Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Macksen Luiz – Rio de Janeiro – 15.10.1987

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Fábula Mitológica

A Grécia mitológica permite, na sua recriação lírica, estabelecer as referências primárias da aventura humana. O Olimpo, a Arcádia ou o Inferno são espaços míticos dentro dos quais a humanidade se expressa pela deificação das suas forças ou pela imortalidade de seus desejos.

Eros e Psiquê (Teatro da Casa de Cultura Laura Alvim), que Renato Icarahy transpôs para o palco, pretende captar, através de princesa transformada em ninfa e de deus com poderes de disseminar o amor, um universo de rica fabulação e de significados essenciais. Esse mundo nem sempre é passível de encontrar correspondência cênica, já que a capacidade narrativa de um espetáculo, muitas vezes absorve mal imagens de origem literária. No caso dessa livre adaptação, as dificuldades começam pela intervenção do autor na trama. Icarahy amoldou a história a seu desejo de construir uma elegia ao amor, especialmente ao amor ingênuo e desprotegido dos adolescentes. Para tanto, modificou o final da história para que houvesse o triunfo completo desse amor. Em parte esse desejo expressa a tentativa de rever os elementos que formam a afetividade. O jovem, a quem a montagem se dirige e que integra o projeto Festival do Teatro Brasileiro do grupo Tapa, recebe tratamento extremamente condescendente. A inexperiente Psiquê se deixa influenciar por tudo que lhe é dito e tem aguçada curiosidade diante do desconhecido, além de razoável dose de vaidade. Eros, por seu lado, é incapaz de insurgir contra os desígnios de Vênus, sua mãe, submetendo-se às mais absurdas exigências. Da forma como a dupla de jovens é mostrada, será difícil para os adolescentes da plateia estabelecerem qualquer traço identificador com a juventude servil e sem iniciativa que está no palco. O efeito de reflexo fica comprometido por tanta ingenuidade, que se parecerá mais com fraqueza do que com dúvida.

Outra das dificuldades da adaptação é trazer à sensibilidade atual o mundo mitológico, que não é do conhecimento da maioria. Cheia de intrigas, com deuses que desempenham papéis determinados, entidades que têm funções mágicas e mortais que se misturam e sofrem a ação dos deuses, é necessário que a plateia tenha a mínima referência sobre o que compõe a fábula mitológica. Eros e Psiquê não esclarece plenamente todos os personagens e há descompassos narrativos que prejudicam a dinâmica da ação. As três Parcas (fiandeiras que tecem o destino dos homens) funcionando como narradoras que comentam a ação aparecem como misteriosas figuras  para quem delas nunca ouviu falar. A direção do próprio Icarahy não contribui para tornar claro o que é desconhecido. Nota-se que há uma vontade de aproximar a contemporaneidade ao mito. As frases têm uma construção vocabular quase coloquial e as inflexões, muitas vezes, são deliberadamente ditas com sotaque carioca. Mas toda essa tentativa de aproximação não elimina o impasse de uma cena que está longe do poético. Rígido, com diálogos que soam duros ou que se perdem numa atropelada dicção, o espetáculo apela pouco para a fantasia. O cenário, apesar dos poucos elementos, é pesado. A música intervém com muita solenidade, criando tensão dramática desfocada em relação ao que observa em cena. E a trilha, em nenhum momento, evoca o lírico. O problema se torna mais grave no final, quando depois de todas as peripécias, o amor vence – “amor e alma nunca mais vão se separar”. E o que finaliza o espetáculo é o desfile das Parcas. O que se diz não corresponde ao que se vê.

Do elenco se destaca Vera Regina, numa maliciosa interpretação de Dafne. Inquieta e com jovial senso de humor, a atriz é uma grata revelação. Paloma Riani e Raul Serrador, como Psiquê e Eros, não exploram a paixão dos personagens. André Costa como Mercúrio – a ideia dos patins em lugar das asas nos pés é cativante – transmite a placidez do mensageiro do Olimpo, Beth Berardo, Fátima Café e Teresa Frota compõem com força visual as Parcas. O restante do elenco se desiquilibra entre o tom declamatório e as insinuações de uma fala menos empostada.

Eros e Psiquê, apesar de todas as dificuldades de se realizar como adaptação teatral, permite perceber que Renato Icarahy é um autor que conhece as regras básicas de dramaturgia e a montagem tem o mérito de introduzir no projeto do Festival do Tapa um texto inédito de autor estreante.

Serviço

Eros e Psiquê
Texto e direção: Renato Icarahy
Concepção Cenográfica: Ricardo Ferreira
Figurinos: Teresa Frota
Adereços: Célia Quarti
Luz: Wagner Pinto
Música: Richard Wagner
Trilha Sonora: Antonio Mecha
Elenco: André Costa, Angela Matemo, Beth Berardo, Celso Lemos, Fátima Café, Fernando Rebello, Nivan Santos, Paloma Riani, Priscilla Rozenbaum, Raul Serrador, Teresa Frota, Vera Barroso e Vera Regina.

Teatro da Casa de Cultura Laura Alvim
Cotação *