Raul Serrador e Vera Barroso na peça Eros e Psiquê, que estreia hoje, na Laura Alvim

Crítica publicada no O Globo
Por Tania Brandão – Rio de Janeiro – 13.10.1987

 

 

 

 

 

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Em Cena, Tramas de Vênus

Há uma febre grega no ar nos últimos anos: são peças, são livros, são cursos, uma fome voraz de informações e estudos. Este sentimento é a nota vibrante do último trabalho do Projeto Escola, do Grupo Tapa, novo cartaz do horário alternativo da Casa de Cultura Laura Alvim.

O texto é Eros e Psiquê, de Renato Icarahy, autor estreante. Não é um desconhecido, já que iniciou sua carreira como ator, no Grupo Tapa, e assinou diversas direções. O texto, uma versão inspirada na mitologia grega para o nascimento da alma humana e do amor, dá continuidade ao Festival de Teatro Brasileiro, iniciativa voltada para a difusão do teatro nas escolas. Depois de O Noviço, de Martins Penna, Caiu o Ministério, de França Júnior, Casa de Orates, de Artur e Aluízio de Azevedo, O Alienista, de Machado de Assis e O Homem que Sabia Javanês, de Lima Barreto, a equipe decidiu apresentar um inédito de um dos seus integrantes e lançar a discussão sobre a autoria em teatro. Não é uma discussão ociosa, pois as duas últimas montagens foram adaptações de contos. A dramaturgia brasileira não tem sido pródiga. Discutir o tema pode ser um estímulo para o nascimento de novos dramaturgos, principalmente se o cenário é a inquietude dos escolares.

O texto de Renato Icarahy não é nenhuma obra prima. Trata-se de uma transposição, bastante livre, dos mitos de Eros e Psiquê e Perséfone. A liberdade do autor aparece tanto nas denominações dos personagens, misturando designações gregas e latinas, como no desenrolar da trama. O objetivo é o de provar o nascimento de uma nova era, em que o amor “este sentimento absurdo”, nasce do coração dos homens para fazê-los completos. E belos. Na peça, Eros é filho de Vênus, a deusa da beleza irritada com Perséfone e Psiquê porque as duas jovens tendem a ofuscá-la. Eros se apaixona por Psiquê, mortal, depois de ter provocado um acidente com suas flechas que fez a jovem se apaixonar pelo invisível, o absoluto. São tramas de Vênus para liquidar a rival, assim como fez com que a deusa Perséfone casasse com Plutão e fosse para o Hades, o inferno. A trama é engenhosa, apesar de ingênua; a ideia é de um romantismo lírico pungente.

Tudo é muito mais contado do que vivido, as grandes peripécias ocorrem todas fora de cena. Para evitar o tédio, o autor recorreu ao artifício de disfarçar a narração na figura das três parcas (Cloto, Laquésis e Átropos), que vão tecendo os fios da vida num canto. A movimentação das três não é tão boa quanto a ideia de incluí-las, uma decorrência da direção, do autor, sempre convencional. A cena é em geral despojada, um mínimo que sugere o encantamento diante do mundo grego, sentimento que une a equipe e que passa para a plateia.

Isto apesar do texto-relato e da direção tímida. O máximo de recursos usados é proporcionado pelos malabarismos dos atores, verdadeiros ginastas. Como o texto não transborda de emoção mesmo nos momentos críticos, a temperatura emocional nunca sobe muito. As tarefas do elenco são simples, não existem grandes desafios. Angela Materno é a presença mais intensamente emocionada, oferecendo uma Démeter que vibra pela filha raptada por Plutão. Nilvan Santos (Fauno) consegue um desempenho forte em romance e comédia: suas cenas com Dafne (Vera Regina) têm sabor de commedia dell’arte, André Costa é hábil na revelação das artes de Mercúrio. Paloma Riani (Psiquê) e Raul Serrador (eros) insinuam as delicadezas do amor timidamente, apesar da correção e da beleza. Teresa Frota (Átropos) e Beth Berardo (Cloto) dotam as parcas de vidência e sentimento, em contraponto com a mecanicidade de Fátima Café (Laquésis), nem sempre bem resolvida. Vera Barroso, Celso Lemos e Fernando Rebello mergulham em linhas excessivamente racionais. Há a palpitação de Wagner numa discreta trilha sonora, um interessante figurino estilizado, iluminação singela, duas colunas dóricas móveis sugerindo os lugares da ação – um mínimo para revelar o eterno encantamento dos homens diante da infância do mundo. Como a Grécia volta e meia absorve a atenção das artes, a proposta interessa: indica que o passado pode apontar novos rumos para a necessidade de criar.