Capítulo 4 – É Proibido Brincar ou O Direito ao Prazer

Criar é tão difícil ou tão fácil como viver. E é do mesmo modo necessário.
                                                      Fayga Ostrower (97)

O terceiro texto escolhido para minha análise chama-se É Proibido Brincar, de Luiz Paulo Corrêa e Castro e data de 1998. O autor referido é também jornalista. Sua dramaturgia relaciona-se fundamentalmente à trajetória do grupo carioca “Nós do Morro”.

Segundo o site oficial do grupo, o “Nós do Morro” teve seu início em 1986. O diretor de teatro Guti Fraga iniciou no Morro do Vidigal um movimento cultural para desenvolver o interesse da comunidade pelo teatro, além de formar atores e técnicos. A estreia teatral oficial aconteceu em 1987 com a peça “Encontros”, elaborada a partir de improvisações ocorridas nas oficinas teatrais. Os autores eram Luiz Paulo Corrêa e Castro e Tino Costa.

De lá para cá, o grupo amadureceu em sua pesquisa teatral e além de fundar um teatro no Morro do Vidigal, conquistou espaço nos teatros da cidade e junto à crítica especializada. O grupo resgata a importância da inclusão social, mas nunca perde de vista a busca por uma excelência teatral.

O “Nós do Morro” já representou peças de autores tradicionais como Martins Pena, Ariano Suassuna e José Vicente. As outras peças do grupo são de autoria do dramaturgo citado Luiz Paulo Corrêa e Castro.

O texto teatral É Proibido Brincar, segundo as informações do próprio autor fornecidas por e-mail, foi escrito originalmente em 1998, com o propósito de estrear no teatro da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, numa temporada de um mês. Depois, o espetáculo foi para o Teatro do Vidigal. Em 2003, a peça foi remontada no Vidigal novamente, além de ocupar a sala Marília Pêra, no Teatro do Leblon.

Este texto foi a primeira incursão do dramaturgo e do grupo num trabalho direcionado para crianças e, penso eu, uma investida bem sucedida.

Como já escrevi antes, o mais grave problema atual no texto/espetáculo direcionado às crianças consiste ainda na imagem que a nossa cultura tem em relação a este público. A dramaturgia é muitas vezes frágil, mas este problema técnico é passível de ocorrer em todo tipo de dramaturgia.

No caso do texto teatral para crianças, muitas vezes esta fragilidade decorre da insistência no uso de um discurso pejorativo. A própria palavra infantil, hoje, possui uma característica negativa. Portanto, escolhi novamente um texto de dramaturgia consistente, mas que primordialmente trata a criança com respeito e dignidade. Além da originalidade.

No texto de É Proibido Brincar encontramos a figura da criança vinculada a temas que não estamos acostumados a ver em nossa ficção teatral. Temas como política, trabalho e o próprio abuso de poder. Em nossa realidade já vimos que a maior parte de nossas crianças está inserida de forma violenta em questões tidas como pertencentes ao mundo adulto, mas na escrita teatral isto não aparece usualmente. Por isto penso ser importante discutir este texto. Friso também que jamais o texto resvala para uma escrita “panfletária”, num ultrapassado teatro “engajado”. O texto É Proibido Brincar levanta estas questões sérias numa proposta essencialmente artística, comprometida com o lúdico e com a imaginação. Eis aqui, dois trechos da peça para demonstração do que eu aludi:

Cena 2Na rua, Barbarela canta uma modinha para Pedrão.
(…)
Zero: Pô, o governador acabou com o natal.
Barbarela: Cada dia é uma novidade. Já não tinha mais feriado, fim de semana e brincadeira. Agora é o natal.
Pé de Arraia: Só dando uma trava nesse tal de governador.
Pedrão: Eu quero o presente que o meu pai comprou pra mim.
Mayra: Fica calmo meu amor. A gente vai dar um jeito. Eu juro prá você.
(…) (98)Cena 3Pé de Arraia: Sujou! Tá vindo um camburão!
Barbarela: Mas camburão tem asa, Pé de Arraia?
Pé de Arraia: Não, por quê?
Sayonara: Por que este camburão aí ta vindo do céu.
Zero: Então é um balão.
Pedrão: É papai Noel! É papai Noel!
Mayra: É muito mais do que isto, pessoal. Eu tô sentindo um negócio diferente.
Barbarela: Mayra, não começa não, hein? É um balão e pronto!
Zero: Vamos cantar pra este balão cair?
Zero comanda a cantoria. (99)

A história se inicia com um decreto do governador do Estado proibindo o natal. O mesmo governador já tinha proibido todos os outros feriados e qualquer tipo de diversão. O objetivo era aumentar a produção econômica, principalmente nas fábricas. As crianças também estavam proibidas de brincar nas ruas.

As crianças do Morro do Vidigal já estavam revoltadas com esta situação, e com este último decreto, resolvem se rebelar. Elas brincavam no morro, o que já era uma desobediência à lei, quando avistam no céu um balão. O balão cai e elas vão até ele. Na verdade, o balão era uma nave espacial. Caco, Cléo, o filho deles e o robô Salvador são aurorianos (do planeta Aurora) e estão viajando pelo espaço para descobrir o segredo da felicidade, pois o seu povo está sofrendo de uma terrível melancolia. Como tinham visto do telescópio os meninos felizes, decidiram descer para descobrir “o segredo da felicidade”. Após o medo inicial, todos conversam, e os meninos surpresos dizem aos aurorianos que não havia segredo nenhum. Estavam felizes apenas porque estavam brincando. Dizem também que aquilo era agora algo considerado perigoso, devido à proibição do governo.

Neste momento, o Governador e seus assessores vêem tudo por satélite e vão até lá, primeiramente para coibir a brincadeira e depois para o governador verificar se poderia obter algum lucro com os extra – terrestres. As crianças fogem e o governador interessado em ampliar seus poderes leva Caco e Cléo para todos conversarem melhor no Palácio da Cidade. Lá, acaba prendendo-os, com o objetivo de roubar a nave espacial. Assim, seu projeto de dominar todas as cidades do mundo seria facilitado.

Enquanto isto, as crianças do Vidigal planejam promover, junto com as crianças do Morro do Salgueiro, uma greve geral das fábricas no Rio de Janeiro. O objetivo seria conter o governador em suas proibições (feriados, natal, brincadeiras, etc…) A cada fábrica parada, uma pipa seria empinada. E todas as crianças estariam na rua brincando.

Depois de prender Caco e Cléo no Palácio, o governador e seus assessores seqüestram a nave com Salvador (o robô), Johny, filho de Caco e Cléo, e ainda Mayra, uma menina do Vidigal que tentara impedir seus planos.

Ocorre, no entanto, algo inesperado: uma baleia aparece na praia do Vidigal com seu filhote, o que gera a paralisação dos operários da fábrica de mariscos do local. Há mais de 60 anos uma baleia não aparecia na praia, o que despertou um grande alvoroço na cidade.

Este evento, junto com a manifestação provocada pelas crianças para a greve geral das fábricas, fez todos pararem o trabalho e irem para a praia. Em pouco tempo o céu estava coberto de pipas.

O governador, vendo tudo do alto, não se conformava com a possibilidade da baixa de produtividade da economia. Também não estava nem um pouco satisfeito em ver seus planos de construção de um grande império serem enfraquecidos. Por isto, continua irredutível.

Salvador, o robô, percebe então que a única solução para conter o governador seria a nave ficar sem comando, o que a faria aterrissar através de um comando automático. O robô pede então a Mayra que retire uma placa de suas costas, ocasionando assim sua “morte”.

A nave desce justamente na praia, que por sinal já estava repleta de gente. Todas as pessoas da cidade já tinham parado seus trabalhos e estavam reunidas para ver a baleia brincando com seu filhote.

Já em terra, o governador não admite a derrota, impedindo todos de saírem da nave. Porém Caco e Cléo, como já tinham fugido do Palácio do Governo com a ajuda de moradores do Vidigal, começam a negociar com o governador. Fica decidido então a liberação de Mayra e Johny em troca da nave espacial. Porém, quando o governador ouve os comentários das crianças sobre o fato de todas as fábricas estarem paradas (tal era a quantidade de pipas no céu), ele desmaia. Assim, as crianças escapam de dentro da nave. No momento em que os aurorianos Caco e Cléo revêem seu filho, Johny, eles sorriem; tornam-se então capazes de sentir um pouco de felicidade, um sentimento há muito tempo não mais vivenciado por eles. As crianças do Vidigal percebem a modificação nos aurorianos (mesmo momentânea) e ficam contentes de terem presenciado o fato.

Para conseguir que a população volte a trabalhar, o governador é obrigado a fazer um outro acordo mediado por Caco e Cléo. Eis o acordo: a população voltaria a trabalhar, mas o governador seria obrigado a devolver a nave espacial. E mais: as condições de trabalho agora estariam vinculadas ao direito aos fins de semana, feriados, brincadeiras liberadas nas ruas, além da comemoração do natal, cuja proibição tinha sido o estopim da revolta das crianças.

Destaco alguns pontos que, me parecem, têm importância no texto.

Primeiro: a valorização da criança como a ponte de transformação. A revolta contra o abuso de poder e a decisão de provocar uma mudança parte da criança e não do adulto. Naturalmente, esta revolta aconteceu pelo fato da criança ter sido atingida justamente na sua atividade essencial e principal: o ato de brincar. E o prazer decorrente desta atividade.

O clímax da revolta se estabelece com a proibição da festa natalina. Uma festa, onde, muitas vezes, a grande animação provém das próprias crianças. Para os adultos sempre há algum resquício de tristeza.

De forma inteligente, o texto não mostra as crianças como super heroínas, visto que a presença dos aurorianos e da baleia com seu filhote favorecem a greve geral. Estes fatores extraordinários, no próprio sentido da palavra (fora da ordem comum) facilitam o projeto das crianças. Porém, também observo que estes mesmos fatores relacionam-se ao universo da criança, ao seu imaginário. Tanto a baleia (um animal), como a presença dos extra – terrestres (não entro aqui no mérito científico, pois este é um ponto de vista adulto). Estas presenças facilitadoras da rebelião, ao pertencerem ao universo infantil, reiteram a potência de transformação da criança.

Um ponto crucial do texto teatral É Proibido Brincar consiste na ausência de maniqueísmo. Este problema, como reconhece grande parte da crítica, é geralmente encontrado nos textos direcionados para as crianças.

O governador, por exemplo, caracterizado pela sua obsessão desmedida pelo poder, é uma figura comum hoje em nossa realidade. Mas no final da peça, este mesmo político é capaz de ficar encantado quando vê o filhote da baleia, o que aponta a presença do afeto e capacidade de enternecimento no personagem.

Já os aurorianos possuem nomes comuns de pessoas, como: Cléo, Caco e Johny. Eles viajam para tentar “salvar” seu povo (incapacitado de sentir qualquer felicidade) e interrompem sua missão para ajudar o povo terreno ameaçado pela perda de liberdade. Mas também não são protótipos de heróis perfeitos. Os aurorianos são capazes de equivocarem-se como nós ao pensar que possa existir uma “fórmula” para a felicidade, e mais, uma fórmula que possa ser comprada. Os aurorianos possuem e apresentam atitudes louváveis e equivocadas ao mesmo tempo. Ironicamente, o robô, justamente a máquina, possui o nome de Salvador. E é uma máquina capaz de demonstrar sensibilidade, pois como diz a personagem Mayra, apesar de ser máquina, ele possuía “mais alma do que muita gente” (100)

Outro ponto interessante consiste no fato de que os aurorianos experimentam a felicidade (no momento do reencontro com o filho), mas voltam para o seu povo sem a resposta concreta do que é esta tal felicidade. Os aurorianos continuam sem ter o domínio sobre a felicidade. Aqui, vê-se que não é pelo fato do texto ser uma dramaturgia para crianças que tudo deve ser facilmente explicável. Nesta questão uma lacuna se faz presente: nem os aurorianos descobrem a “fórmula da felicidade” e nem insistem mais nesta descoberta. A resposta que tanto queriam não a obtém. Eles foram capazes de sentir, de experimentar a felicidade, como as crianças do Vidigal a sentem ao brincar. Mas não há controle nem certezas neste querer. A felicidade acontece. Momentos que podem ser propiciados ou não, mas sem garantias.

A peça É Proibido Brincar é um texto contemporâneo por tratar de temas atuais como o abuso de poder e ambição desmedida, a melancolia crescente nas pessoas (vê-se que a depressão é uma doença que cresce mundialmente) e a falta da oportunidade de uma vida digna à maior parte da população, incluindo aí muitas crianças.

É Proibido Brincar possui o mérito de não vetar à criança estes temas na ficção teatral. Mas, é importante frisar que esta ficção acontece sem nenhum desalento ou didatismo, simplesmente veiculada pelo aspecto lúdico, onde o ato teatral conduz à narrativa. Com certeza, não é à toa que esta dramaturgia relaciona-se com o grupo “Nós do Morro”. Mas, como disse anteriormente e reitero, é a escrita teatral e artística que imperam.

Antes de tudo é necessário brincar. E as crianças sabem disso. As crianças do Vidigal (personagens da peça) subvertem a ordem estabelecida e brincam.

Assim, É Proibido Brincar, de Luiz Paulo Corrêa e Castro, subverte a política e brinca de teatro. E, diga-se de passagem, uma brincadeira muito séria.

Faço uma observação: quando a criança brinca de “faz de conta”, ela leva a brincadeira a sério. E muito. E assim subverte a realidade, recriando-a.

O artista também brinca. E para sua brincadeira ser levada a sério e ser considerada arte, ele deve ser o primeiro a comprometer-se verdadeiramente, como a criança se compromete em seu brincar.

Mais do que nunca, é necessário o artista lograr sua profissão. Porque mais do que nunca, precisamos de arte. Todos. E não é porque o artista se dedica a uma arte feita para crianças, ele deve pensar que esta é uma arte “menor”. Porque, desta forma, não será arte.

Afirmo mais uma vez: o teatro para crianças é antes de tudo teatro. A dramaturgia para crianças é antes de tudo dramaturgia. E a arte para crianças é antes de tudo arte.

Voltando à especificidade do texto escolhido, quero ainda destacar, para uma análise mais profunda, três aspectos relacionados a esta dramaturgia. Um deles é a questão do espaço. Eu percebo que É Proibido Brincar é um texto que todo o tempo discute de forma direta ou indireta o espaço. Poderia, de saída, destacar o espaço do trabalho e do lazer, o espaço privado e público, o espaço da coerção e do desejo, o espaço da criança e o espaço do adulto, o espaço do eu e do outro e consequentemente o espaço da palavra em confronto. Além destes espaços, ainda há o próprio espaço planetário, exemplificados no texto pelo planeta Terra e pelo planeta Aurora. Já vimos, destacada principalmente no segundo capítulo, que o espaço é uma questão fundamental no teatro e importante também, para trazer junto de si a própria questão temporal. Muda-se o espaço, sugere-se que o tempo passou, por exemplo. A questão espacial demarcada fornece uma concretude para revelarmos todo um contexto. Esta questão espacial será analisada por mim, em termos da própria representação na literatura dramática.

A partir daí, gostaria de levantar outras questões referentes ao texto, mas também plausíveis de serem ampliadas para outras referências de discussões, porém igualmente relevantes. Uma delas, diz respeito, ao aspecto político desta peça, na verdade, ao aspecto “trans – político” da peça, pois ela o ultrapassa e desemboca, justamente, no terceiro tópico a ser destacado: o aspecto artístico. As crianças de É Proibido Brincar são políticas, pois, em sua ainda frágil apreensão dos códigos sociais, percebem intuitivamente que é necessário ultrapassar o político e chegar ao poético. É necessário brincar e é necessário criar. É necessário adaptar-se à sociedade, mas sem matar nossos desejos e prazeres. É necessário subverter a noção do que é ser político, antes de tudo.

A criança, em seu desejo imperativo de brincar e sentir prazer, nos provoca a necessidade de criar, de imaginar, e porque não, de fantasiar. O ser humano vai crescendo e aprendendo que fantasiar pode ser perigoso, e também por isto a leitura pode ser perigosa. Não é à toa que tantos livros já foram queimados em nossa história… Dar asas à imaginação e à fantasia é perigoso, pois nos estimula a ultrapassar. Ultrapassar o poder pré-estabelecido, o formalismo inútil e a morte de nossos desejos. Transcendemos o real para podermos voltar a nossa própria origem. A cada pipa empinada no céu, eu volto a brincar. O extra-terrestre me ajuda a ser livre, pois está fora da terra. É extra. É fora do ordinário. Há sessenta anos a baleia não aparecia na praia. Uma baleia que brincava com seu filhote. É urgente sair do cotidiano. A criança sabe disto e o artista sabe disto.

Constato, definitivamente, o significado da frase de Pirandello, ao dizer que é mais difícil fazer teatro para crianças do que para adultos. É mais difícil, pois será inevitável penetrar na região da criação, do artístico. Saltar para fora, tirar os pés do chão, não num simples devaneio fugitivo, mas sim num salto que me traga de volta revigorado e corajoso. Os aurorianos são nós mesmos, esquecidos de nossas primeiras impressões, onde a ausência da palavra não significava um grave problema, afinal, ainda éramos capazes de contemplar e ficar absortos perante o primeiro raio de luz.

Talvez, quando o homem não mais temer o espaço do início, onde as formas ainda estão na penumbra e a aurora ainda não foi capaz de iluminar tudo, ele terá coragem de criar mais. Este homem também terá a necessidade, quase voraz, de alimentar seu corpo com arte. E acima de tudo, não temerá mais a infância, portanto, não a desprezará.


4.1 – Uma Questão de Espaço

O espaço aberto à existência do outro, pelo reconhecimento de seu direito à diferença, tem uma dimensão ética e outra política, além da de natureza estética. Por conta de nos sabermos iguais nos direitos e diferentes nos desejos e suas expressões, abre-se uma porta à compreensão da diversidade que, na condição humana, só a dignifica pela complexidade apresentada, painel de pluralidades e de alternâncias.Eliana Yunes (101)

É Proibido Brincar inicia com uma voz de um locutor em off, anunciando que o governador acabara de decretar o fim do natal. Logo depois, o Governador, também em off, comenta a importância de sua decisão.

Ou seja, uma voz em off, não apresentada em cena, somente ouvida, decreta aquilo que será o conflito maior da peça. O Governador faz mais um decreto sem a necessidade de aparecer em cena. O poder não tem rosto, somente uma voz que ecoa no espaço.

Já a segunda cena, citada anteriormente, mostra as crianças na rua cantando e discutindo a medida do poder público. Reparo, que durante toda a peça, a rua é o cenário da infância. As crianças foram proibidas de brincar nas ruas, porém é neste espaço proibido que permanecem todo o tempo. Elas insistem na desobediência ao poder estabelecido.

Por sinal, a dramaturgia sugere apenas quatro espaços cênicos: as ruas do morro, a praia do Vidigal, (espaços públicos), o Palácio da Cidade, (espaço representativo do poder público) e o espaço sideral.

Os dois espaços públicos, as ruas e a praia, lugares caracterizados pela possibilidade de socialização e lazer, estão proibidos de serem freqüentados pelo povo. Afinal, o direito ao prazer e ao ócio está proibido. O povo deve somente trabalhar. As crianças, mesmo não trabalhando, devem ficar em casa, a fim de não exporem suas brincadeiras aos olhos alheios. O lazer permitido está condicionado à possibilidade de assistir ao canal de televisão dos trabalhadores. Naturalmente, o assunto televisivo é trabalho.

O Palácio da Cidade é o local onde os homens de poder decidem as condições de vida do povo e monitoram esta vida através de satélites. Por sinal, o Palácio da Cidade é um espaço representativo do poder público, sendo que caracterizado como um local previamente restrito à presença do povo. Algo notório: eu elejo quem ocupará este espaço e irá me representar, eu coloco esta pessoa ali, porém minha entrada não é liberada.

Na Cena 5, quando o governador e seus assessores se apresentam aos extra-terrestres, há um humor crítico bem definido. Transcrevo aqui para ilustração do que digo:

Chegada do governador. Crianças saem correndo.
Governador– Muito bom dia. Quer dizer então que vocês são os extraterrestres?
Dr. Oliveira– Senhores marcianos,…hum, hum, hum…queiram me permitir apresentar sua excelência imperial, o governador. Autoridade máxima da cidade. Chefe dos executivos e dos executados.
Dra. Carolina– Deixa de ser chato, Oliveira. Governador, vamos ao que interessa?
Governador– Ahn? Claro! A que devemos a honra desta visita? Em nome da nossa cidade, ofereço-lhes as nossas boas-vindas. Mas vocês deveriam ter avisado com antecedência. Quem sabe a gente não poderia preparar uma festinha de recepção?
Dra. Carolina– É. Com a banda da Polícia Militar!
Cleo– Muito obrigada. Gostaríamos de solicitar audiência urgente. Viemos de um mundo distante e queremos discutir alguns assuntos da mais alta importância.
Governador– Já estamos começando a nos entender. Mas vamos sair daqui, que este ambiente não se presta para uma negociação espacial.
Dr. Oliveira– Vamos pro palácio.
Cleo– Primeiro, gostaríamos de acertar umas coisas por aqui mesmo.
Governador– No meio do morro? (102)

Em outro momento da peça, em total desespero, por saber que o povo está na praia e as fábricas estão sendo paralisadas, o governador, dentro da nave espacial grita:

– “Cala a boca Oliveira !!!!!!! Vamos para o palácio então. De lá, eu controlo esta situação. Salvador! Toca para o palácio do governo!” (103)

Ou seja: o governador consegue elaborar seus pensamentos e planos dentro do palácio. Lá, ele consegue planejar suas idéias de controle do povo terráqueo e arquitetar seus planos de dominar o espaço sideral. Dentro de seu espaço.

Já os aurorianos necessitaram viajar pelo espaço para encontrar uma resposta para o problema de seu povo. Aqui, encontramos a eterna sensação de que a solução para nossos problemas encontra-se sempre fora. Dominamos melhor o terreno conhecido, íntimo, porém, pensamos sempre que a resolução está fora de nosso espaço.

E de certa forma, esta dicotomia é inerente ao ser humano, pois ele se relaciona consigo mesmo e com o ambiente. A chave da questão consiste no equilíbrio entre estes movimentos.

Já vimos isto antes, em relação às crianças. Estas possuem seu mundo particular, porém estão inseridas no mundo dito adulto. E ambos universos são influenciáveis e influenciados.

Aqui, nesta dramaturgia, as crianças exigem seu direito de brincar, e brincar nas ruas, no espaço público, às vistas de todos. Um fato que não podemos descartar para análise consiste na associação entre ruas e lazer, como espaço de descobertas, nos dias atuais. É notório, que cada vez mais, em nossa sociedade, a rua, outrora vista como um espaço de socialização, hoje, é vista como um espaço ameaçador, devido à crescente violência urbana. Reparamos que os filhos de uma classe média e alta são visivelmente proibidos pelos pais de frequentarem as ruas com extrema liberdade. As praças foram trocadas pelos shoppings e a televisão e a internet substituíram muitos programas externos. No caso da criança de uma classe mais baixa, muitas vezes, ela também é proibida de brincar nas ruas, devido à violência existente na periferia ou morros, mas, penso eu, elas ainda desobedecem mais, ora por não terem tanta vigilância dos pais (afinal trabalham muito e não existem as babás como vigias), ora por não terem os aparelhos eletrônicos na mesma medida que uma criança abastada. Assim, a rua ainda é o espaço de lazer e interesse, mesmo sendo perigoso.

Portanto, as crianças resolvem “dar uma trava no governador” (104) para terem direito ao seu espaço, físico e lúdico. E nesta decisão de tomada de poder, de exercício político, elas acabam por envolver toda a cidade. As crianças percebem que não está somente em jogo o interesse próprio, mas o de toda a sociedade. Elas sabem que para conseguirem seu direito de volta, necessitam alterar toda a estrutura da comunidade, incluindo o sistema de trabalho onde seus pais estão envolvidos. As crianças do Morro do Vidigal também não agem sozinhas na elaboração da rebelião, mas junto com outras crianças, as do Morro do Salgueiro.

Cito um trecho da conversa das crianças de ambos morros:

Fubá– A gente veio trazer uma proposta prá vocês. Não tá todo mundo revoltado com o lance do governador acabar com o natal?
Barbarela– Tá!
Joe– Então? Nós viemos oferecer nossa força prá ajudar no que for preciso.
Carvão– O natal tem que voltar.
Barbarela– Para forçar o governador, só tirando o pessoal das fábricas e armando um auê na cidade. (105)

As crianças mostram seus desejos particulares, mas percebem que não conseguirão nada sem observarem as questões à sua volta. Elas enxergam o governador como ele é, além de seu modo próprio de pensar. Elas sabem que para conseguir mudar algo, necessitam relacionar-se de determinada forma com o poder. Elas possuem a vontade de manterem vivos seus desejos, fundados aqui no ato de brincar com liberdade, mas percebem o statusquo no qual estão inseridas. E é por isto que serão bem sucedidas em sua revolta, pois, vendo o outro como ele é, saberão o modo de agir com a situação. Mesmo que o outro não nos agrade, é necessário enxergar este outro, condição que o governador parece ignorar, mergulhado em sua ambição desmedida.

Ou seja: sem ensinamentos moralizantes e didáticos ou comportamentos maniqueístas, mas com uma simples dramaturgia, envolta por elementos inerentes ao imaginário e jogo infantil, esta escrita teatral nos traz as questões da alteridade e exercício da cidadania. Estes assuntos vêm à tona em decorrência da simples insistência em poder continuar a brincar. A criança não abdica de seu prazer, e por isto ela se rebela com mais força que nós, adultos.

É Proibido Brincar marca fundamentalmente, o que tenho verificado até agora nestas expressões artísticas voltadas à criança: o direito ao prazer, à criação e à possibilidade de transgressão. A criança é política, pois exige como necessidade vital o ato poético. Ela é política, pois sabiamente sabe que não pode abdicar da poesia, da metáfora e da alteridade.

E se…. Eu fizesse diferente? E se… Eu fosse outro?

Em É Proibido Brincar as diferenças não são negadas e terão de ser negociadas. É o espaço do confronto da palavra, do diálogo, que também é conflito. É Proibido Brincar marca assim o espaço do teatro. Homem frente a homem. E daí todo o choque e beleza que possam acontecer.

4.2 – Teatro e Política

A gente não quer só comida,
A gente quer comida, diversão e arte.
(…)
A gente não quer só comida,
A gente quer bebida, diversão, balé.
A gente não quer só comida,
A gente quer a vida como a vida quer.
(…)
A gente não quer só comer,
A gente quer comer, quer fazer amor.
A gente não quer só comer,
A gente quer prazer pra aliviar a dor
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer dinheiro e felicidade.
A gente não quer só dinheiro,
A gente quer inteiro e não pela metade.
Antunes, Britto e Fromer (106)

Não há como não analisar especificamente a questão política abordada na dramaturgia de É Proibido Brincar. Este foi um dos motivos que me fez escolher esta peça como representante de uma nova dramaturgia infantil.

Atualmente, é muito comum percebermos a presença da política e ética relacionadas ao contexto artístico. Como coloquei no segundo capítulo, parece-me que estão deslocando determinadas funções de nossa sociedade para a responsabilidade artística. Sabe-se também que este assunto é bastante polêmico. Uns pensam que é quase um dever ou necessidade o artista discutir estes temas em sua obra. Outros ainda pensam que as artes não possuem nenhuma obrigação para com o questionamento e resolução do “enlouquecimento de nossa sociedade”.

Com esta segunda posição, não quero dizer que o artista deva assumir um papel alienante, mas que a forma do artista contestar não é a mesma forma do sociólogo ou do político, por exemplo. O artista é capaz de “fazer política” hoje, elaborando uma obra sobre o amor. Em tempos de total liberdade sexual e paradoxalmente quase nenhuma intimidade entre as pessoas, falar da descoberta de amor entre um casal e suas conseqüentes cumplicidade e intimidade, decorrentes deste relacionamento, será quase subversivo e por isto será político. Quero dizer que o artista é capaz de fazer política não diretamente, mas sim de uma forma reversa, ao recriar o próprio mundo. Ele pode ter uma atitude fundamentalmente política, sem ao menos pronunciar a palavra política.

Naturalmente, ele também pode ser político, tendo em sua temática, a própria questão abordada claramente. Particularmente, penso que nesta atitude há um grande risco: o risco do artista igualar-se à função do político, por exemplo. Convenhamos, isto não terá graça. Não desvalorizo aqui a função do político, mas simplesmente quero dizer que se quisermos fazer política de forma clara e ativa, podemos nos filiar a algum partido e não necessariamente ir ao teatro ou dedicar-nos à leitura de um romance ou de uma peça teatral.

Aqui retornamos na verdade à discussão da atual vertente em nossa cultura de misturarmos arte e realidade. Não é a minha proposta neste momento fomentar esta discussão, mas pergunto se caso esta posição é simplesmente uma tendência pós-moderna ou na verdade uma incapacidade nossa de transcendência à realidade, uma impossibilidade de alçar vôo, devido a um imaginário pobre, para não dizer miserável.

A proposta de É Proibido Brincar é ousada por trazer a figura da criança e lançá-la diretamente dentro de um contexto político. Afinal, estamos habituados a colocar o assunto política distante do mundo infantil. Esta é uma amostra de como excluímos a criança em nossa sociedade. Será que a criança não é um cidadão, simplesmente porque ela não vota?

É óbvio que a criança não irá elaborar formulações políticas como um adulto, mas ela é capaz de perceber questões notoriamente de caráter político e será obrigada a relacionar-se com as mesmas. Todos sentem o abalo de uma problemática política, literalmente, na própria pele.

Portanto, ao colocar a criança neste contexto social, e de uma forma atuante, não somente como vítima passiva, esta dramaturgia possui já um caráter inovador, transgressor.

Agora, mais interessante ainda, é a reivindicação que a criança faz: o direito a brincar. Ou em outras palavras, o direito a criar e a fantasiar. As crianças, em É Proibido Brincar, enfrentam o poder público e literalmente invadem o Palácio e paralisam toda uma cidade, simplesmente pelo direito à brincadeira, atividade considerada menor em nossa cultura, porém atividade libertadora, pois permite o devaneio. Um devaneio perigoso, pois também libertador, e consequentemente passível de transformações. A cidadania aqui se faz presente pelo desejo do lúdico e do prazer. É através do jogar que eu me relaciono e comunico-me sem mutilar minhas singularidades, podendo manter assim minha identidade própria. Por isto também, os momentos de ócio e distração são tão condenáveis em nossa cultura. São perigosos, porque são nestes momentos que eu posso desvincular-me do cotidiano, da rotina, deixar de agir como máquina eficiente e burra, e assim poder sentir, pensar e criar.

Também, no momento da brincadeira, não se exclui o outro. Caso se exclua, o outro sabe que esta regra faz parte do jogo momentaneamente. No próximo instante, poderá ser ainda outro o excluído. É realmente uma brincadeira, não é para sempre. Na brincadeira, até a exclusão é afetuosa, pois não é regra imutável.

Na brincadeira, o afeto é imprescindível, ele não “atrapalha” a atividade operante. Arminda Aberastury escreve em “A criança e seus jogos” sobre a importância e necessidade vital do ato lúdico para a criança. Mais tarde, este brincar nos adultos tende a ser substituído pelas experiências amorosas. Por isto, também o amor, assim como o brincar e o criar são sempre marginalizados em nossa sociedade. Tratamos logo de institucionalizá-lo através do casamento, a fim de legitimá-lo e conseqüentemente colocá-lo sob controle. A paixão, nem se fala, pois esta foge a qualquer forma de controle. A paixão de Romeu e Julieta não interessa somente às suas famílias, mas também a toda uma sociedade.

E assim consiste a beleza e a teatralidade desta peça, pois ela é política, mas é capaz de ultrapassar esta esfera e desembocar no ato poético. Cito aqui duas colocações, uma de um diretor de teatro carioca, Eduardo Wotzik e outra, de uma personalidade mundialmente conhecida, o músico Bob Dylan. Ambas, no fundo, dizem respeito à mesma questão e ilustram poeticamente minhas considerações.

Diz Wotzik: “Coloque um telescópio virado pras estrelas, no alto de cada morro da cidade, e você verá, que em pouco tempo, a violência acaba.” (107)

Já Bob Dylan disse nas letras de sua música “Blowing in the Wind”:

Quantos caminhos terá de percorrer um homem
Antes que se lhe possa chamar de homem?
A resposta, amigo
Te cantará o vento
A resposta está no vento. (108)

Pensamento ultrapassado dos anos 60? Penso que não. Pelo menos, o grupo “Nós do Morro” tem mostrado justamente o contrário.

O dramaturgo e ensaísta Denis Guénoun coloca em seu ensaio “A exibição das palavras – uma idéia política do teatro” (109), justamente este aspecto de ultrapassagem do teatro no âmbito da política. E creio eu, é neste caminho que também a criança em É Proibido Brincar, além da natureza infantil em si, perpassa a questão política, em seu caráter de ultrapassagem. Como se ela dissesse: Eu passo por aqui, mas vou além, alço vôo. E neste momento, são capazes de deixar nós adultos, de queixos caídos, perante nossa freqüente impotência à capacidade de transformação.

Guénoun escreve em seu livro que o teatro está inserido na política, pois reúne um grupo de pessoas para assistir uma representação. Este acontecimento é em si um ato político. O autor, inclusive, faz uma observação relacionada ao atual desinteresse teatral e também ao descrédito pela política. Ambos aspectos são hoje desvalorizados em nossa cultura, de um modo geral.

O autor escreve: “O teatro não poderia ser reabilitado a não ser numa época de democracia reavivada porque um público só vem ao teatro quando acredita, sabe ou quer ser politicamente ativo”. (110)

Porém o autor faz uma ressalva, onde afirma que “o teatro acontece no espaço do político e produz outra coisa (diferente da política)” (111), visto que no teatro acontece algo impossível de acontecer na política, como: “uma outra palavra, outros signos, outros adventos de sentido”. (112)

Aí, Guénoun destaca a importância da dramaturgia para a representação teatral. Para o autor, o espetáculo teatral não prescinde da palavra. O teatro não é somente literatura dramática, mas parte desta palavra. Um espetáculo que não parte do texto, pode ser um espetáculo, mas não um espetáculo teatral. A diferenciação que faz a ultrapassagem do aspecto político consiste justamente nesta “exibição das palavras”. A palavra teatral impressa se complementa no momento que é exibida, mostrada, através do corpo do ator. Esta visibilidade da palavra, concretizada à vista do público, é o que traduz a metafísica do teatro. Por isto, também vejo a importância de analisar a dramaturgia em si, para pensarmos sobre o atual teatro infantil. Podemos não ter visto a encenação da peça, podemos analisar até um texto inédito, isto porque a escrita teatral levará o leitor para este espaço físico, mesmo que somente em sua imaginação. Um bom texto teatral nos leva, mesmo ainda na leitura, para este espaço onde será propiciada a palavra visível.

É neste caráter político e ao mesmo tempo não político, pois o ultrapassa, que o teatro traz a atitude política em si. É óbvio, que levanto este aspecto, justamente neste terceiro capítulo, pois o texto, ao ser declaradamente político me força a esta análise. Porém, É Proibido Brincar é essencialmente político, não somente por trazer a questão à tona, mas por ultrapassá-la, levando-a ao ato poético e teatral.

O dramaturgo David Mamet escreve em seu ensaio, “Três usos da faca, sobre a natureza e a finalidade do drama” (113), algo para mim essencial no que se refere à dimensão artística do teatro. O autor afirma que a finalidade do teatro não consiste em esclarecer ou ensinar algo para mudar as pessoas. Mamet escreve: “mas a finalidade da arte não é mudar, e sim encantar.” (114)

E, penso eu, neste aspecto mágico do teatro e da arte é que também está inserida a perspectiva infantil; já que a criança ainda não está totalmente guiada pela mente racional e assim aceita o imprevisível, o mesmo imprevisível passível de assustar, mas também de encantar.

Mamet coloca que o poder do teatro consiste essencialmente na possibilidade de inspirar ao homem “a falta de valor da razão”. (115) Sabemos que aquilo é mentira, mas ficamos absortos na sinceridade e encanto desta mentira. Como a criança faz no momento em que brinca, de forma espontânea e maravilhada. Não há necessidade de racionalizar nada e verificar a plausibilidade dos fatos. Ufa! Graças a Deus!

É por isto que lutar por brincar e criar é político e poético, e tanto a criança quanto o adulto podem viver esta experiência. Também nesta aura de encantamento somos capazes de crer que Sinhá Tiana pode, com alguns passes de feitiçaria, voltar a fazer o robô Salvador ressuscitar.

Algo fundamental que percebo na dramaturgia voltada para o público infantil é esta maior abertura à fantasia e à magia, à possibilidade de devaneio e expressão lúdica. Parece-me que quando nos dirigimos a um público adulto, forçamo-nos a aprofundar contextos psicológicos e filosóficos, em detrimento da ludicidade. E teatro, como já vimos até agora, a partir das observações dramáticas, é essencialmente jogo. Este jogo libertador é vinculado fundamentalmente à possibilidade de fantasiar, e verifico que se tratando de dramaturgia e teatro infantil, felizmente não esquecemos disto.


4.3 – O Inesperado Bate à Porta: a Fantasia

O cenário e o ator são a metáfora universal corporificada, e isto é o teatro: a metáfora visível. 
                                                Ortega y Gasset (116)

O fato interessante é que volto a falar sobre a questão de um imaginário corporificado, apesar das três peças de análise serem distintas em conteúdo e expressão.

Parece-me, como já afirmei, que quando se fala de uma literatura dramática e uma expressão teatral infantil, o artista libera-se para penetrar no fantástico, enquanto que no trabalho direcionado para o público adulto, reitera-se sempre um compromisso de tendência realista.

Para um leitor / espectador infantil podemos falar de marcianos ou aurorianos, de baleias e lobos antropomorfizados. Podemos também ressaltar todo traço lúdico. É permitido. Para o adulto, quando o artista distancia-se de uma estética de cunho mais realista e mergulha neste universo metafórico, a obra, para muitos, mostra um caráter “transgressor”.

Muitos dos espetáculos teatrais para adultos, hoje, no Rio de Janeiro, apresentam um texto, um cenário e uma performance artística dentro de parâmetros realistas. Parece-me, às vezes, que o teatro está um pouco esquecido de sua natureza e fica querendo igualar-se a uma estética cinematográfica ou mesmo televisiva, (em geral de tendências realistas ou mesmo “hiper realistas”), a fim de não perder seu espaço, porém, desta forma, acaba perdendo seu valor próprio, descaracterizado de sua natureza metafórica.

Declaro aqui, que não faço uma colocação contra a estética realista, mas simplesmente demarco uma diferenciação existente nas obras direcionadas aos dois públicos.

Ao mesmo tempo, observamos que o teatro, adulto ou infantil, é o espaço, como diz Ortega, da metáfora. Até agora, analisei peças teatrais consideradas infantis, (pois incluem um ponto de vista infantil) e utilizei para meu suporte material crítico de teatro infantil e estudos sobre a criança. Porém, recorri durante todo o meu processo de trabalho a pensadores diversos. Nomes não relacionados diretamente ao teatro considerado infantil, mas referentes ao teatro em si. Esta é mais uma prova de que dramaturgia e teatro infantil são manifestações artísticas como outras quaisquer, e que no caso do teatro especificamente, um bom texto/espetáculo teatral infantil, talvez, aproxime-se mais ainda da própria noção de teatro, pois mergulha efetivamente no imaginário liberto.

Peter Brook, outro nome reconhecido no contexto teatral dito adulto diz que mesmo num espaço livre de cenário, quando um ator chega e pergunta para outro ator, “Por favor… onde é o metrô?” (117), isto bastará para o nosso imaginário levar- nos para o “cenário’ de uma grande cidade. (118). Portanto, o teatro é o local das outras possibilidades, do “fazer de conta”. Basta um pequeno código, e nos transferimos imaginariamente para outro espaço sem movermos nosso corpo do lugar.

Quero dizer com tudo isto, que a teatralidade destacada em todos os textos, até agora, e que atraem a atenção das crianças, é a mesma teatralidade que poderia estar presente em qualquer texto/ espetáculo dito adulto, e que muitas vezes anda sendo esquecido. O caráter mágico, explicitado amplamente no capítulo anterior, é o caráter mágico que o teatro deve ter, seja infantil ou adulto.

Especificamente em É Proibido Brincar, esta magia presente nos passes curandeiros e mágicos de Tia Sinhá convivem bem com a realidade social do morro, com o povo de outro planeta e com o usual poder abusivo de nossos políticos. O alçar vôo presente nesta peça é prova definitiva de que este imaginário liberto não é fuga da realidade. Aqui, o fantástico convive em harmonia dentro do cotidiano próximo de nossa realidade. Não é necessária a exclusão de um para a existência de outro. Como não é necessária a exclusão da criança ou do idoso (presente em Tia Sinhá) para a afirmação do adulto produtivo economicamente em nossa sociedade.

Assim também, a cidade inteira, incluindo todos os adultos, se encanta com a extraordinária presença da baleia com seu filhote na praia. Encantar-se com os animais não é critério infantil e sim uma eleição em prol da afetividade e da vida.

Eis um trecho para ilustração:

(off)- E atenção!!! A TV Trabalhadora informa em edição extraordinária.
Uma baleia com seu filhote surgiu na Praia do Vidigal esta manhã! O fato, que não se registrava há mais de 60 anos, provocou a paralisação dos trabalhos na fábrica de mariscos local. Os últimos informes dão conta que os trabalhadores abandonaram as máquinas e correram para a praia para ver de perto o fenômeno. Em toda a cidade nossas unidades aéreas de reportagem estão registrando uma grande movimentação de rebeldes na cidade. A fábrica de rádios do Salgueiro acaba de paralisar as atividades.
A Polícia se dirige para a praia do Vidigal. (Maristela de Medeiros / Ao Vivo para o Jornal Nacional)
Governador– Ora com que diabo! Uma hora é disco voador. Outra são as baleias? Mas o que está acontecendo no Vidigal?
Dr. Oliveira– Acho bom o senhor resolver logo o problema, governador.
(…) A praia do Vidigal já está ficando lotada.
Dra. Carolina (vendo na tela)- Ih, os aurorianos também estão no meio desta revolução.
Governador (para o público)- Mas como é que eles fugiram do palácio??
Quanta ingratidão! Logo eles, fazendo isto comigo? Cadê a polícia Dr. Oliveira?
Dr. Oliveira– Ta toda lá na praia. Mas… espere. Em greve também!!!
Governador– Mas a greve é ilegal!!! E o pessoal do Judiciário?
Dra. Carolina– Pelo visto foram os primeiros a largar e correr para a praia.
Dr. Oliveira– Veja, governador!!!Os rebeldes do Vidigal e do Salgueiro estão fechando as outras fábricas e chamando o povo para a praia. (119)

Nesta dramaturgia, a luta política pelo direito ao jogo torna-se também uma grande aventura. A luta possui um caráter lúdico. Ela não nega o prazer. O código estabelecido pelos meninos é uma pipa empinada a cada fábrica parada. A vitória de valer seu direito é confirmada pela pipa no ar, a metáfora da conquista da liberdade. A vitória política é visível num gesto poético. O brinquedo alça vôo, e como diz a música de Bob Dylan, “a resposta está no vento” (120)

Vejamos a cena:

Crianças (todas apontam para o céu)- Alá! Alá! Alá!
Zero– As pipas! Elas estão dominando o céu da cidade toda.
Fubá– Paramos tudo.
Carvão– É greve geral.
Governador– (desesperado)- O que é que vocês estão dizendo????
Zero– Que, as suas fábricas, estão todas fechadas.
Governador– Como é que vocês podem saber duma coisa destas?
Barbarela– Por causa das pipas que estão no céu.
Dr. Oliveira– Hein?
Zero– Nós combinamos um sinal com os rebeldes da cidade. Cada lugar onde uma fábrica parasse de funcionar eles deveriam empinar uma pipa.
Governador– Ai, meu Deus! Desta vez eu tô perdido. Minhas fábricas. A produção!!!!!!!!!!!!
O governador desmaia. Os assessores tentam reanimá-lo. Ele fica catatônico  e Oliveira e Carolina começam a brincar com ele para tentar fazê-lo voltar ao  normal.
Mayra e Johny Fly aproveitam para sair correndo da nave.
Cleo corre para abraçar Johny Fly. Caco se junta aos dois. Começam a  dançar e cantar.
Pé de Arraia– Os aurorianos!! Eles estão sorrindo.
Barbarela– É mesmo. Não é grande coisa, não. Mas pode ser um bom começo para eles.
Zero– Pô, para quem não sabia nem o que era felicidade… (121)

Aqui vemos a importância da brincadeira também para os adultos. Dr. Oliveira e Dra. Carolina tentam reavivar o governador através da brincadeira. Já os aurorianos começam a sorrir depois de dançarem e cantarem ao reencontro.

A brincadeira e o lúdico são assim sinais de vitalidade e do próprio jogo cênico. A felicidade dos aurorianos, por exemplo, é visível pelo gesto de cantar e dançar.

E para reavivar o governador, seus assessores tentam brincar com ele. É necessário brincar. Brincar e jogar, tanto para a criança como para o adulto.

Para a criança já vimos que brincar é fundamento em sua vida, mas isto não quer dizer que esta mesma atividade não seja importante para o adulto.

Gilles Brougère escreve a importância do caráter imprevisível e por isto libertário da brincadeira. Como disse anteriormente, as regras em toda brincadeira não correspondem à imutabilidade, assim como o ato de brincar relaciona-se diretamente ao imaginário. A correspondência com os códigos sociais existe, porém, principalmente no caso da criança, ela tem a fácil capacidade de mudar as regras de acordo com seus desejos, inclusive rechaçar aquilo que a desagrada. O futuro da brincadeira é sempre um espaço a ser construído, pois estas mesmas regras vão sendo construídas durante o próprio processo. Assim, o acaso e a indeterminação são inerentes a este processo.

O brinquedo traz um significado social, porém não é um significado fixo para a criança. Ela é capaz de trazer novas interpretações para este brinquedo, como bem entender. É o que as crianças fazem com as pipas na peça citada.

Na brincadeira, a criança é sujeito ativo e poderoso, e esta posição fornece a ela a sensação de domínio numa sociedade que costuma excluí-la. Portanto não é à toa que o governador em É Proibido Brincar não permite a brincadeira das crianças nas ruas, mesmo que estas não estejam trabalhando. Ele começa a tolher desde cedo a capacidade de potência do ser humano. Outro detalhe interessante é que em nenhum momento o nome do governador é pronunciado. Ou seja: o governador não tem nome, identidade particular. É somente representação de uma instituição possuidora de um poder abusivo.

Brougère escreve algo para mim muito importante sobre esta relação entre o poder e a brincadeira. Aqui, cito as próprias palavras do autor sobre o espaço da brincadeira: “É um espaço que não pode ser totalmente dominado de fora. Toda coação interna faz ressurgir a brincadeira. Toda coação externa arrisca-se a destruí-la.” (122)

Ou seja, tentar dominar a atitude de brincar através de um poder externo é algo impossível. Como o governador jamais conseguirá dominar, delimitar, colocar parâmetros nas brincadeiras das crianças, ele as proíbe. Porém, como estas mesmas brincadeiras correspondem ao espaço do desejo, a cada impulso vislumbrado, o jogo ressurge.

Mais uma vez, é importante confirmar a gratuidade no ato de brincar. A brincadeira não parte de uma obrigação e nem visa o alcance de um determinado objetivo, a não ser o prazer.

Penso eu, que também por isto, nossa cultura tem o hábito excessivo de restringir à criança o caráter lúdico das artes e atividades em geral.

Ao adulto, pouco se permite o ócio, a distração, e a possível fantasia advinda desta atitude gratuita. E daí, não nos resta tempo nem para sentir. Não nos enxergamos, e que dirá enxergamos o outro. E muito menos seremos passíveis de criar algo. Parece-me que esquecemos desta capacidade inerente ao ser humano, entretanto verificável sempre na atuação da criança e do artista.

A arte é sempre transgressora, pois assim como a brincadeira ela é capaz de ultrapassar o dado a priori, o unânime, o conhecido. Ela sempre tem um caráter de transcendência ao código social e por isto fundamenta um ato poético. E este ato é gloriosamente infantil.

Ortega y Gasset, em “A idéia do teatro” faz uma alusão ao imaginário no teatro e ao uso da imaginação pela criança.

Ele escreve que já chegamos à vida com as circunstâncias compostas, uma realidade já estabelecida, e isto nos traz um grande peso e seriedade. Ao mesmo tempo, somos capazes e sentimos necessidade de criar novas circunstâncias, escrever nossa história. Assim, a imaginação é fundamental para conseguirmos nos sustentar perante este mundo delimitado.

A criança usa e abusa da imaginação, primeiro, porque nem mesmo apreendeu esta realidade previamente fornecida. Depois, a partir do momento que vai se enredando nesta estrutura social, percebe o fardo a carregar, principalmente, porque ainda não possui instrumental suficiente para lidar com esta mesma realidade. Assim, a força da imaginação a liberta desta sensação de opressão.

Porém, esta necessidade de evasão é primordial à vida de todo ser humano, seja ele criança, jovem ou velho.

Talvez, os aurorianos tenham perdido, como nós também, esta capacidade de evadir-se, e ironicamente, viajam pelo espaço, à procura da felicidade. Não deixam de fazer um movimento de evasão, ao saírem do próprio planeta.

Aqui se dá o primeiro contato entre os aurorianos e as crianças do Vidigal. Por sinal, este primeiro contato, após o medo inicial, é possível através da criança auroriana, Johny Fly. Este é que consegue trazer Mayra até seus pais e o robô Salvador.

Cena 5Na rua, aurorianos reunidos com as crianças.
Cleo– Engraçado, vocês me lembram as crianças lá do meu planeta. Só que elas não são capazes de rir como vocês.
Mayra– Porque elas não riem?
Salvador– Porque no nosso mundo ninguém mais sabe rir.
Pé de Arraia– De nada?
Johny Fly– De nada!
Caco– Nós não sabemos mais sorrir.
Cleo– E é por isto que a gente está viajando pelo universo. Precisamos aprender a ser felizes novamente para poder salvar o nosso povo.
Salvador– Vocês não querem ensinar prá gente?
Zero– Ensinar o que?
Caco– A gente quer aprender com vocês o segredo da felicidade. Depois então, levar para o nosso mundo.
Salvador– Diz logo pra gente! Onde fica a escola da felicidade?
Mayra– Mas a gente não pode aprender a ser feliz na escola.
Cleo– Não é na escola? Então a gente pode comprar pronta? Quanto é que custa?
Barbarela– Ela também não se vende no supermercado.
Caco– Ah, então vocês tem um departamento de felicidade por aqui. Onde é que ele fica?
Mayra– Olha gente, o negócio não é bem por aí, não. Felicidade a gente não aprende.
Zero– Se descobre sozinho.
Zero– Perceberam?
Salvador– Ai, ai, ai minhas estrelas. Mas descobre onde? (123)

Observa-se aqui, que os extra – terrestres, ao contrário, do que em geral é visto neste tipo de tema (ficção científica) são tão humanos como os seres do planeta terra, tanto nos rasgos de consumismo fácil como na melancolia crescente.

E por isto, ainda cabe esta temática, já desgastada em nossa cultura, devido aos avanços tecnológicos na vida real. Aquele ser aparentemente de “outro mundo” é mais parecido conosco, muito mais do que imaginávamos. Os aurorianos são humanos, tão humanos, como o Pluft, de Maria Clara Machado.

Pode-se dizer que É Proibido Brincar possui a realidade da vida urbana, porém sem abdicar das “irrealidades” ditas infantis. E por isto também é um texto destacado pela teatralidade. A realidade contemporânea urbana existe, porém o jogo lúdico existe de forma vigorosa e ativa.

Verifico que a confiança estabelecida entre as crianças do Morro do Vidigal e do Morro do Salgueiro é firmada definitivamente através de um jogo, a capoeira. Pois quem joga bem, é de confiança. Assim pensa a criança.

Isto é visto na seguinte cena:

Cena 6Na fortaleza. Rebeldes reunidos. Surge o pessoal do Morro do Salgueiro.
Pé de Arraia– Quem vem lá?
Carvão– Ô de casa!
Zero– Que é que ta acontecendo Pé de Arraia?
Pé de Arraia– Tem um pessoal aí do lado de fora. Eles estão dizendo que são gente boa.
Barbarela– Mas o que é que vocês querem por aqui? De onde vocês são?
Fubá– Da fábrica de rádios lá do Morro do Salgueiro.
Zero– Como é que a gente pode saber se vocês não tão com o governador?
Joe– Tá desconfiando da gente?
Pé de Arraia– Vamos ver se vocês são espiões do governo ou não são. Abre a roda rapaziada!Pé de Arraia abre a roda de capoeira e começa a lutar com Joe. Outras crianças também entram na luta. Começam a se entender. (124)

Pé de Arraia testa o colega, a fim de saber se este é espião do governador ou não, através do jogo. Afinal o governador não sabe jogar. As crianças são capazes de se entender através do jogo lúdico. Através do jogo é possível obter confiança, pois através desta atividade a inclusão é propiciada e o outro é revelado.

Há uma frase de Camus na medida certa para esta consideração:

“O pouco que conheço de moral aprendi nos campos de futebol e no palco”. (125)

Neste texto, Camus escreve sobre três coisas que julgo serem importantes ressaltar. Uma delas é o sentimento de espontaneidade propiciado pelo teatro. Mesmo sentimento já destacado nesta dissertação por Slade, ao confirmar este espírito na criança quando dramatiza. Camus escreve:

Na companhia de intelectuais sempre me sinto como algo em mim tivesse que ser perdoado; sempre tenho a impressão que quebrei alguma das regras do clã. Esse sentimento dispersa minha espontaneidade, e sem espontaneidade, eu me aborreço. No palco, sou espontâneo. Não penso naquilo que tenho ou não de ser, e as únicas coisas que partilho com meus colaboradores são as experiências e as alegrias de um empreendimento em comum. É um estado, acredito, que se chama companheirismo, e tem sido uma das grandes alegrias de minha vida.

E a partir deste companheirismo percebido por Camus, o escritor continua seu pensamento:

Essa mútua dependência, quando reconhecida com humildade e bom humor apropriado a ela, forma a solidariedade da profissão e dá um corpo a esse companheirismo diário. Nele, estamos todos ligados um ao outro sem perda de liberdade de ninguém (ou quase isso). Não é uma boa receita para a sociedade do futuro? (127)

Quando o escritor destaca a palavra moral, na verdade, ele escreve sobre este espírito inclusivo do outro, sem mutilarmos nossa própria singularidade. Reflito que a própria temática de É Proibido Brincar revela a teatralidade. Na peça, a luta das crianças é motivada pelo desejo que respira em cada um, mas desenvolve-se através de um trabalho de equipe, que no caso, envolve toda a comunidade.

Talvez, o individualismo e narcisismo, tão exacerbados em nossa sociedade contemporânea, sejam alguns dos motivos responsáveis para o descaso sofrido pelo nosso teatro nos últimos tempos.

Desta forma, É Proibido Brincar traz à baila o tema da cidadania sem apelos didáticos, mas calcado no espírito teatral: o jogo que envolve o outro.

E este outro não é somente o outro indivíduo diferente de mim, mas aquele possuidor dos mesmos direitos. Este outro é também aquele mundo excluído de nossa sociedade: o mundo poético, diferente da realidade cotidiana, porém com a mesma força vital. O mundo das outras possibilidades, visto que a realidade cotidiana não é um dado imutável.

O considerado irreal pode vir a ser real, mesmo que seja por poucas horas, e este jogo de concretude da irrealidade que o teatro nos revela. Por isto Ortega y Gasset escreve em “Aidéia do teatro” que o teatro é o espaço onde é possível vermos a metáfora, “o como se” (128), onde este mundo imaginário é exibido, realizando a própria irrealidade, ou nas exatas palavras de Gasset, “a pura fantasmagoria” (129)

Gasset parte de um exemplo na poesia e o transfere depois para o teatro:

Por isso, a expressão mais usada na metáfora emprega ocomo e diz: a faca é como uma rosa. O ser como não é o ser real, senão um como-ser, um quase-ser: é a irrealidade como tal.(…)
Pois bem, o mesmo acontece no teatro, que é o “como se” e a metáfora corporificada – portanto, uma realidade ambivalente que consiste em duas realidades – a do ator e a da personagem do drama que mutuamente se negam. É preciso que o ator deixe durante um momento de ser o homem real que conhecemos e é preciso também que Hamlet não seja efetivamente o homem real que foi. É mister que nem um nem outro sejam reais e que incessantemente se estejam desrealizando, neutralizando para que só fique o irreal como tal, o imaginário, a pura fantasmagoria. (130)

Outro aspecto já evidenciado nesta dissertação, mas que nunca é muito destacar, até porque já o verificamos através de diferentes vozes, diz respeito a esta fantasmagoria, onde as realidades são negadas: isto não consiste na perda de sentido do real, afinal sabemos que a irrealidade é uma outra forma de representar o real, em determinado momento. Sabemos que uma pipa é uma pipa, que Mayra é um personagem que será interpretado por uma atriz, e que É Proibido Brincar é uma peça teatral.

Gasset escreve que a farsa, considerada um gênero teatral, mas também espécie de pilar do teatro, é também algo próprio do ser humano, devido a nossa realidade extremamente séria e por isto sufocante. Daí a necessidade de evasão e criação de outro mundo. E este outro mundo, ainda é confirmado por Gasset, como proveniente da capacidade de jogar. O autor escreve:

Por isso, senhores, a vida – o Homem- se esforçou sempre em acrescentar a todos os fazeres impostos pela realidade o mais estranho e surpreendente fazer, um fazer, uma ocupação que consiste precisamente em deixar de fazer tudo o mais que fazemos seriamente. Este fazer, esta ocupação que nos liberta das demais é… jogar. Enquanto jogamos não fazemos nada – entende-se, não fazemos nada a sério. O jogo é a mais pura invenção do homem; todas as demais vêm, mais ou menos, impostas e preformadas pela realidade. Porém as regras de um jogo – e não há jogos sem regras – criam um mundo que não existe. E as regras são pura invenção humana. (…) O homem fez, faz…. o outro mundo, o verdadeiramente outro, o que não existe, o mundo que é brincadeira e farsa.O jogo, pois, é a arte ou técnica que o homem possui para suspender virtualmente sua escravidão dentro da realidade, para evadir-se, escapar, trazer-se a si mesmo deste mundo em que vive para outro irreal. Este trazer-se da vida real para uma vida irreal imaginária, fantasmagórica é dis-trair-se. O jogo é distração. O homem necessita descansar de seu viver e para isso pôr-se em contato, voltar-se para ou verter-se em uma ultravida. Esta volta ou versão de nosso ser para o ultravital ou irreal é a diversão. A distração, a diversão é algo consubstancial à vida humana, não é um acidente, não é algo de que se possa prescindir. E não é frívolo, senhores, aquele que se diverte, senão aquele que crê que não há que divertir-se. (131)

E mais especificamente, sobre o teatro, Gasset conclui a necessidade da fantasmagoria e da farsa no ser humano, em caráter duplo, ao ser farseado e farsante:

O homem ator se transfigura em Hamlet, o homem espectador se metamorfoseia em convivente com Hamlet, assiste à vida deste – ele também, pois, o público, é um farsante, sai do seu ser habitual para um ser excepcional e imaginário e participa em um mundo que não existe, em um Ultramundo; e nesse sentido não só a cena, mas também a sala e o teatro inteiro resultam ser fantasmagoria, Ultravida. (132)

Enfim, não é preciso muito mais, para percebermos que É Proibido Brincar é um texto de natureza teatral por si próprio, em seu caráter de jogo, de humor, onde a fantasia exibe presença marcante, em convívio harmonioso com um painel também caracterizado pela nossa realidade urbana.

É um texto teatral infantil sim, pois acima de tudo não nega, e mesmo exige, o direito à criação coexistente à brincadeira.

Se, em “Lasanha e Ravióli in casa” teatralizamos o próprio teatro infantil, com crítica e humor, e em “Tuhu, o menino Villa-Lobos” afirmamos definitivamente o caráter infantil como impreterivelmente poético e artístico, aqui, em É Proibido Brincar distribuímos a todos o espírito teatral, onde de forma inesperada, a democracia se estabelece.

Os deuses do teatro agradecem.

Nota de Rodapé

97. Ostrower, Fayga. “Criatividade e processos de criação”. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 166.
98. Castro, É Proibido Brincar, 1998, p.1.
99. Ibidem, p.2.
100. Op. Cit, p.22.
101. Yunes, Eliana. “Onde está o outro” in Leituras Compartilhadas, ano 5. RJ: Leia Brasil/ Ediouro, p. 97.
102. Op. Cit. p. 5-6.
103. Ibidem, p. 19.
104. Expressão usada pelo personagem Pé de Arraia. Op.cit., p. 1.
105. Op.Cit. p.9.
106. Antunes, Arnaldo. Britto, Sérgio e Fromer, Marcelo. “Comida”. Letra extraída do CD Titãs Acústico, s/d.
107. Ver Blog do Wotzik, 17/01/2006.
108. Apud Miralles, p. 81.
109. Guénoun, A exibição das palavras. Rj: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.
110. Guénoun, Denis, A exibição das palavras, p. 39.
111. Ibidem, p. 41.
112. Idem.
113. Mamet. Três usos da faca, sobre a natureza e a finalidade do drama. RJ: Civilização Brasileira, 2001.
114. Ibidem, p. 30.
115. Ibidem, p. 69.
116. Gasset y Ortega, A Idéia do Teatro, p. 37.
117. Exemplo citado por Brook em A porta aberta, p. 22.
118. No caso o diretor cita Paris como exemplo.
119. Op.cit, 18-19.
120. Op.Cit.
121. Op.Cit, p. 21-22.
122. Brougère, p. 103.
123. Op. Cit, p. 3-4.
124. Op.Cit. p. 8-9.
125. Camus, O pouco que conheço de moral aprendi nos campos de futebol e no palco, s/p.
126. Idem.
127. Idem.
128. Gasset, p.39.
129. Idem.
130. Idem.131. Ibidem, p. 51-52.
132. Ibidem, p. 54.