Matéria publicada no Jornal do Brasil – Caderno B (2 col x 24 cm)
Por Renzo Massarani – Rio de Janeiro – 06.12.1966

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El Retablo de Maese Pedro

Antes de elogiar a ópera e seus realizadores é preciso fazer duas ressalvas. O fato de usar Sevilla de Albeniz como introdução do Retablo, numa orquestração má e numa execução estilo cinema mudo, seria como ambientar uma ópera de Dallapicola com um arranjo de Il Bacio ou de La Mia Bandiera. Também o Amor Brujo, que completava a introdução, está tão longe do Retablo, estilística e qualitativamente, que no caso torna-se inaceitável. O próprio Manuel de Falla oferecera a introdução ideal sob todos os aspectos, com o Concerto para cravo ou piano. E cinco instrumentos. Parece-me ainda menos aceitável o péssimo habito (um hábito mundial, aliás) de o encenador alterar, falsear uma obra e as vontades do autor, pelo amor de um achado cênico arbitrário. Retablo de Maese Pedro é para dois grupos distintos de intérpretes: três cantores em carne e ossos, e alguns bonecos em pano e madeira; nasce do amargo, trágico, humaníssimo herói de Cervantes, e da loucura de seus heroísmos aplicados em uma representação popularesca de bonecos, Eliminar o primeiro grupo e substituí-lo por outros bonecos significa renunciar ao contraste básico da obra e, francamente, nada ter compreendido de seu conteúdo.

Mas o achado que partiram Murilo Miranda, Gianni Ratto, Pedro Touron e Ilo Krugli é tão bem realizado e alcança resultados tão pitorescos que, mesmo se discordando inteiramente, seria impossível aceitá-lo com o respeito e até com entusiasmo que merece. O teatrinho montado na Cecília Meireles lembra inicialmente o teatro chinês e os bonecos lembram as marionetes javaneses movimentadas como são por longas hastes de madeira, de baixo para cima. O esqueleto do teatrinho anima-se graças a uma vivíssima série de cortinas coloridas que sobem e descem. Os Bonecos (cada cabeça, uma obra-prima pouco a pouco tomam um aspecto feérico, multiplicam-se, aparecem e desaparecem em grupos, numa dança frenética e alucinadora que o bom e grande Manuel de Falla não quis nem sonhou, mas que afinal alcança momentos de empolgante intensidade. É um bem agradável dever o de lembrar os nomes das almas desses bonecos: Cecília Conde, Helena Parames, Ilo Krugli, Marita Machado, Pedro Touron, Potiguar Sousa, Silvia Aderne, Vicente Rocha).

O lado tão espetacular da representação não deixou de sufocar um pouco o lado musical. Tive a honra de conhecer Retablo em Roma, numa casa de amigos, tocado e cantado pelo próprio autor logo após sua composição e quando ainda manuscrito; a impressão inesquecível, desde então, é de uma concepção musical genialmente rude, áspera, medieval, despida de qualquer enfeite. O palco, suas cores e sua excessiva movimentação abafaram essa característica, e apesar de também a parte musical ter sido preparada com carinho e inteligência. O Maestro Karabitchewsky a manteve sóbria e equilibrada. A quarta encarnação da nossa única orquestrou atuou muito bem, sempre. Maria Rivamar foi um troveiro primário e distraído: exatíssimamente, o que devia ser. O Dom Quixote de Fernando Teixeira foi, momento ou outro, levemente melodramático, mas este moço está progredindo dia a dia, na melhor das maneiras. O Maese Pedro do tenor Álvaro Mendes faltou de uma caracterização mais apropriada.

Com a estreia de Retablo, o Conselho Nacional de Cultura – isto é, seu Secretário Geral, Murilo Miranda – realizou algo de muito importante e prometedor. Oxalá, que seu Teatro Nacional de Óperas, nascido com o Retablo, continue e intensifique por muitos anos suas atividades, num elevado nível de cultura e de arte.