1. Quem disse…?
“Os frutos do trabalho – As sementes da esperança. Mesmo que à primeira vista continuem existindo as dificuldades já exaustivamente arroladas no setor…este foi um ano importante para a luta lenta que se vem travando em nosso país em favor de um teatro de qualidade para crianças… Nada aconteceu de repente ou por acaso. Corresponde, em primeiro lugar, ao coroamento de um trabalho lento e sério que se vem fazendo há algum tempo e que começa a mostrar seus resultados… Os grupos bons já tinham apresentado coisas boas antes, de modo geral, e se preparam para prosseguir nessa linha. Além disso, a situação reflete a importância do estímulo ao surgimento de bons textos, feito no ano anterior.”
“Um balanço do ano começa com um dado simplesmente estarrecedor: em 52 fins de semana se atropelaram 149 espetáculos teatrais para a garotada do Rio… O saldo geral do ano foi positivo e animador… A Air-France conferiu o primeiro Molière de Teatro Infantil, o SNT e a Fundação Teatro Guaíra, além de manterem seus concursos e prêmios, organizaram um Encontro que reuniu os mais representativos nomes do gênero… O Depto. de Parques e Jardins da Prefeitura ousou levar às crianças um série de espetáculos ao ar livre… Mas o aspecto mais importante do ano foi a crescente presença da realidade cultural brasileira nos palcos… uma maneira brasileira que vai surgindo aos poucos…” “…Na hora de votar os melhores do ano era difícil limitar-se a uma lista de cinco”.
“Um ano de muita qualidade – O saldo foi amplamente positivo. Se, por um lado, permanecem no mercado aqueles grupos que se caracterizam pela incompetência e pela picaretagem, fomos saudados, em contrapartida, pela chegada e permanência de elementos responsáveis e talentosos. É a eles que devemos a oportunidade de citar 13 espetáculos de boa categoria, onde nossos filhos puderam ser levados e sair enriquecidos.”
Não se anime muito, leitor/a: esses comentários se referem a…1975 e 1976, e são, os dois primeiros, de Ana Maria Machado e o terceiro de Clóvis Levi, críticos de teatro infantil do Jornal do Brasil e de O Globo na época, em sua síntese desses anos para o Anuário da Associação Carioca de Críticos Teatrais. Mas revelam dados importantes: mais significativo que o número de espetáculos montados (em 77 já seriam, por ex., 193 espetáculos), era a existência de grupos sérios, com um trabalho em continuidade, como o Tablado, Ventoforte, Quintal, Casa de Ensaio, Carreta, Contadores de Histórias, Pedro Domingues etc.; ou a existência de uma política cultural institucional específica para o teatro infantil, expressa em cursos, palestras, seminários, concursos, premiações, campanhas promocionais, circulação e/ou interiorização de espetáculos, festivais, publicações etc.; ou a aproximação dos que fazem teatro para adultos e para crianças com o mesmo empenho e seriedade ( um Ilo Krugli ou um Wolf Maia, por ex.); ou o espaço mantido na grande imprensa em colunas de crítica especializada; ou, além do Prêmio Molière, a criação do Prêmio Mambembe de Teatro Infantil (do SNT) e o Projeto Mambembinho, permitindo um intercâmbio entre grupos cariocas e paulistas. E – dado destacado por ambos os colunistas citados – sobretudo a existência de uma dramaturgia de qualidade, que englobava autores como Ilo Krugli, Maria Clara Machado, Sílvia Orthof, João das Neves, Maria de Lourdes Martini, Maria Luísa Lacerda, Benjamin Santos, Ricardo Filgueiras, Chico Buarque, Cecilia Meirelles e outros mais. O que permitia que Ana Maria concluísse 1976 dizendo: “Ou seja, no geral, as coisas andam bem. Não por estarem chegando de presente. Mas por estarem sendo feitas, fabricadas, construídas no trabalho de cada um e na soma do trabalho de todos. Ainda muito sem recursos. Mas com crescente consciência.”
2. “Mudaria o Natal ou mudei eu?”
perguntava-se nosso Machado de Assis, cujo centenário se comemorou neste ano de 2008. O “Natal”, ou seja, o contexto, as circunstâncias mudaram, e muito. Caiu para menos de um terço daquele total o número de espetáculos montados nos dois últimos anos (70 a 77 espetáculos). Em 2007, cresceu, talvez, o dos que se incluem naquela “incompetência” e “picaretagem” que Clovis Levi ainda lamentava. Os órgãos responsáveis pela política cultural (onde, ainda…?!) omitiram-se quase por completo, e deixaram o teatro entregue ao mercado e sua lógica – que é a de ver cada “produto” como objeto de marketing, avaliado apenas segundo a visibilidade que possa dar ao patrocinador. Sumiram da mídia as colunas especializadas de crítica que orientavam as escolhas – tanto dos pais, para não levarem as crianças apenas ao teatro “mais perto de casa”, quanto dos empresários para não cederem suas casas de espetáculos a qualquer produção, ou ainda das áreas de educação para não comprarem espetáculos de má qualidade para percorrer escolas apenas porque a temática lhes pareceu “educativa”. Autores novos, que certamente existem (seu número, nos concursos realizados, o prova) não apareceram nos palcos, onde ainda se mantiveram infindáveis remontagens e “adaptações” de cinderelas, patinhos feios, joão e maria, baratinhas, ou canhestros arremedos de filmes e programas de sucesso na TV, sem nenhuma surpresa gratificante em termos de dramaturgia – que continuou sendo o “buraco negro” dos espetáculos vistos. Também na cena, em 2007, predominaram recursos formais rotineiros, desgastados, com total falta de imaginação ou ousadia criativa, evidenciando serem produções visando apenas ao “consumo”, nas quais a avaliação pelo número de espectadores que se consegue arrebanhar é a medida de “sucesso”, mesmo quando marcadas pela vulgaridade, a apelação, a má qualidade e o vazio em termos de ter o que dizer. Felizmente, o público infantil, solicitado pela enorme variedade de produtos oferecidos a seu “consumo”, em tv, cinema, livros, revistas, jogos etc., vem desenvolvendo um nível maior de exigência e senso crítico, e por isso voltando as costas a esse tipo de espetáculo. O que leva, porém, a uma sintomática queda na idade dos espectadores – que hoje ficam, em média, entre 1 e 6 anos de idade e, em círculo vicioso, a eles condicionam negativamente o nível das produções.
3. O que poderia ter havido de positivo em tal quadro? E em que sentido houve, em 2008, mudanças por parte de criadores e produtores para enfrentar esses desafios?
Em primeiro lugar, a confirmação de ser a dramaturgia o alicerce de uma boa produção: os melhores espetáculos de 2007 partiam já de bons textos, mesmo quando não inéditos ou novos: O Dragão verde (Maria Clara Machado), ou Depois da Língua do Nhem (Cecília Meirelles), ou a curiosa dramaturgia cênica montada sobre trava-línguas em A Aranha arranha a Jarra (Demétrio Nicolau), ou um texto anualmente remontado em Pernambuco e vindo pela primeira vez ao RJ, O Baile do Menino Deus, de Ronaldo Correia de Brito e Francisco de Assis Lima. Em 2008, o leque de escolhas cresceu: se, em 2007, havia sido difícil, para o júri do Prêmio Zilka Sallabery, indicar 4 bons textos – e, como assinalamos, os indicados nem eram inéditos – em 2008 vimos surgir textos dos mais diferentes matizes, que levaram a uma relação de 12 textos indicados, e todos com qualidade: A Viagem de Zenão (Carlos Cardoso), a partir de um fato e personagens históricos; o fantasioso e imaginativo A ver Estrelas (João Falcão); uma provocação ao que seja a linguagem teatral em Chiquinho Quinta-feira (Liliana Laccoca); a utilização da linguagem dos palhaços em A Incrível Viagem da Família Aço, unindo com sensibilidade dois temas dificeis: a morte e a diversidade cultural do país; na mesma linha, o comunicativo Maria Eugênia (Luiz Igreja); uma boa teatralização de Clarice Lispector em Quase de Verdade; o resultado de um trabalho comunitário de cunho pedagógico em Vote em Mim.
Auspiciosa também foi a presença de diretores experientes, que se fez sentir na concepção geral dos espetáculos, em uma escrita cênica mais expressiva (como no caso de Tecendo Vassalisa), ou trabalhando com recursos multimídia em busca de um visual mais cuidado (como em Um Garoto chamado Rorbeto), ou dando atenção especial à trilha sonora, como emA Fabulosa Corrida de Virgulino Lebre e Mestre Tartarugo. Também foi significativa a constatação de que não são necessariamente as “grandes produções” que se mostram as mais expressivas e comunicativas, sobretudo quando contam com um bom trabalho de atores: Draguinho, Maria Eugênia ou Quase de Verdade podem ser bons exemplos.
Outros grupos confirmaram suas reais qualidades, mesmo quando não apresentaram maiores avanços ou inovações em relação a seus trabalhos anteriores. São os que compõem a relação da Mostra do SESC CBTIJ, que percorre a periferia e o interior do estado do RJ, e a dos Espetáculos Recomendados pelo CEPETIN. Aliás, uma resposta positiva à falta de estímulos oficiais tem sido a capacidade de organização e associação dos próprios criadores e produtores, como no caso dessas duas entidades: o CBTIJ – Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude, mantendo um trabalho ativo de formação de plateias e abertura de mercado de trabalho; e o CEPETIN Centro de Estudo e Pesquisa do Teatro Infantil, com sua preocupação de estímulo à qualidade do que se produz para a criança. Somando esforços e assumindo iniciativas, suas atividades incluem não só a informação como a formação de todos os que de alguma forma trabalham com a criança, como se evidencia em seus sites: www.cbtij@cbtij.org.br e www.cepetin.com.br que criam na Internet uma resposta positiva ao vazio aberto na mídia. É desses dados que surgem as “sementes da esperança” que acima lembramos, de fazer do teatro (te-atrium) realmente um lugar de ver, de propor situações, gerar ideias e reflexões, con-mover, encantar, provocar a magia, a ludicidade, a invenção e a criação tão necessárias neste mundo complexo e tão ameaçado pela in-diferença, o desencanto, a passividade e a massificação crescentes.
Maria Helena Kühner
Escritora de peças teatrais para adultos e crianças, ensaios, pesquisas, literatura infanto-juvenil