Fotos: Gisa Araújo

Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 13.10.2018

Peça infantil é festa de cidadania ao retratar um déspota que tudo proíbe e tudo censura

Era Uma Vez Um Tirano, do Grupo Prole, no Centro Cultural São Paulo, é uma montagem atualíssima e urgente, apoiada em um livro clássico de Ana Maria Machado.

Uma das formas de censura que mais precisamos evitar neste momento é a autocensura, praticada quando o próprio criador age contra si e sua obra, adivinhando que o opressor assim o faria mais adiante. Em situações como a que estamos voltando a viver na história do Brasil, em que paira sobre o mundo das ideias a ameaça de um grande e ignorante ditador, com sua estupidez retrógrada e sua estultice truculenta, há que se ter a coragem de não se antecipar à catástrofe cultural prestes a se configurar, caso os brasileiros realmente optem nas urnas por esse caminho da obtusidade e da violência antidemocrática.

Em cartaz no Centro Cultural São Paulo, que é, diga-se, uma instituição mantida pelo governo municipal, um espetáculo no horário vespertino tem nos presenteado a todos com essa coragem imprescindível, essa recusa a se intimidar, essa valentia de falar sem medo do mal que está quase pronto a nos acometer: a chegada à presidência da República de um déspota declarado. O nome da peça? Era Uma Vez Um Tirano. Acompanho a produção de teatro infanto-juvenil em São Paulo há mais de três décadas e, por isso, é com um gostinho extra e com muito orgulho que constato que essa necessária e importante iniciativa se dá pela via dessa nobre vertente das artes cênicas: um teatro maior feito para menores.

 

O texto não foi ‘inventado’ para este momento de queda de braços na política partidária nacional. É um livro clássico da literatura infantil brasileira, escrito em 1982 por ninguém menos do que Ana Maria Machado, escritora carioca de renome internacional, membro da Academia Brasileira de Letras e uma das poucas escritoras de nosso país a ganhar o chamado ‘Oscar mundial da literatura para crianças’, o Prêmio Hans Christian Andersen. Ela também já foi laureada pelo Prêmio Casa de las Américas e pelo Prêmio Jabuti. Então, meu querido leitor, antes que sua falta de informação o faça acusar o espetáculo de ter nascido “por obra do PT”, tenha respeito por essa grande autora, cujo livro –  justamente Era Uma Vez Um Tirano – chegou a receber uma leitura dramática na Alemanha pela importante companhia do dramaturgo Bertolt Brecht, o Berliner Ensemble, em 2002.

A montagem é do Grupo Prole de Teatro, fundado em 2005 pelas atrizes e produtoras Fernanda Assef e Bruna Aragão. As duas estão no elenco, ao lado de Angela Ribeiro e Humberto Morais. Desde sua fundação o grupo se dedica à pesquisa da dramaturgia brasileira e ao diálogo de grandes escritores nacionais com a realidade sociopolítica do país. No material de divulgação de Era Uma Vez Um Tirano, o grupo escreve: “Ao encontrar este texto brasileiro que fala sobre a tirania de forma tão potente e lúdica, percebemos a possibilidade de dialogar com o espectador sobre questões que nos co-moviam com criatividade e liberdade. Já havia também o desejo de trabalhar com o público infantil, depois de experiências transformadoras do elenco em projetos de arte-educação e narração de histórias na educação infantil e no ensino fundamental em escolas de São Paulo.” Tiro meu chapéu, como se dizia antigamente, para o senso de atualidade do grupo, ao escolher encenar um clássico tão atual e em momento tão crucial.

A diretora é Bete Dorgam, mestre em Comunicação Social e doutora em Artes Cênicas pela ECA/USP, professora de Interpretação na EAD/USP e de Humor na SP Escola de Teatro e nos cursos Técnico, Bacharelado e Pós-graduação da Escola Superior de Artes Célia Helena. Outro nome de grande respeito. Uma mulher de fibra e talento. Bete fez uma encenação apoiada no teatro narrativo, com forte suporte brechtiano, em que as canções são fundamentais, fazem parte da dramaturgia, narram a fábula. Puro e genuíno Brecht para crianças. A música, como não poderia deixar de ser nesse tipo de encenação brechtiana, é ao vivo, a cargo de Alexandre Melo, que criou canções especialmente para o espetáculo.

A direção de Bete Dorgam é plena de energia, ritmo, comprometimento, garra, sem ser gratuitamente panfletária, o que até seria perfeitamente compreensível por causa do tema e pelo ‘calor da hora’. Bete dosa essa firmeza temática urgente, por assim dizer, com um tom poético que cativa as crianças e emociona os pais. A solução para neutralizar os malefícios do tirano (retratado por um fardão de general, vestido alternadamente por todos os integrantes do elenco) vem, como no livro, na forma de lindas metáforas sobre a natureza, as cores e as brincadeiras de infância. Numa peça contundente sobre a tirania, a diretora conseguiu incluir uma celebração ao brincar. É muito tocante.

Não posso deixar de citar também a competência criativa do desenho de luz do espetáculo, que muito contribui para essas intenções metafóricas do texto. A cena da noite com estrelas, graças à iluminação, é uma das mais lindas que vi recentemente no teatro para crianças. Quem assina é Felipe Tchaça. Por sua vez, Carlos Mendes ficou responsável por cenografia e figurinos. As roupas alternam cores primárias e cinza, de forma eficiente. A cenografia criou a vila do tirano, com janelas muito bem exploradas por sombras.

 

Parabéns, Centro Cultural São Paulo, por abrigar com coragem e autonomia esse Era Uma Vez Um Tirano. Ouso dizer que virou obrigação de cidadania ir com sua família engrossar o coro de #elenão que a plateia, emocionada e eufórica, grita a plenos pulmões na hora dos aplausos. É de arrepiar de lindo. Se ainda existisse uma imprensa séria neste país, ela teria de estar lá registrando imparcialmente esse verdadeiro “acontecimento teatral”. Nosso site, Pecinha É a Vovozinha!, esteve lá, como não poderia deixar de ser. E vimos crianças aprendendo a prática da liberdade, para no futuro virarem adultos melhores do que nós. Adultos com ferramentas adequadas para decidirem seus caminhos com humanismo, respeito e ética – o que mais pode querer um pai e uma mãe? Muitos na plateia derramam lágrimas, por proporcionarem às crianças de sua família esta comunhão tão sagrada que se dá ali entre teatro, arte, educação, música, política e cidadania, em uma só peça. Este espetáculo do Grupo Prole nos faz ainda ter esperança em um Brasil pleno de liberdades de escolha para nossos filhos, netos, sobrinhos… Amém.

Serviço

Local: Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho
Endereço: Rua Vergueiro, 1.000 – Liberdade, São Paulo
Telefone: (11) 3397-4002
Capacidade: 321 lugares
Quando: Sábados e domingos, às 16h
Ingressos: R$ 10,00 (inteira)
Temporada: De 29 de setembro a 11 de novembro de 2018
Atenção: Apresentações gratuitas na semana das crianças,  com interpretação em libras: dias 12 (sexta), 13 (sábado) e 14 (domingo), às 16h