Compreendendo dramaturgia como o desenvolvimento de um drama proposto como cena, ou seja, o desenvolvimento cênico de uma ação ou conjunto de ações em torno de um ou mais conflitos, o que pode ser literário ou não, relaciono o texto teatral mais à cena do que à literatura, principalmente quando se trata de texto destinado ao público infanto-juvenil. Não por rejeição à literatura, arte à qual tenho dedicado parte significativa de minha vida e pela qual declaro a mais completa paixão, mas pela busca de libertá-lo do rigor formal com as palavras que é próprio do texto literário e corresponde, em certa medida, à expectativa estética do público adulto.
A criança, contudo, diferentemente do adulto, relaciona-se com a beleza e a arte privilegiando o fazer, ao invés da apreciação. Sua vivência estética está vinculada ao contato direto com as coisas, com as pessoas, com a natureza. Sua relação com o mundo é inteiramente poética. Por isso mesmo, a convivência com elas, principalmente com a que ainda nos habita, pode tornar o mundo e o absurdo da existência mais suportável para nós. Um contato que costuma ser praticamente anulado pelo trágico ritual da passagem de cada indivíduo para a idade adulta. Passagem que esconde, na verdade, um logro, pois nos exige esquecer a criança que fomos e nunca deixaremos de ser, a não ser mentindo para nós mesmos.
Em uma oficina que, há vários anos, coordeno na Universidade Federal de Pernambuco, em primeiro lugar, tento, junto com os alunos, exercitar a língua própria da criança. Língua, o “criancês”, que me foi ensinada pela primeira vez, em 1985, por três jovens, de idade entre 10 e 17 anos, da cidade de Pombal-PB, num espetáculo problemático, do ponto de vista técnico, artístico e pedagógico, mas de incomum resultado quanto à comunicação com as crianças, exatamente por ter sido espontaneamente escrito com base nesse idioma. O espetáculo chamava-se A nave de Pim-Pom e seu texto passou, desde então, a enriquecer tanto cursos que ministrei para alunos de graduação e pós-graduação, quanto experimentos dramatúrgicos desenvolvidos por alunos que passaram a trabalhar com Teatro-Educação.
O “criancês” já foi alcançado em diversos textos produzidos pelos alunos dessa oficina. Textos que passaram a lhes servir de referência em sua atuação profissional, ao saírem da universidade e se tornarem arte-educadores de teatro. O exemplo de maior sucesso foi, sem dúvida, O rapto de Rodolfo, texto criado na oficina, posteriormente ampliado e montado profissionalmente, que já cumpriu várias temporadas, tendo, recentemente, feito parte da programação do 1º Festival de Teatro Infantil de Pernambuco.
Se o “criancês” é o idioma básico para a construção de textos de maior comunicação cênica, essa dramaturgia que perseguimos na oficina apresenta também outros requisitos. Os elementos nucleares são, naturalmente, o de toda e qualquer dramaturgia: conflito, enredo e ação.
Por essa razão, não vou aqui me deter sobre eles, a não ser para lembrar que um dos equívocos mais comuns do teatro para crianças tem sido o de se confundir ação com movimento. Ação pode se expressar por meio de movimento, contudo fatigantes correrias pelo palco, como ocorre com frequência, não representam, necessariamente, uma ação ou conjunto de ações.
Por outro lado, considero importante esclarecer que sentido atribuo ao elemento enredo. Este, segundo Samira Nahid de Mesquita, pode variar de sentido, “mas não perde nunca o sentido essencial de arranjo de uma história”. Portanto, contém sempre “uma história”, constituindo “o corpo de uma narrativa”. Esse é o modelo narrativo tradicional, que ainda persiste, apesar de ter sido bastante transgredido pelas poéticas narrativas surgidas no século XX. Para Patrice Pavis, o enredo “é o estabelecimento cronológico e lógico dos acontecimentos que constituem o esqueleto da história representada”. Um conceito que se adéqua igualmente à noção de fábula, que, a isso, apenas acrescenta o caráter de narrativa mítica, “uma espécie de reservatório de histórias inventadas, inscritas na memória coletiva”, como afirma Jean-Paul Ryngaert.
A respeito dessa questão, acrescenta Samira de Mesquita: cada evento da narrativa mítica “possui uma significação e se articula logicamente com os demais”. Um fato que, em seu conjunto, acaba por proporcionar explicações sobre as coisas da existência, da vida e do comportamento humano.
Levando em conta as especificidades do público infantil e a força pedagógica que esse teatro inevitavelmente exerce, há um fator fundamental a ser considerado. O meu convívio de anos com esse universo levou-me a reconhecer que a expectativa maior de uma criança que generosamente senta num teatro, durante cinquenta a sessenta minutos, para apreciar o desenvolvimento de um espetáculo teatral a ela dirigido, é a de poder defrontar-se com a vida, seus perigos, seus caminhos e descaminhos, passando por todas essas experiências sem nenhum risco pessoal, protegida que está pela fantasia que o espetáculo lhe oferece. Fica claro, então, que, aquilo que na tríade conflito, ação e enredo, recebe este nome, precisa, na verdade, ser visto como fábula.
Desse modo, nessa dramaturgia, torna-se fundamental a não utilização de anacronias, ou seja, de diferenças entre a organização da história e do discurso.(1)
Além dos três elementos básicos, o texto teatral para crianças requer também atenção sobre algumas questões de suma importância para a comunicação com o público infantil. Eu as divido em duas categorias:
Elementos Complementares
a) Falas curtas – O caráter abstrato da linguagem verbal pode dificultar a comunicação com a criança, pois a aquisição desse tipo de inteligência só se dá no começo da adolescência. Como o mundo da criança até esse momento é dominado pelo concreto, ela percebe com mais propriedade aquilo que vê do que aquilo que ouve. Por essa razão, é que o semiólogo francês Richard Demarcy aponta que o espectador criança é muito mais atento ao que vê na cena, ao contrário do adulto, que percebe mais aquilo que ouve. Motivo pelo qual ele o classifica como “indigente visual”.
b) Ausência de subterfúgios, complexidades e subjetividades – Por causa da mesma dificuldade no que diz respeito à abstração.
Elementos Acessórios
a) Animismo – Se a criança busca, na ficção teatral, acompanhar o desenvolvimento de situações que ela já enfrentou, enfrenta ou haverá de enfrentar, na tentativa de aprender a lidar com essas dificuldades, o recurso ao animismo reforça o poder comunicativo dessa representação, atuando como um excelente facilitador.
b) Música – Já disse, em meu livro A linguagem no teatro infantil, que a música é um elemento motor, capaz de exercer uma função geratriz sobre o interesse e a criatividade da criança.
c) Humor – Sobre este ponto, é preciso atentar para o fato de que é no insólito que se localiza a grande fonte de riso do público infantil. Não é à toa que programas de televisão para crianças costumam usar e abusar de recursos como o pastelão, os trambolhões, as imagens aceleradas e as inversões de gênero.
d) Maniqueísmo – Deixar claro, por meio da ação e não do discurso, o bem e o mal, com suas naturezas distintas, não é uma ameaça à formação da criança, mas pode ajudá-la a fazer esse reconhecimento. Não sei de ninguém, por exemplo, que, tendo sido criado ouvindo ou lendo os tradicionais contos de fadas, tenha acabado por se confundir, acreditando que bem e mal estejam separados neste mundo, existindo em pessoas distintas e não em todas as pessoas.
Finalizando estas anotações, gostaria de referir que, no centro de todos os ensinamentos que recebi das crianças, em cerca de trinta anos de convívio, dentro e fora dos espaços acadêmicos, uma ideia consolidou-se, passando a gerir e iluminar todos os meus projetos: a de que qualquer poética dramatúrgica voltada para a criança, precisa absorver essa criança não apenas como espectadora, mas sobretudo como coautora do espetáculo, sem que isso seja confundido com a provocação e a histeria coletiva que muitos espetáculos praticam. A participação autoral da criança deve, isto sim, resultar de um envolvimento espontâneo de cada criança com as situações básicas propostas em cena, de forma tranquila e criativa, não massiva, gradual e coordenada. O que, sem dúvida, requer encenadores e elencos devidamente preparados.
(1) As anacronias são de dois tipos: prolepses (quando se relatam fatos que ainda vão ocorrer) e analepses (quando se evocam acontecimentos já ocorridos).
CAMAROTTI, Marco. A linguagem no teatro infantil. 2. ed. Recife: UFPE, 2002
DEMARCY, Richard e outros. Semiologia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1978
D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1999
GENETTE, Gérard. O discurso da narrativa. Lisboa: Veja, s/d.
MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999
RYNGAERT, Jean-Paul. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996
Marco Camarotti
Ator, encenador, escritor e arte-educador. Mestre em Teoria da Literatura (UFPE) e Doutor em Teatro (University of Warwick – Inglaterra). Professor do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco. Autor dos livros: A linguagem no teatro infantil, Diário de um corpo a corpo pedagógico, Resistência e voz: o teatro do povo do Nordeste, O palco no picadeiro: na trilha do circo-teatro.
Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 8º e 9º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau