Ana Roxo, Cris Rocha e Cristiano Meirelles: trio microfonado em cena. Fotos: Felipe Stucchi

Ilustração: Ana Roxo

Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 26.04.2019

Fábula musical mergulha na simbologia dos sonhos e flerta com a psicanálise

Em Escondida, Cia. Auspiciosa usa variados símbolos para falar de uma menina em fase de autoconhecimento e em conturbada transição da infância para a juventude

A primeira peça da Cia. Auspiciosa, de São Paulo, foi A Princesa Errante e o Príncipe Errado, que brincava muito seriamente com as questões de gênero e as pressões da sociedade impondo estereótipos de comportamento às crianças. Gostei muito. Agora, o grupo nos brinda com Escondida. E o lindo programa da peça anuncia o enredo: “Imagine que você acorda num lugar desconhecido, onde nada tem nome – nem o lugar – e você nem sabe como foi parar ali. Aliás, você não se lembra de quase nada! Essa é a história de Escondida, uma peça que conta como uma menina fez pra sair dessa confusão.”

O estilo de escrever de Ana Roxo, atriz e autora da peça (como também da anterior), muito me agrada. Ela sabe ser leve, suave, fluente. Brinca com as palavras. Faz metalinguagem, à moda brechtiana de revelar truques e lembrar sempre a todos que estão no teatro. Antinaturalismo. Faz teatro narrativo de uma forma harmoniosa e contemporânea, com todas as especificidades técnicas de uma boa contação de histórias, mas sem perder o pé da aura de encantamento e, o que é principal, sabendo que ao mesmo tempo está falando com crianças, adolescentes e adultos. Não é nunca um texto hermético, intransponível. Ao contrário. A dramaturgia de Ana Roxo é inclusiva, nos fisga pra dentro dela com muita força e poesia. Sem querer valorizar/distribuir rótulos, mas é assim como “um conto de fadas moderno”, entende?

A música, além do texto, também é sempre um ponto alto da Auspiciosa, já percebi. Graças à presença de Cristiano Meirelles na companhia. Além de estar no elenco, cantando, dançando e interpretando, ele assina a direção musical e é co-autor das canções. É um artista multitalentoso, sempre bem em cena, mesclando graça, espontaneidade e vigor. Há trechos do espetáculo em que os diálogos são cantados, como nos musicais. Funciona bem, sem cansar. As canções ‘enxertadas’ na trama, complementando a dramaturgia, têm letras graciosas e perfeitamente casadas com a narrativa.
Não posso deixar de falar da iluminação, assinada por Vânia Nunes Jaconis.  Como não há cenografia, o design de luz serve de cenário, preenche o palco de forma inacreditável. “Aqui tem uma cama, aqui uma banheira, aqui uma mesa…” – esses objetos não estão lá, mas você vê a cama, a banheira, a mesa, porque a luz resolve tudo. “Agora ela vai pra floresta…” – não há cenário de floresta, mas você sente a menina andando na mata. A luz é sensacional por causa disso. Parabéns.
Cris Rocha, atriz convidada, que faz a bruxa (e, no fim, a mãe), começou num registro de gritaria histérica que me incomodou, mas depois foi acertando o tom. Ufa! Todos os três em cena são microfonados, ou seja, não precisa mesmo de gritaria. Cris Rocha tem a seu favor um trunfo da peça: as risadas da bruxa, que são ótimas, diferentes, criativas. Nada a ver com as tradicionais risadas de bruxa no teatro – e, aliás, isso é dito no texto, uma brincadeira com o próprio teatro infantil, algo que a dramaturga Ana Roxo gosta de fazer, a tal da metalinguagem. Por que a risada da bruxa é diferente? Porque ela gargalha imitando animais, cada hora um animal diferente, e a plateia mirim morre de rir. Essa é uma grande sacada, uma inovação para a personagem da bruxa.

Os figurinos de Claudia Schapira também sempre merecem menção. A roupa da bruxa tem franjas que, quando se abrem e rodam, dão um efeito muito vistoso e lúdico. Mas o melhor é o figurino do anjo protetor da menina. Sabe onde a figurinista acoplou asas no anjo? Nas costas? Não. Seria óbvio.  O par de tênis e o boné do anjo é que têm asas. Uma graça de solução. E coisa mais linda ainda é quando esse anjo volta no final, vestindo um tutu cor de rosa, como se fosse menina bailarina, para ‘confundir’ a cabeça das crianças. Não era menino? Agora é menina? E anjo tem gênero?

No mais, há que se dizer que Escondida é uma peça muito psicanalítica, no sentido de que tudo não passa de um sonho da menina, ou seja, não há nada mais psicanalítico do que o mundo simbólico dos sonhos. Tudo o que está citado na trama onírica tem a ver com a menina, a solidão da menina, a autoafirmação, o autoconhecimento. Ela procura por objetos perdidos, chaves, guarda-chuva, brinquedos, bonecas… Cada coisa dessas é um símbolo, significa alguma coisa na vida das crianças. Um prato cheio para terapeutas de criança, inclusive. A menina que não sabe quem ela é, como se fosse a transição da infância para a juventude, e esquece até o próprio nome. A bruxa dá provas que ela terá de vencer antes de acordar do sonho. O caminho para se auto encontrar são os objetos carregados de sentido que a gente vai deixando pela vida. Assim, Escondida é uma peça que pode ser vista só como uma fábula musical de entretenimento, mas também abarca camadas mais profundas – fornecendo ferramentas preciosas para entendermos um pouco mais dessa convulsão constante a que chamamos de… criança.

Serviço

Local: Sesc Consolação
Endereço: Dr. Vila Nova, 245 – Consolação, São Paulo
Telefone: (11) 3234-3000
Capacidade: 280 lugares
Quando: Sábados, às 11h
Ingressos: Grátis para crianças até 12 anos. R$ 17,00 (inteira), R$ 8,50 (meia) e R$ 5,00 (credencial do Sesc)
Classificação indicativa: Livre
Temporada: De 30 de março a 27 de abril de 2019