Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 27.08.2018

Fotos: Giovana Del Masso

Peça infantil questiona a rigidez dos conceitos ultrapassados

É Tudo Família, do grupo Catarsis, com direção de Kiko Marques, estimula o público mirim a repensar o jeito antigo de se definir as hoje tão diversificadas relações de ‘parentesco’.

Às vezes, na dramaturgia para crianças, temas atuais são abordados com muita propriedade, mas de forma alegórica, metafórica, fantasiosa, estimulando a imaginação. Os efeitos no público mirim são certeiros. Crianças entendem de metáforas e simbologias como ninguém, embora muitos adultos (até seus próprios pais) as subestimem. Às vezes, a opção é por tratar desses mesmos temas de um jeito mais direto, mais realista, sem o apoio de ‘subterfúgios’ estilísticos ou fabulares. Em ambos os casos, o fundamental é ser honesto, sincero – e ter talento.

Falo isso a propósito do espetáculo É Tudo Família, em cartaz no Teatro Alfa, com o grupo Catarsis (o mesmo do recente Scaratuja, para bebês). O tema é pertinentemente atual: a mudança no que se convencionou chamar de ‘família’, diante de tantas novas configurações de relacionamentos. A abordagem do assunto é realista. Não há fábulas com bichos que falam, não há personagens do mundo da fantasia, não há fadas madrinhas nem lobos maus. Há crianças de verdade, dentro de uma sala de aula de verdade, prestes a apresentar um ‘seminário’ para um professor de verdade – sobre o que, para elas, é uma família de verdade.

E é bom teatro – de verdade.

O convite do grupo para a direção foi acertadíssimo. Kiko Marques é um dos talentos mais reconhecidos da atualidade como encenador e como autor. Aqui, ele topou dirigir um texto alheio: inspirado em livro da autora alemã Alexandra Maxeiner, com dramaturgia de Tábata Makowisk, que, como o grupo Catarsis, também nasceu em Jundiaí, no interior de São Paulo.

De cara, Kiko Marques (Cais, Sínthia, Insones) merece aplausos por não ter feito o elenco – por se tratar de personagens crianças – imitar um suposto jeito infantil de conversar. Todos falam normalmente, com suas vozes próprias. E pronto. A gente acredita que são crianças, graças a outros elementos da interpretação, do gestual, do corporal, da dramaturgia. É irritante ver atores falando linguagem tatibitate, com uma prosódia forçada e uma entonação boboca. Este é o primeiro grande acerto do diretor.

E, assim, o elenco dá conta de tudo com muita desenvoltura, sem exageros nem estereótipos. Aline Volpi, Ana Paula Castro, Marcelo Peroni e Vladimir Camargo estão perfeitos, entregues, dominando o ofício com graça e firmeza. Vladimir Camargo alterna-se com competência entre criança e adulto, pois além de seu personagem-criança também muda o tom de vez em quando e vira o severo professor da classe. Aline é ótima, como a aluna que sempre quer organizar tudo, dizer como fazer, qual o próximo passo – sempre há pelo menos uma criança assim em cada sala de aula. Ana Paula se garante toda jeitosinha, com ótimo jogo de cintura e um bordão engraçado e bastante funcional: “Nada a ver.” Marcelo Peroni, por sua vez, cativa também com bordões, como “Putz!” ou “Pela minha vida, eu não posso tirar zero!”  Todos os quatro têm carisma e ganham a plateia com muita facilidade. A empatia é imediata. São crianças de carne e osso, muito bem representadas, muito próximas de cada um de nós.

E por falar em proximidade, outro grande acerto da direção foi o casamento harmonioso com a cenografia e a luz de Marisa Bentivegna. A premiada cenógrafa cuidou de reproduzir realisticamente uma sala de aula, em que predomina bem ao fundo uma enorme lousa (quadro negro). Pois o que ocorre ao longo do espetáculo é que essa lousa gigantesca vem aos poucos se aproximando da boca de cena, ou seja, vem chegando cada vez mais perto do público, modificando com isso o espaço de atuação do elenco, trazendo todos cada vez mais para o limite do proscênio. Isso é genial, pois é conceitual, não é gratuito. Já que o assunto é justamente lidar com o ex-conceito estático de família, que precisa ser atualizado, a ideia da “lousa que anda” dá a exata medida do quanto a peça também avança na elasticidade de um tema que não pode mais resignar-se ao estabelecido mundo das amarras pedagógicas de antigamente. Cenografia é dramaturgia. O estático desliza, desprega-se, redefine-se aos nossos olhos.

E há a sacada derradeira, arrematadora, da direção. Já que, ao final, os atores já estão na beira do palco, já quase ‘caindo’ para a plateia, por que não fazê-los pular para ‘dentro’ do público? Kiko Marques pensou nisso. O espetáculo, assim, termina com o elenco todo na plateia, conversando com as crianças e os adultos, perguntando sobre suas vidas, suas histórias. É uma dinâmica coerente e sutil. O espetáculo vem se aproximando cada vez mais do público, literalmente. E, claro, depois disso tudo, esse público é convocado a desenhar na lousa os seus próprios conceitos do que seja família.

É Tudo Família é, portanto, pura competência, um espetáculo completo, muito bem pensado e ultra necessário nesse mundo em que, há tempos, família não é mais só “papai-mamãe-filhinhos”.

Serviço

Local: Teatro Alfa – Sala B
Endereço: Rua Bento Branco de Andrade Filho, 722, Santo Amaro, São Paulo
Telefone: (11) 5693-4000
Capacidade: 204 lugares
Quando: Sábados e domingos, às 16h
Duração: 60 minutos
Classificação etária: Livre
Indicação da produção: A partir de 8 anos
Ingressos: R$ 40,00 (inteira para adultos) e R$ 20,00 (meia para crianças, estudantes e maiores de 60 anos)
Temporada: De 4 de agosto até 23 de setembro de 2018