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A ideia do Seminário Permanente de Teatro para a Infância e Juventude começou a ser esboçada em alguns papos meus com pessoas da classe, particularmente o Daniel Herz e a Suzanna Kruger, sobre as dificuldades que tínhamos para levantar e manter nossos projetos artísticos. Achava então que devíamos nos reunir – nós, os fazedores de teatro – para trocarmos ideias e experiências, principalmente no campo da produção, visto que, do ponto de vista artístico, eu estava (e estou) convencido da maturidade do teatro infanto-juvenil que estamos fazendo. A ideia foi crescendo em papos com o meu grupo, o Núcleo de Teatro para a Infância, e, finalmente, pôde se concretizar graças ao convite da Secretária Municipal de Cultura, para que ocupássemos – eu, Aderbal Freire-Filho e Gillray Coutinho o Teatro Ziembinski com o nosso projeto artístico, do qual o Seminário fazia parte.

Com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura / RioArte / Rede Municipal de Teatros, conseguimos a estrutura necessária para a realização do Seminário, bem como a sua posterior publicação em edição da revista Cadernos de Espetáculos. Todos os objetivos foram cumpridos, como o amigo leitor, neste momento, pode comprovar. Cumprimos assim uma tarefa de documentação histórica que pretendemos levar adiante com outros encontros, como os que já estão anunciados para o ano de 1998.

Por outro lado, nossa intenção não é apenas a de documentação, e sim (talvez, principalmente) a da discussão dessa realidade a partir desses depoimentos. Daí a sua publicação para termos a referência do que e como acontece e, em cima dessa realidade, levantarmos questões, temas, localizarmos as afinidades e as experiências diversas e fazermos com que essas ideias circulem e se transformem de novo em ação. As presenças de Lucia Cerrone e Maria Helena Kühner como observadoras constantes dos debates e, como consequência, suas análises aqui publicadas são uma colaboração muito especial para o entendimento dos depoimentos. Esta publicação também proporcionará a expansão deste debate a todos aqueles interessados no assunto e não só aos que puderam estar no Zimba por ocasião dos seminários.

Também eu, que acompanhei todos os encontros no papel de “animador” (meu Deus, quantos micos!!), compareço com algumas linhas sobre o assunto que, no fundo, me motivou a criar o Seminário: a questão da produção. Como levantar a grana necessária para colocar o espetáculo em cena? Como pagar a ficha técnica? Como manter financeiramente um grupo? Como os grupos fazem pra viver? Será que sou só eu que estou duro? Como resolver a questão preço do ingresso x custo de produção? E o público pagante, cadê ele?

Essas questões, ligadas ao dia-a-dia imediato, que sufocam e oprimem todos os artistas/produtores que estão nesse momento buscando alternativas de sobrevivência, não têm respostas tão imediatas como gostaríamos, movidos pela urgência que a vida nos impõe, mas encontraram no Seminário um palco plural, aberto, democrático e, acima de tudo, ávido de informações para que cada um possa filtrá-las e partir para suas próprias conclusões.

Foram tantas e tão diversas as experiências e, ao mesmo tempo, tão conhecidas e próximas! Essa proximidade me impõe, inclusive, uma certa dificuldade de elaborar as ideias com a clareza que gostaria, tão envolvido estou com essas questões na minha prática diária, e confrontar teoria e prática é sempre uma tarefa delicada! De todo modo vão aqui algumas anotações, alguns “cruzamentos para a área”. Quem sabe, a partir disso, algum artilheiro esperto não tenta o gol.

A primeira tendência que me chama a atenção, e que surge com bastante força nesses anos 90, são as companhias estáveis de repertório. Praticamente, todos os grupos que se apresentaram são companhias estáveis, com suas variantes. Entenda-se por estável um grupo de pessoas que se mantém constante em todas as produções, podendo ter outras pessoas que gravitam em torno e participam de algumas de suas produções. A melhor definição de companhia para caracterizar esses anos 90 é a do Daniel Herz: “Fazer teatro em companhia uns dos outros.” Na contramão da era da globalização, do livre mercado (livre de quem?), os artistas compreendem que, mais do que nunca, têm de estar juntos para viabilizar seus projetos.

A falência do teatro comercial, do produtor (aquele que banca, que contrata, que investe) e mesmo o teatro de estrelas (atores que têm prestígio junto ao público por estarem em alguma novela de TV) já não atrai o público (com suas exceções, é claro). Desta forma, herdando uma crise de credibilidade dos palcos e a desconfiança das plateias, só nos resta estarmos juntos com nossos semelhantes, em companhia daqueles que desfrutam dos mesmos ideais, para seguir adiante. E claro que essa estrutura trará uma nova ordem social para as produções, que tendem a incluir a ficha técnica na cooperativa, tendem a destacar alguns membros para se profissionalizarem em outras áreas da produção (divulgação, programação visual, montagem de luz, confecção de adereços e figurinos etc). Algumas companhias se transformam em verdadeiras escolas formadoras de homens e mulheres de teatro. Com isso, os custos de produção caem a níveis aceitáveis. Se fôssemos orçar uma produção “a sério”, com os custos praticados pelo “mercado profissional”, poderíamos chegar a cifras de R$ 150.000,00 ou mais, sem exageros. No entanto, algumas das melhores peças produzidas por esses grupos ao longo dos anos podem não ter saído por muito mais do que R$ 5.000,00. Não levanto este assunto para nos vangloriarmos por gastarmos pouco. Só conseguimos isso por conta do não pagamento da nossa própria mão de obra, na expectativa de algum retorno de bilheteria. Isso é justo? É claro que não. Não é justo que um profissional não ganhe por seu trabalho. Se trabalha, tem de ganhar. No entanto, a atual situação do mercado, seja do público que está retraído (de tudo se faz desculpa para que ele não apareça: é a chuva, é o sol, é o futebol, é a eleição, e o que mais você pensar), seja dos altos custos dos serviços (cenotécnica, aluguel de equipamento, material gráfico etc), nos obriga a fazermos assim – des-profissionalizando o teatro, diriam alguns, de certa maneira, com razão. Afinal, muitos de nós aceitam trabalhar por qualquer preço, às vezes até pagando.

No Rio de Janeiro, isso é um problema grave. Os testes para comerciais, por exemplo, quando pagam, pagam uma indignidade. No entanto, os produtores de elenco não têm a menor dificuldade de mobilizar dezenas de atores para tentarem a sorte grande. Por isso, a cooperativa das companhias é uma faca de dois gumes, pois viabiliza a companhia baixando os custos artísticos. Formam bons atores, mas colocam dezenas de desempregados no mercado.

Por outro lado, as companhias permanentes de repertório demonstram o amadurecimento das relações de trabalho e do compromisso com o espetáculo, que não se esgota em uma temporada, inclusive do ponto de vista financeiro. Alguém que quer encarar o mercado com profissionalismo tem de ter uma visão de longo prazo do seu produto, para viabilizá-lo e poder, de alguma forma, almejar o pagamento justo para o pessoal envolvido, uma caixa para próximas produções etc. Com os espetáculos em repertório e os elencos fixos (já que são uma companhia) se torna mais dinâmica a carreira deste espetáculo, que ganha uma sobrevida (às vezes bem maior que a primeira temporada) e a possibilidade de vendas a longo prazo, planejamento para sair da cidade pa­ra temporadas em outras localidades, outros estados, apresentações em festivais, e nos circuitos de compra de espetáculos oficiais (eventos ligados a secretarias de Cultura ou de Educação do estado ou do município). Com isso, abre-se, a longo prazo, a possibilidade de se pagar ou obter lucro com o espetáculo, descobrindo novos mercados, atingindo novos públicos. Ou seja, não dá mais para se pensar numa temporada de três meses para crítica, jurados de prêmios, amigos e família. Nenhuma dessas categorias de público garante financeiramente um espetáculo (talvez eu esteja sendo injusto com as famílias que, em tantos casos, sustentam nossos artistas). Um investimento sério num espetáculo profissional tem de ser planejado para permanecer pelo menos dois anos em atividade, para justificar a sua criação. As companhias estáveis de repertório propiciam esse planejamento. Romeu e Isolda, dos Atores de Laura; Marco Pólo, do Núcleo de Teatro para a Infância; Tem Areia no Maiô, de As Marias da Graça; A História de Topetudo, de Mônica Biel & Ana Adelaide, são peças que estão pelo menos há quatro anos em cartaz e que, volta e meia, são reapresentadas no Rio ou participam de festivais e temporadas em outras cidades e, em alguns casos, em outro país.

Várias experiências já nos mostraram que o público quer assistir a bons espetáculos. Quando os eventos são subsidiados e permitem a redução do preço do ingresso, ou mesmo a entrada franca para a comunidade, são sempre um sucesso. Essa foi a política adotada pelo Centro Cultural Gama Filho, dirigido pela Lúcia Coelho; é a experiência que a Karen Acioly tem tido no Centro Cultural da Light em sucessivos espetáculos; foi a experiência da Mostra de Teatro Infantil do Carlos Gomes e tantas outras… Espetáculos de qualidade aliados a ingressos baratos ou mesmo gratuitos significam casas cheias para deleite dos artistas e do público. Essas iniciativas têm que ser incentivadas e incrementadas pelo poder público e pela iniciativa privada.

Outra observação: parte dessas companhias, e isso é uma característica interessante, são formadas a partir de cursos de teatros cujos professores se tornam diretores das companhias e os alunos, o elenco. Isso é um paradoxo curioso; as salas de espetáculo estão vazias, mas as salas de aula de teatro estão repletas. A profissão de ator, por influência decisiva da televisão, ganhou um status que faz com que mães e pais empurrem seus filhos para salas de testes de novelas e comerciais. Ser ator, jogador de futebol ou político, eis as profissões que, no imaginário das nossas classes média, baixa e até mesmo alta (um exemplo é esse rapaz, de “boa família”, Luciano, pai do filho da Xuxa), são as boas, aquelas que vão assegurar o futuro da família inteira. Daí a proliferação do número de cursos de teatro e escolinhas de futebol. Já os cursos de política, com exceção de algumas palestras do Álvaro Valle e do César Maia, graças a Deus, ainda não são tão frequentes.

A questão da profissionalização da produção é o ponto de ruptura que poderá mudar o destino das companhias surgidas nos anos 90, tornando-as realmente estáveis. Isso, de alguma forma, vem acontecendo. A entrada de uma empresa do peso de uma Coca-Cola no mercado, com os patrocínios e o Prêmio Coca-Cola de Teatro Jovem, além de demonstrar o potencial de marketing do nosso segmento, de certa forma exigiu dos grupos/produtores uma certa organização no planejamento e na apresentação dos projetos. As leis de incentivo fiscal engrossam essa necessidade: quem quiser captar recursos tem que estar organizado, com o projeto pronto com um ano de antecedência. Na mídia, também é inegável o avanço da conquista de espaços. Os principais jornais e revistas mantêm críticos e colunas especializadas, além dos cadernos culturais que, cada vez mais, vêm abrindo espaço para o teatro infanto-juvenil – coisa que há dez anos era a principal reivindicação do MOTIN (Movimento Teatro Infantil). A semente lançada pelo MOTIN vingou (valeu, Alice Koenow!!) e se transformou no CBTIJ (Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude), filiado à ASSITEJ (associação internacional), que, aos poucos (acaba de ser eleita a segunda diretoria), vem construindo uma organização política e de intercâmbio nacional e internacional para os nossos trabalhos. A própria conquista de um público novo, o jovem, se tornou um viés da comercialização dos espetáculos e da produção. O estouro de Confissões de Adolescente afirma o que o Damião (Carlos Wilson) já tinha antevisto desde o início da década de 80. O público jovem estava ansioso por ser visto no palco, dentro e fora dele.

Esses são aspectos importantes, mas que não estão conseguindo frear o constante declínio do público pagante e nem, principalmente, resolver a equação dos custos do teatro e de sua comercialização, seja através das temporadas, da venda dos espetáculos ou de eventos especiais que poderiam garantir a subsistência dos grupos.

Na verdade, nenhum dos grupos participantes conseguiu resolver as contradições capital x trabalho, produção x bilheteria. A nossa forma de fazer teatro continua sendo diletante, romântica, utópica, “artística”, mas não encara de frente – e quando enfrenta, não resolve – a questão dos custos de produção versus a real capacidade de capitalização da obra em termos de venda. E essa me parece a questão fundamental a ser resolvida pelos grupos nascidos nos anos 90, sob pena de não sobreviverem à virada da década, do século, do milênio.

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Dudu Sandroni
Ator e diretor teatral e foi o coordenador do Seminário Permanente de Teatro para a Infância e Juventude, realizado durante o ano de 1997.

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Obs.
Este artigo foi retirado do quinto volume dos Cadernos de Teatro, editado na gestão de Aderbal Freire-Filho, no Teatro Ziembinski, durante o ano de 1997. Além do texto acima, O Seminário Permanente de Teatro para a Infância e Juventude, com coordenação de Dudu Sandroni, resultou numa série de bate-papos e textos que podem ser encontrados em nosso site:

Textos
Processo de Criação – Lucia Cerrone
Uma Boa Relação –  Maria Helena Kühner

Bate-Papos
Daniel Herz e Susanna Kuger (Companhia Teatro Atores de Laura)
Sura Berditchevsky
Célia Bispo e Roberto Dória (Companhia Teatral Nosconosco)
Ernesto Piccolo e Rogério Blat (Oficina de Criação de Espetáculos Calouste Bulbenkian)
Marcia Frederico (Companhia de Teatro Medieval)
Lucia Coelho
João Batista (Companhia Dramática de Comédia)