, Ele Chove, tal preocupação é notada em dois níveis. Em primeiro lugar, na própria estrutura do texto, que é um renovar-se constante, uma contínua declaração de que as coisas são mutáveis (em certo momento, os atores cantam: “E a história está ficando diferente”); e, ainda, no festival de transformações que ocorre no desenrolar da trama; o ovo que se transforma em príncipe; a ova que enjoa de ser ova muda de roupa e vira princesa; a enceradeira que resolve enguiçar e virar violão. E o mais importante é que todas essas transformações não são causadas por mágicos toques de varinhas de condão. Todas as mutações são consequências do desejo e da ação das pessoas que resolvem reorganizar suas vidas, dirigindo elas mesmas seu destino.

Pode parecer, à primeira vista, que as peças de Sylvia Orthof são uma chata aula de filosofia de vida: algo educativo, rígido, frio e sem graça. Pelo contrário. A fantasia está presente em todos os momentos, seja através dos personagens (Tia Nuvem, Galinha Hipocondríaca, Ova de Peixe, Chuvisco, Pingo de Chuva), seja através das situações propostas. E, principalmente, através da montagem, na qual se desenvolve todo o seu senso plástico e de musicalidade.

O envolvimento começa através do cenário, com o uso de guarda-chuvas, filó e luzes, num resultado eficazmente colorido. A seguir, os figurinos, inicialmente pobres (malhas) vão se enriquecendo gradativamente até a inteligência e comicidade da galinha d’angola ou até a exuberância do sol. A musicalidade de todo o trabalho, com um violão em cena, e com a utilização de conhecidas músicas de roda (com letras novas) criam um clima em que as crianças se deixam envolver. E o cuidado artesanal (além do talento criador) com os adereços e com os objetos de cena, de autoria de Tato e da autora, complementam a carga de magia sensorial. Volto a chamar a atenção para a segurança com que Sylvia dirige seus atores. O elenco formado por Maria Alice, Fábio Junqueira, Abelardo Jacobina, Hamilda, Gê Orthof e Lúcia de Oliveira funciona com bastante segurança e homogeneidade. Apenas dois reparos: Gê Orthof destoa um pouco com seu estilo de representação, ainda um tanto cantada e saltitante, apesar de cumprir seu trabalho com acerto – dentro dessa linha que me desagrada pela sua exteriorização demasiadamente elaborada. E não se justifica a presença, estática, de Lúcia de Oliveira, que atua apenas cantando as músicas. Espera-se que, a qualquer momento, ela assuma uma participação efetiva no espetáculo – o que não acontece.

Eu Chovo, Tu Choves, Ele Chove, em cartaz na Sala Corpo/Som “A” do Museu de Arte Moderna, é um espetáculo recomendável para todas as crianças cujos pais não pretendem que os filhos sejam apenas passivos e conformados vagões correndo em trilhos já impostos.