Matéria publicada em A Cigarra Magazine – Págs. 75 a 82
Por Accioly Netto – Rio de Janeiro, 1950
Era uma vez
Lúcia Benedetti se faz entendida por crianças
Disse uma vez Einstein, o homem cujas fórmulas hermética encerram imensos segredos do universo, que “o homem só é verdadeiramente sábio quando consegue conversar com as crianças”. E os biógrafos do pai da bomba atômica, o descobridor de teorias astronômicas que somente depois de expressas em complicadas equações geométricas as lunetas confirmam investigando o céu, afirmam que é um conversador habilíssimo com os pequeninos – capaz de se fazer compreendido pela mais infantil das mentalidades.
Ora, muito bem – se é difícil conversar com crianças (eu que sou pai amoroso, que dá muita atenção aos filhos, sei bem dessa verdade) mais complicadas será, naturalmente, escrever teatro para crianças.
Nessa arte, que numerosos bons escritores naufragam, quando se dirigem à gente grande, Lúcia Benedetti assentou praça e armou sua barraca de campanha.
Todos conhecem, por certo, Lúcia Benedetti. Se não for por seus romances de nomes tão originais, e de tanta substância humana, que se chamam Entrada de Serviço e Vesperal com Chuva – será por suas crônicas tão saborosas, antigamente publicadas em “O Cruzeiro” e agora em “A Noite” – por seus programas radiofônicos ou por sua peça em um ato, O Banquete. Mas, a não ser conhecê-la pessoalmente, que é um prazer muito grande, em beber o cafezinho que sabe preparar e ouvir as coisas inteligentes que ela conta – a melhor maneira mesmo é assistindo algumas de suas peças infantis, O Casaco Encantado, Simbita e o Dragão, A Menina das Nuvens ou Branca de Neve.
Queira ou não Lúcia Benedetti, que me confessou outro dia estar disposta a continuar no romance ou no teatro para adultos – a sua melhor faceta está mesmo quando inventa aquelas coisas doidas que os garotos adoram, e nós os oficiais do mesmo ofício invejamos, porque não somos capazes de imaginar, de um casaco que fazia todo o mundo pular, um marinheiro de calças curtas que combate um dragão, uma menina que vivia nas nuvens e desce a terra nas costas do vento variável, ou uma nova versão de sempre deliciosa Branca de Neve.
Já escrevia Rainer Maria Rilke nas “cartas a um poeta”, que “poucos conseguem penetrar no mundo diferente dá criança. Enquanto as pessoas crescidas se agitam, ocupadas com coisas que lhe parecem grandes e importantes pelo simples fato de preocuparem os adultos, ela nada compreende do que fazem”.
Para vencer a solidão da criança, o seu “não compreender” é necessário uma imensa, uma impressionante dose de inteligência e de argúcia. “Primeiro interessá-la depois fazer-se compreendido, e finalmente nunca parecer ridículo”.
Vocês já repararam como, muitas vezes, no íntimo, os meninos nos acham ridículos com nossas inúteis complicações?
Lúcia Benedetti possui essa qualidade preciosíssima, tão preciosa que torna os contistas infantis, e principalmente os teatrólogos infantis, tão raros – sabe interessar, sabe fazer-se compreender, e finalmente jamais se mostra ridícula para seus pequeninos ouvintes. Muito pelo contrário, história que ela conta, na forma de comédia ou drama teatral, nunca é esquecida.
Tenho observações diretas e concludentes com meu filho, seus amiguinhos e suas amiguinhas. Depois de assistir a qualquer uma das peças, de Lúcia, conseguem contá-las por inteiro, com seu verdadeiro significado (Ah! a humilhação de se contar uma coisa e “eles” entenderem outra!) e, o que é mais difícil, raramente a esquecem.
Tudo isso seria muito bonito de dizer aqui dentro do Brasil, com esse ufanismo que ainda existe por todo o canto! “Lúcia Benedetti é uma escritora brasileira, portanto vamos elogia-la!”
Mas não, se é que ainda não sabem, saibam todos: ela transpôs as fronteiras do Chuí, e passou-se para a Argentina, com todas as suas peças infantis, enchendo todo o repertório de uma companhia que se intitula “Teatro para chicos y grandes”, fundada especialmente em sua Intenção! Dirigida por Francisco J. Bola, o “Teatro para chicos y grandes” acaba de estrear em Mar deI Plata, em plena estação de veraneio, com El Chaleco Encantado que obteve o mais completo êxito.
Passada a temporada, o conjunto que conta Com artistas de classe, como Liana Lombard, irá para o “Teatro Astral” em Buenos Aires, onde encenará, consecutivamente, Trinquete y el Dragon, Blanca Nieves e La Chica de las Nubes…
Não parece isso tudo um conto de fadas? Sim, parece – pena que no Brasil, onde Lúcia Benedetti nasceu (foi ali pertinho, em Niterói) não possua também uma organização teatral permanente como a de Buenos Aires. Há pouco tempo ela pretendeu que a Prefeitura transformasse o Museu Escolar da Praça Arcoverde, do. Rio de Janeiro, um museu triste e pouco visitado, pobre e sem interesse, num teatro para crianças, e ninguém lhe deu atenção. O prédio do Museu Escolar está numa praça linda onde brincam centenas de meninos e meninas que ficariam alegríssimos se possuíssem um teatro.
Mas não faz mal. Outros prefeitos virão, e talvez um dia a nossa Câmara Municipal se resolva votar o despejo das velharias do Museu Escolar para que as crianças do Rio de Janeiro tenham seu teatro. E se tal acontecer, já proponho daqui um nome: “Teatro era uma vez…”.
Sim, porque na sala de espera, outro dia, será inaugurada uma placa de bronze que não necessitará muitos dizeres. Uma placa de bronze que não necessitará data nenhuma. E nessa placa talvez apenas isso, lembrando a autora de tantas histórias maravilhosas: “Era uma vez Lúcia Benedetti…” E ninguém perguntará o que isso significa, porque todos saberão quem foi aquela escritora miudinha que trouxe para o teatro tantas histórias maravilhosas.