Capítulo 1

“Fazer teatro para crianças é igual a fazer teatro para adultos, só que é mais difícil.”

Luigi Pirandello (1)

1.1 – Nota Pessoal

Eu gostaria, antes da introdução propriamente dita à dissertação, fazer algumas considerações pessoais, mas que naturalmente remetem ao trabalho presente.

Primeiro penso ser lamentável o pouco espaço destinado à dramaturgia teatral, tanto nas escolas como em cursos superiores de Letras. Afinal, o teatro também é literatura, literatura dramática.

Naturalmente, esta literatura vai ser transformada em uma encenação, e no espaço cênico irá realizar-se em sua plenitude.

Entretanto, eu acredito firmemente no exercício da leitura teatral, como fruição estética e também como estímulo à leitura de outras literaturas.

A leitura teatral propicia a abertura de diversas possibilidades no imaginário do leitor, visto que não é uma escrita tão descritiva, como um romance, por exemplo. Além disto, a palavra no teatro está diretamente vinculada a uma ação, o que fornece uma sensação de concretude ao leitor. A palavra no teatro é irremediavelmente relacionada a uma ação.

Eu tenho a experiência própria de que a leitura teatral pode estimular o interesse pela leitura em geral. A minha relação com a leitura foi amplamente transformada após meu encontro com as peças teatrais. Esta vivência de concretude, experimentada pela dramaturgia, ampliou-se para outras leituras, como contos, romances ou poesias.

Podem alegar que isto ocorreu pelo fato de ter estudado artes cênicas. Porém, posso alegar que fiz artes cênicas porque fui leitora de dramaturgia.

Já ouvi exemplos similares de outras pessoas, não ligadas propriamente ao teatro. Um amigo argentino contou-me a história de uma senhora, que possuía o hábito de ler peças teatrais em uma biblioteca pública numa cidade do interior da Argentina. Ela adorava este tipo de leitura. Os espetáculos teatrais não chegavam a esta cidade, como em várias cidades do interior do Brasil. Às vezes, esta senhora ia até Buenos Aires. Lá assistia a alguns espetáculos de peças já lidas por ela e sempre voltava decepcionada.

Para mim, esta senhora, em seu processo de leitura, já construía sua “encenação” própria, e ao ver a encenação propriamente dita no palco, decepcionava-se, visto que era diferente da imaginada por ela. Ou seja: a literatura dramática é capaz de propiciar a construção e movimentação de uma cena, já no próprio imaginário do leitor.

O crítico e artista de teatro Carlos Augusto Nazareth, junto com a dramaturga e ensaísta Maria Helena Kühner idealizaram um projeto, através de uma entidade criada por eles mesmos – o CEPETIN – para motivar a experiência do texto dramático nas escolas. Com isso pretendem trabalhar junto às professoras, já que estas, em geral, dizem não saber como usar estes textos em sala de aula. (2)

Quero insistir em que mesmo não havendo a encenação de um texto, a leitura de dramaturgia pode e deve ser vivenciada. O renomado dramaturgo Alcione Araújo escreve, em seu artigo nomeado “Dramaturgia, educação e cidadania” (3), sobre o desmerecimento do texto teatral como possibilidade de representação e interpretação do ser humano e sua sociedade. Apesar de Araújo afirmar a condição da realização do espetáculo para a concretização teatral, o dramaturgo pensa que a dramaturgia em si pode ser um instrumento valioso e dotado, até certo ponto, de força autônoma.

Assim, podemos mergulhar nesta escrita, a fim de analisarmos diversas questões, tais como: a problemática da peça, os conflitos e características das personagens, as motivações das ações destes personagens, os valores contidos nas suas atitudes, etc… Como também, a relação desta história com nossas próprias vidas.

A forma como a maioria das pessoas vê a leitura teatral baseia-se em mera leitura de diálogos, o que a tornaria algo muito desinteressante. Mas não é isto. A leitura de uma peça teatral, se esta for boa, evidentemente, nos levará para o espaço do drama, do jogo, imaginariamente. Como a senhora argentina provavelmente fazia. Ao ler teatro, vamos ao encontro de grandes reflexões sobre a natureza humana; afinal aqui, o pensamento e a palavra não estão separados do gesto. Por sinal, como a criança costuma viver.

Ouçamos Alcione Araújo sobre a referida questão. Aqui estão:

Ler uma peça de teatro não é ler os diálogos, mas as repercussões em cada personagem do que foi dito, a maneira particular e pessoal com que cada personagem absorve as palavras enunciadas – as maneiras de perceber e reagir são reveladores da índole e caráter de cada um. A leitura de uma peça não se limita, portanto às palavras do diálogo, mas estende-se à repercussão das palavras em cada personagem; lê-se a subjetividade das personagens e as relações entre elas, não apenas as palavras. O dramaturgo, diferentemente do romancista, não podendo desvelar as intenções das personagens, oculta-as na maneira de falar, na maneira de silenciar, na sua maneira de perceber e na sua maneira de reagir. Personagens ocultam-se nas falas, nos silêncios, nas percepções e nas reações. Elas se desvelam nas intenções e nas ações. (4)

Com esta colocação, Araújo sugere a importância de ler peças teatrais, (mesmo que não haja desejo de ser profissional do teatro), como uma forma de superar o analfabetismo funcional (5). Esta superação se dará “de maneira lúdica e natural à atitude intelectiva de compreender o que se lê para compreender o que acontece.” (6)

Assim, reafirmo a importância da dramaturgia, independente de sua realização cênica, pois como escreve o dramaturgo, a própria ausência da cena será capaz de estimular a curiosidade e a imaginação do leitor na construção de um palco imaginário. Possivelmente, acrescento eu, este leitor conseqüentemente se sentirá estimulado a ir ao teatro.

Com certeza, este encontro entre a leitura e o espetáculo teatral, se for propiciado desde cedo, será melhor ainda. Assim, é de fundamental importância a existência de um bom teatro infantil, fundado numa consistente dramaturgia, partindo da premissa de que todo espetáculo teatral inicia-se com uma escrita teatral.

Por ser baixa a tradição teatral em nosso país, introduzo neste capítulo um breve histórico de nosso teatro infantil, e após este histórico, explicitarei minha proposta de pesquisa.

1.2 – Panorama do Teatro Infantil

1.2.1 – Histórico

Para contextualizar este panorama, acompanho uma pesquisa de Dudu Sandroni, que resultou na publicação de seu livro “Maturando – aspectos do desenvolvimento do teatro infantil no Brasil”, além de críticas e artigos teatrais publicados em revistas, jornais e internet, de críticos como Carlos Augusto Nazareth, que escreve atualmente para o Jornal do Brasil. (7)

Em seu livro, Dudu Sandroni escreve que o teatro infantil tem como precursor o teatro escolar em seu pior sentido, fundamentado num didatismo e doutrinação, além da ausência de qualquer linguagem cênica e artística.

Por sua vez, este teatro escolar possui suas raízes primordiais no Teatro de Anchieta, de cunho pedagógico e moralizante. Somente em 1944, Paschoal Carlos Magno começou a promover uma proposta real de levar o teatro infantil para além das escolas. Seu projeto intitulava-se “Teatro do gibi”, cujo objetivo era levar o teatro infantil, feito agora por adultos (profissionais e amadores), para vários bairros do Rio de Janeiro.

Já a primeira dramaturgia brasileira infantil, “O Casaco Encantado”, de Lúcia Benedetti, data somente de 1948. Este é considerado o marco inicial do teatro infantil: o surgimento de uma dramaturgia dotada de valor artístico, o que também nos confirma a reconhecida importância do texto escrito para a realização de um espetáculo dito teatral.

O teatro chegou ao Brasil através dos padres jesuítas, em 1561, a pedido de Manuel da Nóbrega. Assim, Anchieta escreveu e fez a representação do “Auto da pregação universal”, entre outras peças.

Este teatro jesuíta possuía a prioritária função de catequizar os índios. As crianças aparecem nas apresentações como símbolos daqueles que ainda não tiveram sua “alma contaminada”, além de trazerem elementos de sua cultura, como danças e músicas, a fim de estabelecerem um elo para a catequese de toda comunidade.

Em outras palavras: a representação consistia num projeto moralizante para toda sociedade, onde as crianças serviam como canal para uma maior comunicação, além de serem, obviamente, também catequizadas. Não era um teatro na concepção artística de hoje e nem um teatro direcionado especificamente para as crianças. Cito aqui um trecho do texto apresentado pelos índios de Guaraparim ao Padre Provincial Marçal Beliarte. Eis o trecho:

Tua vinda benfazeja
nos é venturosa dita…
Guaraparim é bendita,
porque possuis uma igreja!Eu já não quero o pecado;
amo Jesus, sou cristão.
Que ele me guarde a seu lado,
bem dentro do coração. (8)

Dudu Sandroni alerta que veremos mais tarde, cerca de quatro séculos depois, a mesma postura: aliar a representação teatral a um mero uso pedagógico, evidente também nos autores do Teatro Escolar a fim de instruir as crianças.

O mesmo autor considera a presença do teatro de marionetes no século XVIII como um dado histórico de referência importante para o desenvolvimento do teatro infantil no Brasil, visto que esta forma de linguagem cênica é muito utilizada ainda na atualidade. Sandroni assim discorda do crítico Sábato Magaldi, que por sua vez, trata os séculos XVII e XVIII como de um total vazio teatral. Havia sim uma carência teatral, porém Sandroni pensa ser importante não negar este teatro de marionetes, exibido nas ruas, principalmente se estamos discutindo os antecedentes do teatro infantil.

Já no século XIX, a presença da criança no teatro era o reverso do que fazemos hoje. Nesta época, havia companhias infantis, onde as crianças representavam para o deleite dos adultos. As pequenas atrizes, como Leonor Orsat, da companhia Tivoly, Lafayette Silva, além da italiana Gemma Cuniberti, eram intérpretes de textos de Martins Pena, Artur de Azevedo e José de Alencar. O papel da criança, nesta época, era de ator para um adulto espectador. Não havia lugar para a criança espectadora.

Somente no final do século surgirá em nosso país uma produção voltada para a criança, mas mesmo assim, isso não será considerado o início do teatro infantil, por determinados motivos, tais como: as representações eram feitas por crianças que, por sua vez, não desempenhavam o papel de ator propriamente dito; as representações aconteciam nas escolas, para a comemoração de datas cívicas, ou nas casas familiares, em geral, para comemoração de datas natalinas, além do que, a dramaturgia feita não poderia ser considerada como obra de arte, pois estava limitada ainda à mera condição didática e pedagógica. Foi o que se considerou como o Teatro Escolar.

Sua função restringia-se à instrução de valores morais e patrióticos, além da possibilidade de trabalhar a leitura de forma coletiva, visando a melhoria da dicção e do desembaraço social.

Sandroni cita um trecho do livro “Theatrinho Infantil”, de Figueiredo Pimentel, a título de exemplo:

(…) O teatro das crianças oferece ainda a vantagem de ensiná-las a saberem exprimir-se com as entonações de voz exigidas, a saberem falar e “dizer” com graça e expressão, e a terem uma boa dicção, corrigindo até os defeitos de pronúncia, os provincianismos. (9)

Ou seja: enquanto a literatura na escola destinava-se à leitura individual, formalizava-se uma “literatura dramática” escolar, com o propósito, além de didático, de possibilitar uma leitura coletiva, onde apenas questões, de certa forma frívolas, eram estimuladas.

A palavra literatura dramática está entre aspas, porque na verdade, não era um drama proposto, e sim uma narrativa a ser declamada. Às vezes, nem sequer havia diálogos!

Eis o exemplo de um monólogo de Carlos Gois (com indicação para menina de cinco anos):

Conhecem a Caixa escolar? É uma senhora muito rica, que dá roupa, merenda, calçado, livros, cadernos e até confeitos, às crianças pobres. Se a criança não dispõe de meios para frequentar a escola, ela lhe facilita tudo, mas não deixa que a criança fique analfabeta. (10)

Na declamação, visava-se que a criança aprendesse os valores propostos na época, a partir da vivência da palavra falada.

O Teatro Escolar persistirá ainda por muito tempo. Muitas traduções serão feitas, e como sempre, as francesas serão as prediletas. Mais tarde darão preferência a textos nacionais. Além dos bons modos a serem aprendidos, os valores patrióticos serão evidenciados, através de uma proposta de cunho nacionalista. Ademais do já citado Pimentel, outros nomes se destacarão: Coelho Neto, Manoel Bonfim, Figueiredo Magalhães e Olavo Bilac. Porém, o texto teatral continua sendo usado para ser declamado. Não há a presença de jogo cênico.

As primeiras noções de teatralidade vão aparecer somente na década de 1930, com Felix Carvalho, Joracy Camargo e Henrique Pongetti. Técnicas teatrais passam a ser ensinadas às crianças, dando maior atenção à dramatização, distinguindo-a da narração. Em 1933, no livro “A teatrologia infantil”, Felix Camargo escreve:

A narração simples de uma árvore não é teatralizável: teatralizar é viver a personagem de uma ficção. Dramatizar é vibrar, dando alma à personagem que se teatraliza… (11)

O livro de Joracy Camargo e Henrique Pongetti, intitulado “Teatro para crianças”, em 1938, explica vários elementos de uma carpintaria teatral, tais como: coxia, pano de boca, por exemplo, e aborda questões cênicas como a indumentária, a cenografia e a própria encenação em si.

Em um discurso proferido sobre teatro, em 1937, Joracy Camargo faz uma importante colocação sobre o teatro infantil. Ele diz:

Precisamos, portanto, cuidar, com urgência, da formação de futuros espectadores. Quem não entende de teatro, quem não conhece literatura teatral e um pouco da história do teatro, que por sinal é muito atraente, dificilmente gostará de frequentar espetáculos, e nunca terá amor pela arte dramática.(12)

Como disse no início do capítulo, o ponto de partida para alargar os horizontes do teatro infantil, para além das escolas, acontecerá somente em 1944, com o embaixador Paschoal Carlos Magno, em seu projeto “Teatro do Gibi”.

Esta foi, de fato, a primeira concretização de uma proposta efetiva e diferenciada do que se vinha fazendo até então no “teatro infantil”. Agora, inclusive atores adultos serão responsáveis pelo projeto.

Quatro anos mais tarde, acontecerá o marco inicial do teatro infantil. Lúcia Benedetti escreve “O casaco encantado”, a pedido do empresário carioca Francisco Pepe. Neste mesmo ano, uma companhia austríaca tinha apresentado no Brasil um espetáculo infantil, o que entusiasmou o empresário. Porém, quando este desistiu, Paschoal Carlos Magno resolveu levar o projeto adiante. A companhia, Artistas Unidos, tendo à frente a atriz Henriette Morinau, foi responsável pelo espetáculo.

A peça fez muito sucesso, tendo inclusive ocupado horários noturnos de apresentações, além de ter viajado pelo Brasil durante um ano. A autora recebeu os prêmios de “Revelação do ano”, pela crítica, e o prêmio “Arthur Azevedo”, da Academia Brasileira de Letras. Depois escreveu outros textos infantis, sendo um deles musicado por Heitor Villa-Lobos.

A partir do sucesso da peça de Benedetti, artistas de renome começaram a fazer teatro infantil, além de grupos jovens. O Serviço Nacional de Teatro também resolveu dedicar-se ao teatro infantil, e muitas peças novas foram subvencionadas. Finalmente, o teatro infantil desvinculava-se de mero apoio pedagógico/ didático e alcançava o destaque de obra artística.

Também em 1948, o grupo conhecido como TESP (Teatro Escola de São Paulo) estreava “Peter Pan”, no Teatro Municipal de São Paulo, sob o comando de Tatiana Belinky e Júlio Gouveia.

O TESP teve muita importância para a história do teatro infantil com trabalhos feitos até 1964 e foi o responsável pela inclusão deste mesmo teatro na televisão brasileira, em 1951.

Já no Rio de Janeiro, outro nome começava a entrar para a história do teatro infantil: Maria Clara Machado. Em 1953, Machado montava sua primeira peça direcionada ao público infantil, nomeada “O Boi e o Burro a Caminho de Belém”. Foi um sucesso. Machado, em seguida, ganhou dois prêmios em dramaturgia, pela prefeitura do Rio de Janeiro. As responsáveis pelos prêmios eram as peças: “O rapto das cebolinhas” e “A Bruxinha que era Boa”. Em 1955, escreveu aquela que é considerada até hoje sua obra principal: “Pluft, o Fantasminha”.

Maria Clara Machado possui todas suas peças publicadas, o que não é algo fácil. Também teve suas obras montadas no exterior e fundou a conhecida escola de teatro “O Tablado”. Quando se fala na autora, fala-se num nome importantíssimo para o teatro infantil e para o teatro em si. A autora definitivamente elevou o teatro infantil ao patamar de obra artística.

Maria Clara Machado negava com convicção a proposta de ensinar à criança, ao escrever para o teatro. Pensava que devia escrever uma peça para crianças assim como se escreve uma peça para adultos. Nas palavras da autora:

Eu acho que a gente não deve ensinar a criança numa peça. A gente deve montar uma peça como se monta uma de adulto: é um conflito, tem que haver um conflito na peça, é essencial na dramaturgia. (…) uma história tem que acontecer, trabalhar com a imaginação e a fantasia de uma maneira que depende do talento de cada um (…) tem que passar para o espectador um momento de poesia, uma sensação, (…)
Quando escrevemos para crianças somos apenas aqueles que estão abrindo o caminho que vai do sonho à realidade. Estamos criando, através da arte e a partir do maravilhoso, a oportunidade do menino sentir que a vida pode ser bonita, feia, misteriosa, clara, escura, feita de sonhos e realidades. (13)

Penso que este pensamento de Maria Clara Machado continua a valer.

Ainda em nossa atualidade, seu nome é o principal a vir à cabeça da maioria das pessoas quando se fala em teatro infantil. Além do que, ainda hoje, muitas peças suas continuam a ser remontadas.

Porém, depois da autora, outros nomes, principalmente de grupos, vieram a trazer um trabalho de qualidade para o teatro infantil. O crítico Carlos Augusto Nazareth destaca, nos anos 70, grupos como Ventoforte, de Ilo Krugli, HombuNavegandoFeliz Meu Bem e Manhas e Manias, por exemplo.

Segundo a crítica teatral Maria da Glória Lopes, a década de 70 traz uma diversificação de propostas cênicas, entre elas a importância do teatro de bonecos, a incursão no folclore e nas artes circences.(14)

Na mesma década de 70, a pesquisadora Maria Lúcia Pupo analisa espetáculos em São Paulo e destaca os mesmos equívocos que nos lembram o teatro escolar do passado, tais como: moralismos, didatismos, dramaturgia frágil, estereótipos, imagem infantil idiotizada, etc… (15)

Ou seja: continuamos com esforços pontuais na busca do desenvolvimento do teatro infantil, e não um painel forte e integrado de renovações.

Nazareth destaca na década de 80 dois momentos: o primeiro desanimador, pois os grupos antes mencionados extinguiam-se. O segundo, quando uma determinada empresa de refrigerantes resolveu investir no teatro infantil, provocando o surgimento de um boom deste. O teatro infantil apresentava diversos trabalhos com novos nomes e foi desenvolvendo grande qualidade. Após a retirada dos investimentos desta empresa houve novamente uma queda. Os grupos de qualidade não conseguiram manter-se de forma independente e um período de desalento dominou o cenário.

Neste momento difícil, alguns empresários e produtores interessados apenas em “comercializar produtos”, dominaram, de certa forma, o ambiente. Apesar de esforços raros, o painel do teatro infantil retrocedeu em seus poucos avanços anteriores.

Veremos as consequências agora, em nossa atualidade. Por sinal, a época correspondente ao foco de interesse nesta dissertação. (16)

Este breve histórico foi, de certa forma, uma possibilidade de reflexão, a fim de percebermos, entre outras questões, o porquê da fragilidade do teatro infantil nos dias atuais.

1.2.2 Atualidade

Em 1995 Ilo Krugli, no I Seminário do texto teatral e do teatro na escola, realizado na Biblioteca Estadual Celso Kelly, depois que o público colocou suas preocupações, suas questões e sua visão da situação do teatro infantil no país, Ilo teve uma fala comovida:“Ouvindo vocês falarem tenho a sensação de que nada fiz nestes trinta e cinco anos de trabalho, pois, quando comecei as reclamações eram as mesmas que ouço hoje… trinta e cinco anos depois”.Hoje à tarde, assistindo a um espetáculo no RJ, tive exatamente a mesma sensação que Ilo Krugli, em 1995. Parece que nos meus vinte e cinco anos de trabalho com o teatro infantil nada mudou.
E já tivemos momentos gloriosos mesmo de excepcional qualidade e excelência do teatro para crianças. (17)

Em uma pergunta feita por mim ao crítico, por e-mail, este me confirmou o péssimo painel atual do teatro infantil, além de afirmar a necessidade de se fazer algo para mudar esta situação, a partir do próprio sentimento de indignação.

Salvo uma minoria de artistas e organizações como o CBTIJ, CEPETIN e CRTI, o que resta são pessoas sem nenhum trabalho de pesquisa, má formação teatral e isentas de certos escrúpulos, visto que a única preocupação consiste em “caçar alguns níqueis”.

O crítico alerta para a necessidade de discutir mais sobre o assunto nas academias, meios de comunicação, órgãos públicos, etc… (18)

O público está escasso e no momento que o espectador presencia uma encenação equivocada naturalmente se afasta mais ainda do teatro. Assim, não se consolida nunca uma formação de plateia.

Um ponto em comum, entre o mesmo crítico e Maria Helena Kühner, dramaturga e ensaísta, consiste no fato de que não há uma dramaturgia inédita acontecendo nos palcos. Nazareth observa em seu artigo “Por uma dramaturgia renovadora” a necessidade de arriscar e ousar mais. Ao mesmo tempo, reitera a questão do novo ser visto sempre como alvo de desconfiança. Além disto, afirma a proposição de que ainda há muito para se discutir sobre questões essenciais e básicas do teatro para crianças. Estas questões básicas ainda não foram completamente exauridas. Por isto ainda restam perguntas tais como: qual tipo de espetáculo é capaz de agradar tanto ao público como ao crítico? Que qualidades este espetáculo deve possuir? Qual o universo hoje da criança? Ou o que é realmente um espetáculo infantil?

Lembremos que o teatro engloba um texto e uma cena, portanto as discussões se ampliam. Pondero, para não sermos demasiado pessimistas, que se não há um ineditismo, há esforços para se fazer algo de qualidade. Afinal, como foi visto, a história do teatro infantil é recente.

Os estudiosos sobre o assunto em atividade, (críticos e artistas), como os já citados Kühner e Nazareth, além de outros nomes como Maria Aparecida de Souza, Lourival de Andrade Jr., Maria Lúcia Pupo, Valmor Beltrame, entre outros, concordam com o fato de que muito do que já foi apontado como ultrapassado e equivocado na linguagem cênica para crianças, continua no palco ainda hoje (e aqui inclui – se a dramaturgia também).

Uma obra crítica de referência para o teatro infantil foi o livro de Maria Lúcia Pupo “No reino da desigualdade: teatro infantil nos anos 70 em São Paulo”, onde a pesquisadora destacava equívocos na linguagem teatral para as crianças. Infelizmente, estes mesmos equívocos continuam a acontecer e deixam indignados estudiosos e artistas que procuram fazer um trabalho sério.

Maria Aparecida de Souza, em seu artigo “Teatro infantil ou teatro para crianças?” (19), além de Maria Helena Kühner, em seu artigo “Dramaturgia-hoje e sempre” (20), evidenciam este despropósito já observado por Pupo nos anos 70. Algo muito mais sério do que falhas técnicas em um texto dramático. Os equívocos observados relacionam-se fundamentalmente com fatores culturais. Em primeiro lugar, a própria mentalidade cultural caracteriza-se pela desvalorização da criança. Como a criança é um ser humano dependente dos adultos (a princípio), estes acabam tendo dificuldades de enxergá-la como um ser humano potente e dono de um universo próprio. É claro que não estão sendo desconsideradas as relações e interações desta criança com o meio em que vive, mas frisa-se a importância do adulto ver a criança como detentora também de um ponto de vista particular. Não mais vê-la como um ser humano menor, somente como um projeto de adulto. A criança não é um vir a ser, ela está sendo. Seu momento é o momento presente. Assim, o adulto se livra um pouco da posição autoritária de que sabe sempre mais do que a criança, simplesmente porque a sustenta economicamente ou porque tem mais conhecimentos. Desta forma, seria também possível conhecer um pouco mais sobre aquilo que diz respeito ao universo próprio desta criança, e conseqüentemente fazer um teatro que tenha uma dramaturgia que a toque, que realmente se dirija a ela.

Este pensamento já foi abordado pela professora e pesquisadora Dra. Eliana Yunes, em sua tese de doutorado intitulada “A infância e infâncias brasileiras: a representação da criança na literatura”. (21) A autora analisa “a dominação do adulto enquanto ‘construtor’ da obra artística sobre para a criança, mas não num diálogo com a criança”. (22) Yunes escreve:

O que passa a ocorrer em certas obras de certos autores que revolucionam o conceito de infantil em relação à literatura é que a linguagem da obra de arte passa a incluir a criança e sua perspectiva de mundo como parte estruturante da narrativa. Desaparecem os textos fáceis, recupera-se o humor inteligente, a percepção das crises humanas não como conseqüência do viver adulto, mas vivenciadas pela própria infância que participa. (23)

Um exemplo apontado pela pesquisadora é o renomado autor Monteiro Lobato. Em suas obras é evidente a autonomia de pensamento e ação presentes na criança.

Assim não haveria mais necessidade, como a maioria dos estudiosos verifica, da busca frenética do riso, por exemplo, ou uma movimentação excessiva para “prender a atenção” da criança. Ou ainda uma linguagem infantilizada como se ela pudesse melhorar a comunicação. Terminaria a constante de explicações em cena (incluo aqui o problema no texto também) e, ao invés disto, a encenação e o lúdico ganhariam força.

O pior ainda pode acontecer: quando as cenas são feitas e explicadas simultaneamente, numa redundância absurda, ao pensar que a criança não será capaz de perceber o que está sucedendo no palco. E mais: finalmente acabaria o propósito freqüente de ensinar uma mensagem de bons costumes em cada peça teatral. Porque, penso eu, os clichês e estereótipos dizem mais respeito a nós mesmos, adultos, do que ao mundo da criança.

Kühner afirma, no já citado, “Dramaturgia-hoje e sempre”, que se não temos o que contar, nós acabamos disfarçando nossa falta no como contar. E aí, naturalmente, teremos uma concepção cênica equivocada, devido à própria ausência anterior ao realizado. Ter algo importante a contar é primordial.

Para fazer uma dramaturgia de qualidade para crianças é necessário, antes de tudo, conseguir olhá-las como sujeitos inteiros e não meros “apêndices” do mundo adulto. Não é uma tarefa fácil, pois, naturalmente, as vemos sob uma ótica adulta. É necessário tentar ver sob o olhar do outro, e neste caso, tentar ver pelo olhar da criança. E este é um exercício essencialmente teatral; afinal, o teatro não prescinde do outro, ele é inclusivo e generoso por natureza. Se há uma falha no fazer teatro para crianças, há primeiramente uma falha no fazer teatro em si.

Por isto, a importância da análise dos textos teatrais, (o foco e instrumento de minha pesquisa), mas percebo que é impossível analisá-los sem refletir sobre estas questões referidas anteriormente. Estão intrinsecamente ligadas. Ler um texto de dramaturgia para crianças é ler o teatro em si (e tudo que o engloba) e é também ler a criança. E consequentemente, leremos também como o adulto  esta criança, visto que, em geral, este teatro é feito por adultos.

No que se refere à dramaturgia em si, será possível encontrar textos que se dirigem à criança de uma forma que a desvaloriza e mesmo diminua (devido aos equívocos citados acima) e também ressaltar falhas no que diz respeito à estrutura dramática em si (o aspecto formal).

Em referência a este último aspecto, percebo através da análise do acervo de críticas de Carlos Augusto Nazareth para o Jornal do Brasil, um aspecto frequentemente destacado pelo crítico: a tendência atual de mesclar a narrativa e o drama na escrita. Muitas vezes, o texto perde teatralidade, assim como o espetáculo. O teatro, como já vimos, é o lugar para se ver, essencialmente. Já a narração, cuja característica predominante é a valorização da palavra em si, torna-se prejudicada nesta mescla, no momento que o ator tenta mostrar a cena.

Ou seja: nesta mistura de gêneros o equilíbrio se torna difícil e acaba não acontecendo, nem a “contação de histórias”, nem o teatro em sua plenitude. Não quero dizer que o crítico afirme a impossibilidade desta experiência obter êxito, mas para ele, é um equilíbrio difícil de ser atingido.

Outro fato evidenciado por Nazareth trata de um equívoco freqüente nas adaptações dos contos tradicionais, quando o dramaturgo se fixa na trama em si, e esquece o caráter simbólico do conto. Este caráter simbólico, por sinal, é o que justifica o conto de fadas ser contado e recontado até hoje. Ou seja: a sequência da história de “O patinho feio”, por exemplo, pode ser toda mostrada em cenas, mas a questão primordial do conto enquanto essência simbólica não é vista, (o ser diferente, a consequente rejeição, a dificuldade de encontrar o seu próprio grupo etc…), é esquecida.

No caso de textos originais, e que por sinal são poucos, muitas vezes a dramaturgia é frágil. Estudiosos e mesmo escritores admitem a dificuldade em escrever um bom texto teatral. Verificamos na própria história escritores como Machado de Assis, por exemplo, que não conseguiram obter o mesmo êxito como dramaturgo e romancista.

O texto dramático se desenvolve através dos diálogos. A espinha dorsal do texto se estabelece no diálogo, tarefa árdua para o escritor. E o leitor /espectador não pode “ouvir um personagem” falando de forma incongruente com seu perfil (exceto seja proposital).

Quando escreve para teatro, o escritor deve colocar substancialmente sua escrita a serviço destes personagens. A escrita teatral já é compartilhada no próprio momento de sua criação. Mais tarde será compartilhada com diretor, atores, cenógrafo, figurinista etc… Estes profissionais irão mostrar aquela escrita em cena, e somente aí ela se estabelecerá em sua totalidade. E com a participação do público, naturalmente. O dramaturgo compartilha seu texto desde o início. Talvez, por todas estas questões citadas, seja freqüente o fato de muitos dramaturgos serem originariamente pessoas já pertencentes ao universo teatral, seja como atores ou diretores.

Nazareth verifica em suas críticas alguns fatores responsáveis pela fragilidade dos textos originais: um conflito mal estabelecido ou mesmo indefinido, uma ação dramática não bem desenvolvida, ou ainda personagens não bem delineadas ou estereotipadas. Fragilidades, por sinal, passíveis de serem encontradas em qualquer texto teatral, para crianças, jovens ou adultos, seja em originais, seja em adaptações.

Porém, reitero a raridade da presença de textos originais O predomínio de adaptações é marcante no teatro infantil. Por sinal, o mesmo ocorre hoje em relação ao teatro adulto. Há uma falta de dramaturgia original para ambos públicos.

No que se refere às adaptações, observa-se, muitas vezes, uma adaptação parcial dos textos narrativos (contos, romances, lendas, crônicas…) para o texto dramático. Quero dizer: às vezes o ator narra algumas partes (usando recursos teatrais naturalmente), às vezes mostra / faz a cena (propósito essencialmente teatral). Interessante, é que isto também está presente, em nossa atualidade, no teatro em geral, seja para qualquer faixa etária.

Em relação às adaptações infantis, Nazareth verifica (como já observado anteriormente) uma temática relacionada predominantemente às histórias dos contos tradicionais europeus ou às histórias de nossa cultura popular tradicional.

Resumindo: o crítico observa dois fatos atuais predominantes. Um aspecto referido à temática e outro referido à forma integrante de narrativa e drama.

Faço uma notação aqui importante. Quando me refiro à narração não pressuponho a simples presença de um narrador na peça teatral, pois o drama pode ter este recurso sem o comprometimento de sua teatralidade. Quando falo da tendência observada, falo de uma predominância da narração: uma aproximação com a narrativa oral cênica, mais conhecida como “contação de histórias” (mesmo que o ator utilize recursos teatrais).

No que diz respeito à temática, a dramaturga e ensaísta Maria Helena Kühner observa no livro “O teatro dito infantil” uma aproximação frequente entre o universo da criança e o universo popular, talvez por ambos serem vistos como “menores” (sentido pejorativo) em nossa sociedade.

Concluo que estas são as tendências atuais mais relevantes, além de outras citadas por Kühner em seu artigo “Dramaturgia – hoje e sempre”. As outras referências renovadoras destacadas pela ensaísta são a presença do humor crítico e lúdico, da linguagem poética e lírica e a fusão de linguagens. No que diz respeito, à fusão de linguagens, a criação vai mais longe do que a mescla entre narração e drama; inclui ainda um diálogo do teatro com outras formas, tais como o circo e a performance, por exemplo.

Percebo através destes estudos que a questão hoje está predominantemente relacionada ao como fazer teatro. A renovação procurada está acontecendo por este caminho. E a própria Kühner afirma isto em suas colocações. Sabemos que não há regras de certo ou errado na arte, pois nela trabalhamos com experiências sutis, muitas vezes beirando limiares. Portanto, realmente nos parece “cansativo” (no sentido de que já foi muito visto) trabalhar com contos de fada ou lendas indígenas, por exemplo, mas dependendo da forma como o artista faz esta leitura, ele pode trazer ares novos e ser este trabalho muito interessante.

Outro exemplo: Carlos Augusto Nazareth defende em suas críticas a importância de uma dramaturgia essencialmente teatral (a predominância do mostrar), com a qual eu pessoalmente concordo. Afinal, este é o fundamento consistente do ato teatral. Ao mesmo tempo, o crítico pode reconhecer um espetáculo cuja característica consista na mescla de drama e narrativa como um bom espetáculo. Naquele momento, aquela forma de fazer se equilibrou e não foi capaz de prejudicar a teatralidade do espetáculo, resultando assim numa experiência bem sucedida.

Resumindo: não há uma regra fixa e que jamais possa ser alterada. São questões mais sutis e delicadas. Talvez, a única questão unânime a todos que fazem e/ou pesquisam teatro seja a presença do conflito, o fato da dramaturgia não prescindir deste, seja esta infantil ou adulta.

Aqui, toco num ponto crucial: quando discutimos dramaturgia para crianças, discutimos a dramaturgia em si. Ivanir Calado, em artigo intitulado “Seminário de dramaturgia para crianças e jovens”, para a revista “Sensibilidade e imaginação / Dramaturgia e Educação” do CBTIJ, afirma esta posição ao dizer que tecnicamente não há diferenças em escrever um bom texto teatral para crianças ou para adultos. A dúvida para o autor reside em relação ao conteúdo presente, se há ou não a necessidade de se ter um “cuidado” ao que se diz a este público infantil. A professora Eliana Yunes discorda desta posição. Em aula ministrada na PUC/RJ (24), dirigida ao seu grupo de orientandos, a doutora afirmou a possibilidade de tratar diversos assuntos com a criança, tanto na literatura, quanto no teatro (25). A questão consiste no encontro da forma adequada à abordagem do tema. Apontou exemplos na literatura infantil: o já citado Lobato e a escritora Lygia Bojunga, onde temas considerados “fortes” para a criança são apresentados.

Ainda em relação a um aspecto formal, quero observar outra questão referente à dramaturgia fragmentada. Mesmo que a dramaturgia aristotélica ainda seja um parâmetro freqüente, é cada vez mais comum encontrarmos nos palcos esta dramaturgia fragmentada, onde não há um início, meio e fim determinados. No conjunto das críticas de Nazareth para o JB, o autor ressalta a atenção para a possibilidade de fragilidade e mesmo diluição de um espetáculo devido a uma fragmentação na narrativa dramática. O crítico acredita na estrutura aristotélica como fator de auxílio no teatro para crianças. Mas como disse antes, nas artes não há uma regra imutável e o mesmo crítico pode ser capaz de considerar bom um espetáculo cuja narrativa seja fragmentária. Porém alerta para a necessidade da presença de um fio de similitude nesta fragmentação.

Já a diretora de teatro Alice Koenow possui uma posição diversa. Em seu artigo “O alcance do teatro para crianças e adolescentes”, a diretora acredita que estas relações de causalidade e efeito são mais pertencentes ao universo adulto. A criança, possuidora basicamente de uma inteligência concreta, vivencia suas experiências no tempo presente, no aqui e agora. Logo, na opinião desta diretora, esta estrutura fragmentar não seria empecilho na apreensão teatral por esta criança.

Se não há regras fixas, a questão talvez resida num certo equilíbrio e em cada caso específico.

Um fato é unânime em todos os estudiosos da criança. De fato, a criança vivencia tudo como experiência própria. Ela parte da concretude das coisas, os conceitos só existem caso sejam vivenciados. E ela os apreende também pelos afetos. O pensamento abstrato não é natural para ela. Ela vai construindo este tipo de raciocínio aos poucos. Por isto, eu penso que o teatro é capaz de atrair muito a criança, devido a seu aspecto de concretude. O teatro é o espaço privilegiado da experiência concreta, do jogo, da vivência do aqui e agora. É o espaço do lúdico e o jogar é inerente à criança.

Falando da narrativa dramática para crianças, Alice Koenow faz algumas considerações que julgo serem interessantes registrar aqui. A diretora destaca que não é pelo fato de a criança possuir um universo de experiências concretas e sensoriais, que não podemos estimular o seu raciocínio abstrato, por exemplo. Ou seja: partimos de seu ponto de vista concreto, mas podemos estimular a abstração, a lógica.

Outra colocação de Koenow refere-se ao fato de a criança facilmente mesclar a realidade com a imaginação. Ela transita entre estes dois polos com facilidade, e ao brincar vai recriando sua realidade, sua história.

Pessoalmente, verifico em minha pesquisa, que esta é uma marca crucial nos textos teatrais que tenho lido: esta abertura ao imaginário, ao sonho, à fantasia e ao devaneio. Penso que os dramaturgos trabalham em cima deste ponto basicamente. E talvez este seja o ponto com o qual todo adulto se encanta em relação ao universo “dito infantil”: esta possibilidade mais livre de criar e sonhar, e que, quando crescemos, não mais nos permitimos tanto. Os artistas são os adultos que continuam a trabalhar com esta abertura ao imaginário. Sua profissão legitima esta atitude particular.

Também é unânime entre os artistas e pesquisadores a importância de provocar a reflexão na criança. Mais do que ensinar valores é vital provocar a discussão e a autonomia para o questionamento. Penso que como o teatro (texto e cena) possui esta característica de um pensamento/palavra em ação, em atitude, é através da comoção que ele pode despertar o aspecto crítico. E mais do que nunca, a criança está aberta ao jogo do sentir e do vivenciar, muito mais do que nós adultos.

São nestas direções que o texto/espetáculo teatral para crianças devem caminhar. No mais, há especulações, descobertas e experimentações. Caminhos a serem elaborados e percorridos. Realmente, os erros já citados e verificados podem ser evitados. Mas respostas firmes, neste tempo de incertezas, também são raras.

Concluindo: na atualidade, se verifica um painel de teatro infantil extremamente frágil, nebuloso e carente, onde um dos grandes problemas é a ausência de uma dramaturgia nova e forte. As adaptações dos “clássicos” são freqüentes e o destaque, em geral, acontece na busca de diferenciação nas encenações. E esta busca de fazer uma encenação diferente, a fim de parecer fazer algo inovador, nem sempre é bem sucedida.

Porém, há sim a presença de alguns nomes, mesmo em minoria, preocupados com uma investigação séria, dentro da proposta cênica e mesmo na dramaturgia. A presença da procura por novos caminhos de qualidade para o teatro não foi esgotada por completo. Felizmente. E assim apresentarei alguns nomes nesta minha pesquisa.

1.3 A Busca de Novos Caminhos

Procuro então, no registro que o teatro nos deixa (o seu texto), refletir sobre esta dramaturgia feita para crianças, nos tempos atuais. Como recorte para minha dissertação, elegi textos dramáticos escritos nos últimos dez anos, assim como privilegiei nomes de críticos em atividade como interlocutores. Por isto, determinados críticos são mais evidenciados do que de outros. Outra questão a frisar: existe pouco espaço para expor o trabalho crítico de teatro infantil, portanto raros artigos são encontrados.

Propositadamente, fiz um caminho não muito usual. Não assisti às encenações dos textos escolhidos por mim. Procurei analisar os textos em cima da teatralidade que suas escritas me revelam. E percorri este caminho, principalmente, porque a dramaturgia é considerada um ponto frágil no teatro infantil. Assim, me detive neste ponto. Porém, naturalmente, reflito sempre sobre uma cena teatral, pois mesmo não vendo a exibição do espetáculo, a escrita teatral, como já vimos, nos leva para um espaço cênico, através do imaginário.

Por isto foi fundamental para mim a escolha de textos essencialmente teatrais. Quero dizer: textos que evitem a já citada mescla entre narrativa e drama. Pessoalmente, penso ser importante privilegiar esta característica essencial do drama: a palavra que mostra. E já que esta característica está sendo minimizada nos palcos, decido ser importante resgatá-la.

Já que um dos grandes problemas atuais foi verificado, direta ou indiretamente, em relação à fragilidade da dramaturgia, optei por textos que me propusessem uma consistência de ação dramática e de seus elementos subjacentes. Uma dramaturgia frágil pode ser encontrada em qualquer texto teatral (para crianças, jovens ou adultos). E, penso eu, está relacionada também à falta de convivência com este tipo de texto. E isto pode e deve ser estimulado na escola, por exemplo. Porém, como não quis fazer a “crítica da crítica” e sim mostrar possibilidades afirmativas, optei por uma dramaturgia apresentada com um bom desenvolvimento. Até porque o problema mais grave e sério referente ao universo do teatro infantil diz respeito à forma desrespeitosa com que se trata a criança.

A falta de intimidade com o texto dramático é mais fácil de corrigir do que uma mentalidade cultural baseada numa visão da criança como um ser humano inferior, fácil de ser enganado. Ledo engano do adulto. A criança precisa de professora e não de “professorinha”, a criança precisa de teatro e não de “teatrinho”. Porque, na verdade, quem está sendo enganado e deixando-se enganar não é a criança, e sim o adulto. Afinal, quando a criança prefere não ir à escola ou ao teatro, talvez seja porque esta mesma escola e este mesmo teatro não estejam realmente dizendo nada a ela. Nada diferente do que a televisão, ou a internetpossa dizer. Então a criança vai, naturalmente, preferir ficar na companhia destes últimos.

Há muitos anos, reclama-se da falta de público no teatro (inclusive adulto). Será que os artistas também não possuem uma parcela nesta responsabilidade? É necessária esta reflexão.

Voltando à escolha dos textos dramáticos para a leitura crítica, declaro a minha preferência pela escolha de textos originais, ao invés de adaptações. Porém, muitas vezes, estes textos originais são inspirados em referências literárias ou personalidades previamente conhecidas. E de certa formam recontam algo. Mas este é um fato difícil de se escapar no mundo contemporâneo, visto de forma geral em todas as manifestações artísticas. Procurei então evidenciar as formas mais criativas neste tipo de “releitura”, propiciando na verdade, uma leitura particular. Já que a crítica especializada reclama da falta de textos novos, penso ser mais proveitoso, neste momento, dispensar as adaptações.

No que se refere ao conteúdo existente na narrativa dramática, eu procurei trabalhar com textos que evidenciam a crítica, a discussão e os afetos. E não simplesmente coloquem a criança num lugar de passividade e alienação. Textos teatrais que se dirijam à criança respeitando o fato desta ser uma pessoa capacitada de potência e autonomia criativa.

Meus autores escolhidos são artistas que têm procurado fazer um trabalho de pesquisa e comprometimento com este universo infantil. Devido à necessidade de uma delimitação para a pesquisa, detive-me na análise de textos de autores cariocas.

Com certeza, não terei respostas prontas nestas análises, mas reflexões sobre a busca de um teatro que valorize acima de tudo a criança. Um teatro que seja merecedor desta criança, ou lendo/fazendo o texto teatral, ou assistindo ao espetáculo.

Considero também importante esta análise crítica e seu registro, pois se trata de uma área carente de pesquisas, o que mais uma vez comprova a desvalorização dos assuntos referentes ao universo infantil.

Parto da hipótese da existência de dramaturgos que tem procurado ares renovadores para o teatro. Ou seja: uma possibilidade de renovação, já na escrita, antes mesmo da encenação.

Não acredito que exista uma similitude generalizada entre estes autores, pois o atual ambiente dificulta esta possibilidade. Cada um dos textos escolhidos por mim possui uma linguagem e expressão particular. Penso que os pontos de confluência tenham sido calcados nos meus primeiros critérios de escolha abordados acima. Ou seja: os textos confluem basicamente na negação dos equívocos inadmissíveis. Naturalmente, de forma indireta, poderão ser observadas algumas semelhanças, principalmente por valorizarem a criança e seu universo.

Os três textos escolhidos funcionam como possíveis demonstrações de autores que vêm se destacando numa investigação teatral séria e com marcas autorais próprias.

Os meus objetivos estão claramente fundados nos meus critérios de escolha, evidenciando outras possibilidades de resultados satisfatórios, ao invés de apontar os erros já verificados pela crítica especializada.

O objetivo maior em meu trabalho consiste em elevar o texto teatral infantil, e conseqüentemente o seu teatro, à condição de obra artística. Assim, quem se interessar pelo teatro adulto, por exemplo, poderá tirar proveito de minhas leituras, já que creio poder demonstrar uma aproximação entre a infância e a expressão artística. Veremos que a criança e sua inerente atividade lúdica irmanam-se facilmente ao jogo dramático.

O corpo de minha pesquisa compreende a leitura crítica dos textos “Lasanha e Ravióli in casa”, de Ana Barroso, Mônica Biel e Thereza Falcão, “Tuhu, o menino Villa-Lobos”, de Karen Acioly e “É proibido brincar”, de Luiz Paulo Corrêa e Castro.

Em cada um deles, irei verificar e refletir sobre suas propostas renovadoras e suas relações com o teatro e a infância.

Digo, de antemão, que encontro presentes nestes textos algumas das tendências renovadoras observadas por Maria Helena Kühner, tais como: o humor lúdico e crítico, a linguagem poética e a mescla de linguagens teatrais.

Minha metodologia baseou-se no levantamento crítico do teatro infantil, na reflexão sobre a visão de mundo da criança, além de leituras sobre a linguagem teatral, oferecendo um diálogo entre os discursos artísticos, teóricos e críticos. Como já foi visto nesta introdução, são apresentados nomes de estudiosos ligados tanto ao mundo infantil, como outros nomes relacionados ao teatro e à arte em si.

Proponho-me analisar a dramaturgia e conseqüentemente o teatro infantil, mas antes de tudo, discutir dramaturgiateatro e arte.

Também espero que a leitura seja prazerosa. Como já disse Peter Brook, em “A porta aberta” (26), o tédio é a única coisa proibida no teatro. E, penso eu, também em seus estudos.

Termino esta introdução com algumas palavras do dramaturgo e poeta Federico Garcia Lorca sobre o teatro:

Todos os dias ouço falar da crise do teatro, e penso sempre que o mal não está diante dos nossos olhos, mas sim no mais obscuro da sua essência; não é um mal de flor atual, mas de raiz profunda, ou seja, o mal não está nas obras mas sim na própria organização. (…)
É o teatro que deve impor-se ao público, e não o público ao teatro. (…)
Arte acima de tudo. Arte nobilíssima (…) No teatro mais modesto como no mais elevado deve sempre escrever-se a palavra “Arte” na sala e nos camarins, porque senão teremos de escrever a palavra “Comércio” (…)
Sei que a verdade não a detém aquele que repete “hoje, hoje, hoje” enquanto come o seu pão junto à lareira, mas sim o que serenamente olha à distância as primeiras luzes da alvorada no campo.
Sei que não tem razão aquele que diz “Agora mesmo, agora, agora” com os olhos postos na garganta estreita da bilheteria, mas o que diz “Amanhã, amanhã, amanhã” e sente aproximar-se a vida nova que avança sobre o mundo. (27)

Notas de Rodapé

1. Pirandello apud Nazareth, em As diversas linguagens no teatro infantil, publicado no Blog Vertente Cultural.
2. Informação obtida ao assistir a palestra de ambos no Seminário “O que é qualidade em literatura e teatro infantil”, em 26/09/06, na UFF.
3. Em Leituras compartilhadas, ano 5, RJ: Leia Brasil/ Ediouro.
4. Ibidem, p. 45.
5. Araújo explica o “analfabetismo funcional” como um fenômeno ocorrente de forma freqüente no Brasil. Este fenômeno é verificado quando as pessoas são capazes de ler, mas não compreendem o que leem.
6. Ibidem, p.46.
7. O JB é o jornal carioca que tem mais críticas do teatro infantil. Por isto, a consulta no acervo crítico de Nazareth é verificada em minha pesquisa.
8. Anchieta apud Sandroni, p. 20.
9. Pimentel apud Sandroni, p.35.
10. Góis apud Sandroni, p. 36.
11. Camargo apud Sandroni, p. 63.
12. Apud Sandroni, p. 67.
13. Apud Sandroni, p. 85.
14. Apud Nazareth, em artigo O teatro infantil e sua história.
15. Apud Maria Aparecida de Souza, em Teatro infantil ou teatro para crianças?
16. Minha seleção de textos dramáticos e críticos procurou situar-se nos últimos dez anos. Recorte escolhido para viabilizar a dissertação de mestrado.
17. Nazareth, em artigo denominado Uma tarde inesquecível, enviado por e-mail , mas encontrado no Blog Vertente Cultural, em 2006.
18. Ver artigo do autor denominado Balanço Teatral Infantil 2005. Encontrado no Blog Vertente Cultural.
19. Artigo publicado na Revista n. 4 FENATIB, porém encontrado no site do CBTIJ.
20. Publicado no site Vertente Cultural.
21. Tese de doutorado na PUC/RJ, em 1985 e atualmente em vias de publicação.
22. Ibidem, p.5.
23. Ibidem, p.310-311.
24. Aula ministrada no segundo semestre de 2006.
25. Yunes também já foi crítica de teatro infantil do JB.
26. Brook, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
27. Lorca. Conversa sobre teatro. Extraído de Teatro Moderno, de Luiz Francisco Rebello, 1964, porém encontrado em Cadernos de teatro, da Editora d’O Tablado, RJ, s/ano.