Encontros de comunhão e de esperança no 16º Festival Paideia

Por Cleiton Echeveste (*)

Há poucos anos, desde 2017, venho acompanhando regularmente as edições do Festival Internacional Paideia de Teatro para a Infância e Juventude: Uma Janela para a Utopia, ou simplesmente, Festival Paideia, em São Paulo. Mas arrisco dizer que poucas vezes o nome dado ao Festival fez tanto sentido como na sua 16ª edição, realizada entre os dias 21 e 26 de setembro. Às vésperas de uma eleição histórica e após a pandemia da Covid-19, que ainda nos assombra e que não só nos isolou como também inviabilizou a realização plena, presencial, do Festival Paideia e de tantos outros festivais de artes, esta edição foi marcada pela potência do (re)encontro e por uma fervilhante troca de ideias, impressões, sentimentos e emoções, que transbordaram nestes seis dias. Escrevo este relato como testemunha desta celebração, cujo eixo temático – “meninas e mulheres no teatro” – aborda diretamente questões que me dizem respeito e me implicam como artista e pesquisador dedicado à investigação sobre gênero e sexualidade no teatro para a infância e juventude e, ainda que eu deva reconhecer a parcialidade da minha visão, espero com ele fazer um pequeno aporte para o registro desta edição que representa uma enorme contribuição ao campo das artes para e com crianças e jovens no Brasil.

Escrevo de um lugar privilegiado, de quem pode – como artista, pesquisador, representante do CBTIJ/ASSITEJ Brasil e como um fã declarado – vivenciar integralmente o evento. Por isso, posso atestar que, pelo amor às artes para crianças e jovens e pelo vigor coletivo da Cia. Paideia, do Núcleo Jovem de Vivência Teatral Paideia e de um grupo, grande e impossível de nomear individualmente, de amigos, familiares e colaboradores, nos foi oferecida uma experiência memorável, que resgata o caráter de festa, de celebração, que está na origem da palavra “festival”.

Seria impossível detalhar cada um dos espetáculos, cada uma das mesas ou oficinas, cada encontro, cada refeição, cada brinde, pois isso exigiria uma reflexão de muito maior fôlego do que eu conseguiria produzir agora. Fazer um recorte das atividades é uma escolha difícil, mas diante do desafio me deixo guiar pela emoção e pelas reverberações do que eu experimentei.

Antes de apontar o que para mim sobressaíram como momentos-chave desta edição, cabe nomear presenças que confirmam a relevância do Festival Paideia nos cenários nacional e internacional: da ASSITEJ Internacional, Bebê de Soares (Vice-Presidenta), Prof. Dr. Paulo Merisio (Conselheiro do Comitê Executivo / PPGAC/UNIRIO) e Marisa Gimenez Cacho (ex-Secretária Geral); da Rede de Festivais Internacionais Brasileiros de Artes para Crianças e Jovens (FIBRA), Michele Menezes (Mostra Espetacular); Prof. Dr. Flavio Desgranges (UDESC e USP); representantes dos Núcleos Regionais do CBTIJ/ASSITEJ Brasil: Luciana Comin e Marconi Arap (TECA Teatro – Salvador/BA), Elis Ferreira (Teatro da Pedra – São João Del-Rei/MG) e Paulo Merisio e Ricardo Augusto (Trupe de Truões – Uberlândia/MG); representantes de instituições apoiadoras e parceiras: Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado, Secretaria Municipal de Cultura, Instituto Goethe São Paulo, Consulados da Holanda e da Suíça, Instituto Mahle e Sesc São Paulo.

Em uma programação com 15 espetáculos, 4 oficinas, performances, aberturas de processo, palestras, rodas abertas, mesas de reflexão e debates, com a presença de artistas, pesquisadores e gestores da Holanda, Suíça, Portugal, México e Argentina, além de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, o Festival estendeu-se por 5 espaços culturais da zona sul de São Paulo.

Meu primeiro grande destaque vai para a programação da sexta-feira, dia 23. O dia começou com o encontro final de uma oficina de três encontros com a encenadora Liesbeth Coltof e o dramaturgo Dennis Meyer, da Holanda. Reunindo participantes do Festival e integrantes da Cia. Paideia e do Núcleo Jovem, a oficina abordou a representação da menina e da mulher no teatro juvenil, promovendo uma profunda e rica reflexão sobre ancestralidade, memória e intergeracionalidade, e também sobre lutas, conquistas e desafios do feminino na sociedade. A seguir, a suíça Margrit Gysin, parceira de longa data da Paideia, trouxe o delicado “A Cabra Encantada”, solo que transborda afeto e bom humor, ao tratar da vulnerabilidade e do cuidado. Logo depois, com inspirada atuação de Sandra Vargas, do Grupo Sobrevento, o Festival apresentou “Terra”, poema cênico para a primeira infância, que evoca a memória, os laços afetivos e o amor que nos constituem. Com condução do crítico teatral Dib Carneiro Neto, foi realizada também neste dia uma mesa de reflexão, com a participação de Amauri Falseti, Luciana Comin, Omar Alvarez, Paulo Merisio e Poliana Bicalho. O tema – Perspectivas Regionais do Teatro para Crianças e Jovens – desdobrou-se em relatos e discussões sobre políticas públicas para o setor e sobre o desejo de que encontros como este gerem e fortaleçam fóruns permanentes sobre as artes para as infâncias e juventudes. À noite, o solo “Almarrotada”, com Melina Marchetti, conquistou o público ao literalmente verter sobre o palco da Paideia histórias e desejos da mulher colocada no papel de cuidadora e abriu janelas sobre sua conquista de protagonismo. O dia encerrou com uma mesa sensivelmente mediada pela escritora Gabriela Romeu, com a participação de Liesbeth Coltof, Marisa Gimenez Cacho, Melina Marchetti e Sandra Vargas, que trouxe outros olhares sobre o(s) lugar(es) da menina e da mulher no teatro.

É impossível não destacar a programação apresentada pela própria Cia. Paideia – com a estreia do espetáculo “A Menina de Uruçuca” e a abertura de processo “Para Viver a Liberdade” – e pelo Núcleo Jovem de Vivência Teatral Paideia – com a nova montagem de “Se Essa Rua Fosse…” – exemplos vibrantes da potência criativa e pedagógica deste Teatro-Escola de Santo Amaro. Por último, a noite do sábado, dia 24, contou com a estreia da nova montagem de “O Coração de um Boxeador”, dando início às comemorações dos 25 anos da companhia. Com direção de Amauri Falseti e texto de Lutz Hübner, o espetáculo emocionou o público do Teatro Paulo Eiró ao reapresentar a premiada dramaturgia de Hübner e ao homenagear o ator Flávio Porto, de 83 anos, que durante vários anos interpretou o boxeador Leo.

Meu último destaque vai para o espetáculo escolhido para fechar a programação artística deste ano, “Partidas”, do Teatro da Pedra, de São João Del-Rei, Minas Gerais. A partir de quatro histórias reais de vidas cindidas, costuradas por músicas do cancioneiro caipira, o coletivo mineiro faz uma emocionante celebração da vida. Ao final, a fala do diretor Juliano Pereira reverberou na plateia lotada: “A arte vai nos ajudar a vencer a barbárie.” Um fechamento de ouro para o Festival Paideia!

Com curadoria e direção geral de Aglaia Pusch e direção artística de Amauri Falseti, artistas, educadores e gestores por quem nutro imensa admiração e respeito, o Festival Paideia cumpriu, com brilho, o desafio que propõe no seu próprio nome: abriu não uma, mas muitas janelas para a utopia. Quando nossos sonhos são sistematicamente sabotados e negligenciados por quem detém o poder e por uma realidade que pode parecer intransponível, a Paideia reinstala a esperança e a perspectiva de um futuro melhor. Ainda que a palavra “resistência” tenha se tornado lugar-comum entre os fazedores de teatro, com o Festival Paideia ela se ressignifica a partir de tantos atravessamentos que é impossível não se deixar encantar e desejar engajar-se de uma forma ou de outra. A quem ainda não vivenciou este que é um dos mais importantes festivais internacionais de arte para crianças e jovens do Brasil, fica o convite para a próxima edição.

Como afirma Aglaia Pusch: “Nosso motivo principal é fazer uma grande festa do teatro onde a esperança e a força para continuar são servidas como alimento para a nossa continuidade. Esta grande comunhão nos inspira a buscar sempre melhores formas de criar teatro para crianças e jovens.”

Posso testemunhar que estes objetivos foram alcançados com total êxito em 2022. Que aos atuais parceiros e apoiadores do Festival se somem muitos outros, para que esta trajetória de sucesso continue de forma plena. Que venha a 17ª edição. A festa continua e eu já confirmei presença. Vida longa ao Festival Paideia!

(* ) Ator, dramaturgo, diretor e pesquisador; mestrando em Artes Cênicas (PPGAC/UNIRIO); e presidente do Conselho de Administração do CBTIJ/ASSITEJ Brasil.