3. Tuhu, O Menino Villa-Lobos ou O elogio Teatral à Infância

Pensamos em demasia, e sentimos bem pouco.
Charles Chaplin 
(61)

O segundo texto escolhido por mim para leitura crítica foi Tuhu, O Menino Villa-Lobos, escrito em 1997, mas em vias de publicação pela editora Rocco ainda no ano de 2006. (62)

A autora, Karen Acioly, além de dramaturga, é atriz, diretora e produtora, o que confirma um fato frequente: o dramaturgo (a) é uma pessoa que já transita pelo ambiente teatral, antes mesmo de dedicar-se a este tipo de escrita.

Hoje, Karen Acioly preside o CTIJ – Coordenação de Teatro Infanto-Juvenil, da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Uma das atividades do CTIJ consiste em garantir a presença de alunos da escola pública nos teatros administrados pela Prefeitura.

Já é notório o destaque à memória na dramaturgia infantil de Karen Acioly. Aqui, neste texto, Tuhu, O Menino Villa-Lobos, a autora evidencia a memória de nossa cultura através da história do músico Heitor Villa-Lobos. Na verdade, não se trata de uma biografia do músico para os palcos, mas sim de uma fábula teatral, centrada na infância e adolescência do músico. Assim, personagens reais estão juntos a personagens fictícios. Por exemplo, as irmãs do músico são representadas no texto teatral por uma única personagem: Lulucha.

Ao mesmo tempo, aspectos centrais e essenciais da história de Villa-Lobos estão presentes de forma proeminente e consistente na peça. Tais como: a descoberta da música ainda criança, o vínculo forte com o Brasil, o espírito visionário e aventureiro do músico, os primeiros amores, o primeiro concerto, etc…

Tuhu, O Menino Villa-Lobos é um texto de ficção sobre um personagem real. Muitas vezes este tipo de trabalho pode ser perigoso, pois o texto teatral pode se tornar uma aula de história sobre a biografia do músico ou também se transformar numa ficção onde não se reconheça mais a personalidade pública. Contudo, este texto consegue transitar bem entre os dois pólos, já que a dramaturga privilegia a teatralidade, porém deixa o “espírito” do músico “transparecer”.

A peça teatral escolhida também representa um contraponto importante àqueles textos que procuram fornecer um conteúdo educacional às crianças, esquecendo da teatralidade que o texto/espetáculo deve conter, além do prazer que estes devem suscitar no leitor/espectador.

Algumas vezes, o crítico Carlos Augusto Nazareth (63) reconhece um trabalho de pesquisa (conteúdo e/ou linguagem) sério, com vistas à qualidade, porém, restrito na teatralidade essencial do texto/espetáculo. Ou seja: tentando agradar pais, educadores e críticos ao transmitir questões históricas/ culturais, muitas vezes este texto/espetáculo pode deixar escapar a sua primeira função em si, a função artística. Então, retornamos ao já citado equívoco presente no teatro infantil, apontado de forma unânime por vários outros críticos e estudiosos: o didatismo, o teatro como “aula pedagógica”, onde se procura, antes de tudo, instruir a criança.

No texto de Acioly não há este equívoco, nenhum didatismo é encontrado, nem mesmo quando é presenciada a paixão do músico pelo Brasil. Facilmente, neste momento, poderia haver uma aula de patriotismo. Mas não. O texto representa o amor à pátria através da percepção da beleza do país. Tuhu não aprende (de fora para dentro) este amor, mas o apreende, já que este amor nasce dentro dele, através de seu encantamento pelas cores e sons do meio em que vive.

Como já foi dito anteriormente, a criança vivencia os fatos. Seu poder de abstração vai sendo construído aos poucos. A natureza da criança se fundamenta na concretização, na vivência. Portanto, seu momento é o presente, sem causalidades e conseqüências. E neste texto, a criança é capaz de entrar no universo do músico através do aspecto lúdico e teatral, característico da infância.

A peça se inicia com o nascimento de Villa-Lobos e destaca a sua infância até à adolescência, por volta dos dezesseis anos, quando o músico rege seu primeiro concerto e decide começar a viajar pelo país. Vemos pelo próprio título da peça, Tuhu, O Menino Villa-Lobos, que a história privilegia sua infância. Inclusive, esta vivência se mostrará determinante para o desenrolar da trama teatral, pois é vista no texto como um fator de grande inspiração criativa para o artista. A maneira como o menino Tuhu vive sua infância irá determinar o músico Villa-Lobos. Este caminho escolhido no universo textual permitirá um elo de identificação com a criança leitora ou espectadora. A criança irá vivenciar, através da infância de Villa-Lobos, questões presentes em sua própria infância.

Na peça, Villa-Lobos começa a experimentar a música ainda como o menino Tuhu, percebendo os sons de seu ambiente, de forma concreta e lúdica. Verificamos isto na primeira cena, num diálogo entre Tuhu, o apelido do músico quando criança, e seu pai:

Tuhu– Ih! Pai! E aquele som, o que é aquele som ali que voa?
Raul– É o sabiá, um passarinho, Tuhu…
Tuhu– E quem faz este canto?
Raul– É o Uirapuru! Os pássaros conversam, Tuhu.
Tuhu– E aquele som que molha?
Raul– É o rio que corre…
Tuhu– E esse som que batuca no meu peito, certinho, certinho…
Raul– É o seu coração, meu filho… (64)

Na peça, o tempo passa e Tuhu chega à adolescência (dezesseis anos), quando irá oficialmente iniciar sua carreira de músico (sendo pago para isto) e de certa forma iniciar a vida adulta. Após este acontecimento, Tuhu parte para viajar pelo Brasil.

Mas mesmo na adolescência, todos seus pensamentos e aspirações possuem sempre uma ligação concreta com a vida. Este tipo de vivência fornece a permanência do vínculo com a criança (leitor/espectador). Um exemplo: quando o músico está viajando pela Amazônia, ele ouve novamente os pássaros e especialmente o Uirapuru (neste momento, o som dos pássaros se confunde com a música “O canto do uirapuru”) e assim, num rompante, Tuhu tem a certeza do tipo de música que deseja fazer. Esta certeza ocorre também pelo fato de Tuhu lembrar-se da sensação de liberdade que outrora, na infância, este canto já lhe fez sentir. Desta forma, o passado se torna presente.

A linguagem teatral em si, o tornar presente cada ação, aqui e agora, também é um facilitador do jogo infantil, e neste aspecto, apesar da criança ter o presente como seu momento próprio, o texto consegue trazer a memória do músico (nesta passagem de tempo) para a criança. O texto não narra o passar do tempo e sim vivencia este passar do tempo mostrando cada cena. Além disto, o próprio espírito artístico do músico consiste nesta ligação concreta com a vida e sua infância. Tudo vivido na infância de Villa-Lobos permanece inspirando-o, mesmo mais velho, como uma presença viva.

A peça traz o grande músico Villa-Lobos como o eterno Tuhu, identificando-o assim com um espírito vivaz e imaginativo, possível de ser encontrado em toda criança. Um espírito curioso e afetuoso, capaz de sentir o mundo e integrar-se nele. E, por isto também, ser capaz de recriá-lo. Penso eu, que talvez Villa-Lobos tenha sido o grande músico que foi, pois nunca deixou Tuhu morrer dentro de si.

A criança será capaz de ter empatia por Villa-Lobos por ser apresentada ao menino Villa-Lobos que, mesmo crescendo, não deixa de ser o Tuhu.

O passar do tempo na peça é percebido através da pontuação de fatos marcantes na vida do artista: as descobertas da natureza nos primeiros anos de vida, a entrada na escola e a decorrente inadequação, a “apresentação” a Bach por sua tia Fifina, a descoberta da música popular nas ruas etc… Mas mesmo assim, há um entrelaçar destes tempos, tornando-os de certa forma uno, como um grande presente que permanece no referencial da infância. Villa-Lobos é o menino Tuhu até o final da peça, inclusive como nome. Já músico, viajando pelo Brasil, o personagem se apresenta com o nome de Tuhu e permanece com o espírito de Tuhu.

As músicas de Villa-Lobos usadas na peça aparecem como fundo musical desde o início do texto. O primeiro diálogo de Tuhu com o pai é pontuado com o “Trenzinho Caipira”. E aí, ao ouvir a música, Tuhu diz:

-“… Que sonzinho gostoso esse, hein, pai… Tuhuuuu, Tuhuuuu, Tuhuuuu,
parece que leva a gente…- Raul – É o trem”. (65)

E durante toda a peça isto acontece, o que provoca no leitor/ espectador, mais uma vez, a experiência da infância de Villa-Lobos como fonte de inspiração e matéria prima de sua obra, além de propiciar um contato direto com suas criações.

A forma como as músicas do compositor são colocadas na peça evidenciam também o caráter lúdico e dinâmico desta apresentação à criança leitora/espectadora. Este caráter lúdico e poético relaciona-se primordialmente com o entrelaçar dos tempos (passado, presente e futuro), visto que as futuras obras do músico, hoje conhecidas por todos, são sugeridas no texto teatral já na infância de Tuhu.

Além das músicas de Villa-Lobos, é proposto na peça um repertório de influências musicais presentes na obra do artista: músicas indígenas, choros e clássicos de Mozart e Bach.

O texto Tuhu, O Menino Villa-Lobos deixa a sua importância na dramaturgia infantil, não somente como um texto dramaticamente bem construído, dono de uma linguagem poética repleta de imagens e lirismo (por sinal, este tipo de linguagem é destacado por Kühner como uma característica renovadora na atual dramaturgia para crianças) (66), ou ainda porque leva ao conhecimento da criança uma personalidade como Villa-Lobos, mas acima de tudo, por valorizar cada criança que venha ler este texto ou assistir o respectivo espetáculo.

A dramaturgia de Tuhu, O Menino Villa-Lobos valoriza esta criança, pois reconhece nela uma potência criadora e por isto transformadora. É um texto que coloca a criança em “pé de igualdade” com o adulto. E mais: faz o adulto perceber que pode aprender com esta criança.

3.1 – O “Personagem Real”, o Personagem Teatral e a Natureza Infantil

Divertiu-me uma ideia – a ideia de que, embora a vida de uma pessoa seja composta de milhares e milhares de momentos e dias, esses muitos instantes e esses muitos dias podem ser reduzidos a um único: o momento em que a pessoa sabe quem é, quando se vê diante de si.                                                    Jorge Luís Borges (67)

É frequente hoje, em nossa cultura, uma quase obsessão pela memória, e consequentemente o interesse pelo discurso biográfico e o (auto) biográfico.

Huyssen, em seu livro, “Memórias do Modernismo”, (68) destaca que em todo final de século, há sempre uma volta do olhar humano para o passado, numa tentativa de armazenamento de dados e necessidade do próprio homem situar-se no tempo. Paradoxalmente, hoje também é frequente a ideia de que nossa cultura ocidental sofre de certa amnésia.

Huyssen acrescenta que os períodos de final de século também são caracterizados por sensações de decadência, nostalgia e perda. Mas junto com estas sensações são observados sentimentos de renovação e rejuvenescimento. Acontece que neste último fim de milênio, ficamos muito mais ligados ao passado, pois perdemos a confiança num projeto coletivo de futuro. Por isto, a representação da memória vem tendo tanto destaque em nossa cultura. Além disto, evidencia-se aí a oportunidade do ser humano analisar como sua própria cultura vivencia a temporalidade.

Entre experimentar um acontecimento e lembrá-lo como representação, há a necessidade de um decurso de tempo para esta articulação, e por isto a memória relaciona o passado ao presente, tornando-a mais do que um simples sistema de armazenamento e recuperação de dados, mas também uma elaboração onde coexistem os afetos e o imaginário, por exemplo.

Por isto também, as temáticas circundantes à memória possuem um poder estimulante para a criação artística e cultural. Assim, observamos a questão da memória e do (auto) biográfico sempre como presenças importantes e interessantes em todo fazer artístico, independente de sua especificidade. Ainda mais, nos tempos atuais.

Para Huyssen, o boom da memória nas décadas de 80 e 90 corresponde à própria necessidade de estruturar nossa temporalidade, fragilizada pela nossa sociedade fundamentalmente tecnológica.

O homem possui a necessidade de viver em estruturas de temporalidade de maior duração e, as representações da memória, incluindo aí a (auto) biografia funcionam como uma resposta à aceleração deste tempo.

Neste aspecto, o ato de ver e ouvir histórias alheias relaciona-se com uma possibilidade de construção de identidades através das negociações entre o próprio eu e o do outro, em diversas modalidades. Desta maneira, tenta-se ordenar um pouco a realidade atual, construindo um sentido para o caos presente nesta mesma realidade. Verifica-se também uma proposta para fornecer ao homem uma possível sustentação psicológica, ao elaborar as referências identitárias. Aqui, presenciamos a volta de um sujeito, outrora esquecido, retornando agora como complexidade. Hoje, todo material cultural circundante a este sujeito, relaciona-o com um caráter múltiplo, onde as subjetividades não são mais temidas, nem os afetos e sentimentos. Este sujeito atual revela-se um eu de múltiplas interpretações e dono de uma ação mais corajosa e vital.

Portanto, mais do que nunca, observa-se em nossa cultura este olhar em torno da memória e do sujeito, destacando assim o interesse pela biografia ou autobiografia. Este fato é observado em grande abrangência, na literatura, cinema, televisão, teatro, etc… Temos inclusive, obras que não são propriamente biográficas, mas possuem um cunho biográfico, pois centram sua narrativa principal na vida de uma personalidade.

A atual sensação da falta de conexão com o próximo, com a própria família, e de certa forma consigo mesmo, é compensada ao ouvir ou ver a história do outro, aproximando-nos da possibilidade de ainda sentirmos algum grau de irmandade entre nós, seres humanos.

Tuhu, O Menino Villa-Lobos é um texto dramático que está relacionado a estas reflexões. A peça não trata, como disse antes, da biografia do músico Villa-Lobos, mas naturalmente tem um cunho biográfico, afinal seu drama consiste essencialmente na infância de Villa-Lobos. Como uma obra artística que é, a peça circula entre a realidade e a fantasia, como a própria criança o faz.

Obviamente, todas as problemáticas colocadas acima, acerca da memória e do biográfico, dizem respeito muito mais ao mundo adulto do que o infantil. Mais uma vez, reitero que a criança somente irá transitar por este espaço da memória quando estiver dominando o raciocínio lógico. Inicialmente, a criança vivencia o mundo como um eterno presente, sem noções de causas e conseqüências, porém a própria linguagem teatral, caracterizada pela demonstração de algo no instante presente, trata de tornar este passado uma presença atualizada. Além disto, o personagem Villa-Lobos, apresentado em sua infância basicamente, representará um elo com a criança leitora ou espectadora. Para os pais desta criança, talvez será importante levá-la a um espetáculo cuja dramaturgia baseia-se no reconhecido músico, porém, para a criança, quem importará realmente será o menino Tuhu, com quem irá identificar-se.

No capítulo anterior, escrevi um pouco sobre a vinculação entre a arte e a infância, e agora retornarei a esta questão, sob o olhar do artista Villa-Lobos: mais do que nunca um espírito eternamente infantil.

Com esta dramaturgia de Acioly, reconheço que perdi o medo de escrever a palavra infantil, pois é revelado em Tuhu / Villa – Lobos a grandeza e a coragem de ser infantil.

Portanto, associo a partir deste momento, relações entre o personagem real Villa-Lobos e o personagem fictício de Karen Acioly: Tuhu. E veremos que não é pejorativo o homem que permanece, de certo modo, infantil. Ao contrário: pode ser uma benção.

Tuhu, O Menino Villa-Lobos é uma peça dramaticamente bem construída em todos os aspectos, personagens, desenvolvimento de trama, conflitos, escolha de uma linguagem poética reveladora de encantamento, etc… Porém, percebo que um de seus maiores méritos é fazer um elogio à infância. É fundamental na personalidade e obra de Villa-Lobos a presença da forma infantil de experienciar a vida. O próprio texto de Acioly acredita nisto. Um exemplo desta crença consiste no entrelaçamento das músicas de Villa-Lobos presentes no texto com a passagem de momentos da infância do menino Tuhu. O próprio apelido de Villa – Lobos corresponde a um som, o som do trem. Heitor Villa-Lobos é nomeado em sua infância por um som, determinando desde já a linguagem sonora, musical, como sua linguagem primordial.

Partindo de um texto crítico de Celso Kelly (69), onde o autor reflete sobre frases e pensamentos do próprio Heitor Villa-Lobos (proferidas em palestra) como representativas de sua personalidade enquanto homem e artista, vejo também que este mesmo espírito preside o menino Tuhu, enquanto personagem teatral.

O texto teatral de Acioly nos afirma a importância do modus vivendi infantil, caracterizado por uma total integração com o mundo, como fundamental para a expressão da genialidade artística. Aquilo a que no capítulo anterior, eu me referi, utilizando as palavras de Kofman, sobre a infância e a arte, é agora exemplificado numa forma artística: na dramaturgia de Tuhu, O Menino Villa-Lobos.

Celso Kelly destaca a personalidade humana e artística de Villa-Lobos fundada numa riqueza de sensibilidade e pensamento criativos, possibilitados de forma imprescindível pelo espírito liberto de preconceitos, por uma sensibilidade integradora com a natureza e a cultura circundantes, além da afirmação de uma linguagem particular.

Apreciador de Bach e da música brasileira, como os choros, ou ainda da música indígena, Villa-Lobos não fez distinções entre a considerada música erudita e folclórica, justamente numa época em que eram valorizadas apenas as músicas francesas e italianas. Segundo o próprio Villa – Lobos, Bach também soubera inspirar-se na música folclórica alemã, e isto lhe teria trazido uma grandeza musical.

A apreensão musical de Villa-Lobos partia de dentro de si, prolongando-se para o mundo a sua volta e por isto o músico mergulhou na cultura e natureza brasileiras. Ao vivenciar o mundo a partir de si e, não do que os outros diziam ou mesmo acreditavam, Villa-Lobos foi capaz de criar uma obra original e autoral, fugindo dos cânones, das convenções, além de resistir às iniciais críticas. A obra de Villa-Lobos é arrebatadora por esta tendência à desmedida e também lírica por acreditar e perseverar em sua própria sensibilidade intuitiva. Acreditando no mais íntimo de sua identidade como algo conectado ao todo à sua volta, o músico foi capaz de através da música, sua linguagem essencial, alcançar a alma do povo brasileiro e ser reconhecido no exterior.

A percepção do mundo a sua volta, ele a incorporava e a assimilava, transfigurando assim possíveis meras influências em criações próprias.

Este espírito caracterizado acima está relacionado essencialmente à natureza infantil, porque a criança é capaz de apreender o mundo exterior sob sua ótica particular, integrando-se a ele, isenta de classificações, preconceitos ou julgamentos externos. Ou seja: livre.

E assim é Tuhu na dramaturgia em foco. Um menino que desobedece aos pais fugindo para as ruas, engana a irmã para fugir do castigo, rouba um livro do pai para comprar lanches para os chorões e, evidentemente, não se adapta à escola, um lugar, na época, caracterizado pela repressão à individualidade e pela total falta de liberdade criativa.

Eis aqui, dois trechos dramatúrgicos que evidenciam este espírito de Tuhu / Lobos: livre e rebelde para qualquer forma de tolhimento à criação e expressão individual.

Primeiro trecho:

Cena 8( Noêmia entra costurando uma nova roupa para vestir Tuhu. É a roupa da escola. Noêmia canta Constante)
Noêmia: Tuhuuuu! Vem Tuhuuu! Olha que roupa bonita!
Tuhu: Mãe… essa é a roupa da escola… Mãe, eu não quero ir pra escola…
( Noêmia tenta vestir Tuhu).
Noêmia: Vamos ver…hum…que beleza…nossa, como você fica bonito de uniforme!
Tuhu: Ninguém fica bonito de uniforme, mãe…
Noêmia: Como o meu filho está lindo! Diga para mim, filho, o que você vai ser quando crescer?
Tuhu: Vou ser grande, mãe!
Noêmia: Deixa de brincadeira, fala sério, Tuhu!
Tuhu: Vou ser músico, mãe!
Noêmia: Deus me livre, meu filho…vai aprender um ofício direito…médico, que tal? Meu filho…um doutor…quem sabe até um cirurgião…( Enquanto a mãe fala, Tuhu tenta dizer que nunca, jamais, de jeito nenhum).
É preciso instruir, filho, ser como o seu pai: homem de cultura.
Tuhu: Mãe, minha mãe querida, eu vou ser músico!
Noêmia: Então, depois que você entrar na faculdade de medicina, que seja músico nas horas vagas. Mas mesmo nas horas vagas, músico clássico! E nada de tocar violão, esse instrumento de capadócios! Que toque violoncelo, violoncelo clássico! Não quero ver você como essa gente perigosa… esse grupo de vadios que toca aquela música indecente!
Tuhu: Mas, mãe, o chorinho é tão divertido…
Noêmia: Não quero ouvir falar em chorinho nenhum aqui dentro.
Tuhu: Mas…
Noêmia: Promete para a sua mãe que você nunca vai me decepcionar!
Tuhu: Prometo, mãe…
Noêmia: Então agora vá para a escola, filho… correndo para não se atrasar!
Tuhu: Que jeito!
Raul: Noêmia, você viu, Tuhu?
Noêmia: Foi para a escola.
Raul: Tuhu cresce e eu me preocupo com o que vai ser desse menino que nenhuma escola há de compreender..(61)

Segundo trecho:

Cena 9 – Na escola.
(Os alunos entram cantando na volta do recreio).
Professora: Sentem-se! Decorem…
(Tuhu chega atrasado. Todas as crianças sorriem. A professora o encara, instaurando um clima de terror).
Professora: Sr. Heitor… Como sempre atrasado…vou fingir que não notei a sua presença…
Professora: Decorem: Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal!
Tuhu: (Baixinho).
Um embaixo, outro em cima, laranja-da-china, laranja-da-china, laranja-da-china! Limão doce, limão doce e tangerina!
Professora: Silêncio!
‘De ponta a ponta é toda praia (…)
Águas são muitas, infindas’…
Aluno Puxa-Saco: Águas infindas, bonito isso, hein, senhora professora!
Professora: Silêncio! Agora repitam comigo:
‘Os navios de Cabral se acharam em 21 de abril de 1500, (…)
Alunos (Repetem): Os navios de Cabral (…)
(…)
Professora: ‘Os selvagens que lá se encontravam…eram pardos, nus, sem nenhuma cousa que lhes cobrisse suas vergonhas…’
Tuhu (interrompe): Os selvagens eram os índios, senhora professora?
Professora: O senhor não tem a permissão da palavra, sr. Heitor…
Aluno Puxa-Saco: A minha mãe disse que esse menino não presta.
Professora (continuando): Os selvagens que (..) E assim, em 22 de abril de 1500, O Brasil foi descoberto por Pedro Álvares (…) Repitam. (…) (Tuhu não repete. O que irrita terrivelmente a professora).
Professora: Sr. Heitor Villa-Lobos, algum problema em repetir a frase?
Tuhu: Não é bem problema, senhora dona professora, só que eu não acho que o Brasil foi descoberto pelos portugueses…
(Começa a tocar a canção indígena Enzenina).
Professora: Prossiga, Sr. Heitor…
Tuhu: Prossigo, senhora dona professora. O Brasil foi descoberto pelos pássaros, que avistaram às matas, que chamaram os índios para morarem nelas para dançar e alegrar a vida. Depois de encher de sons as matas, os negros com seus batuques(crescendo Enzenina) chamaram as cobras, que trouxeram os mamelucos, os caboclos e os cafuzos, que povoaram essa terra…que não pode ter sido descoberta pelos portugueses…
( A turma toda aplaude. A professora perde o rebolado).
Professora: Calem-se!!! Sr. Heitor, a sua nota é zero! Zero! E o senhor está expulso dessa escola!
(Tuhu sai).
E vocês estão suspensos!
Aluno Puxa-Saco: Bem que minha mãe disse que esse menino era mau elemento. Eu nunca jamais gostei dele…jamais mesmo!
(A turma chora e assobia baixinho). (71)

No artigo de Celso Kelly, há uma frase de Villa-Lobos adulto, sobre o significado que a escola deveria ter para o maestro. Eis a frase:

(…) o templo para desenvolver a alma, cultivar o amor à beleza, compreender a fé, respeitar o silêncio, adorar os fatos e coisas sobrenaturais, e, finalmente, preocupar-se com todas as qualidades e virtudes, de que mais depende o progresso da humanidade. (72)

Vemos que esta consideração de Villa – Lobos é explicativa para a inadequação escolar vivida na infância, afinal de contas, esta escola que primeiramente estimula a sensibilidade, a beleza e o sobrenatural, não é a mesma escola que Tuhu experimentou, nem o Tuhu real, nem o Tuhu fictício. E por isto mesmo, nosso personagem teve que procurar inspiração nas ruas e na natureza. Verifica-se mais uma vez, o cunho biográfico cruzando com o fictício.

Outra característica do mundo infantil, presente em Tuhu e nas considerações de Kelly sobre as próprias frases de Lobos, refere-se à capacidade de absorção da criança no instante presente que vivencia alguma experiência, característica que a faz ser capaz de sentir-se totalmente integrada ao seu fazer e a tudo que diz respeito a esta experiência.

E por isto também, a memória, com suas causalidades e efeitos, não diz respeito ao olhar infantil. O momento da criança é o aqui e agora, vivenciando intensamente o momento presente. Por este motivo, o teatro é capaz de seduzir a criança, pois o drama corporifica o pensamento, jamais destituído de afetos, na ação presente.

Esta questão paradoxal presente na dramaturgia de “Tuhu”, (eu me refiro à memória versuso tempo como instante / evento), discutirei mais tarde quando analisar a linguagem poética da obra, mas agora quero centrar-me na vivência deste presente, característico da criança, como crucial à criação artística, e aqui em especial a Villa-Lobos.

No texto de Celso Kelly há também um pensamento do maestro, proferido para o argentino José Maria Fontova, que explicita esta integração do mais puro íntimo de seu ser com o mundo exterior. Villa-Lobos diz:

Escrevo música porque obedeço a um mandato interior… Escrevo essa música porque toda ela está dentro de mim, como meus nervos, como minhas veias… e escrevo música brasileira porque me sinto possuído pela vida do Brasil, de seus cantos, de seus filhos e de seus sonhos. De suas esperanças e de suas realizações. (73)

Villa-Lobos sentia a terra e o povo brasileiros em seu próprio interior, como uma criança que não distingue seu próprio eu das particularidades alheias. Assim, Tuhu é capaz de se encantar tanto com Bach, quanto o som de Zé do Cavaquinho e os chorões, personagens das ruas, mal vistos pela sociedade. Para o artista, para a criança, para Tuhu e para o maestro Villa-Lobos não existem margens delimitadas a serem seguidas. O processo de inserção da criança na cultura, o mesmo processo que a faz perder a capacidade de jogar, de ser espontânea e de criar, já citado por Kofman, não é perdido por Villa-Lobos. Villa-Lobos permanece Tuhu, e, sabiamente, a dramaturgia reside na infância e adolescência do músico, essenciais para o artista Villa-Lobos. Heitor Villa-Lobos não matou Tuhu, por isto tornou-se Villa Lobos, e por isto, Tuhu, O Menino Villa-Lobos é um elogio à infância e ao adjetivo infantil.

Kelly registra que, ao perguntarem para Villa-Lobos, no auge do modernismo, se este era futurista, o músico disse: “Não. Nem futurista, nem passadista. Eu sou eu!” (74)

Villa-Lobos possuía um espírito atemporal, pois vivia intensamente o presente. Estava conectado com seu aqui e agora, e conseqüentemente era uma pessoa e um artista carregado de vitalidade e inspiração. Este espírito também está presente na dramaturgia de Acioly, fazendo da infância e da adolescência de Tuhu, intercaladas com as músicas futuramente conhecidas do maestro, um grande e único presente.

As questões referentes ao tempo, como disse antes, eu retornarei quando destacar a linguagem poética característica da peça. Penso ser fundamental o aspecto temporal para este tipo de linguagem, entretanto, relaciona-se também ao “espírito” da personagem real e fictícia.

Ronald de Carvalho escreve sobre esta atemporalidade de Lobos. Ele diz:

Ele compreende a realidade como uma sucessão contínua de instantes, onde cada instante se degrada em um torvelinho de movimentos infinitos. Ele não quer ser novo nem antigo, mas simplesmente Villa-Lobos. Para exprimir o turbilhão vital, inventa ritmos que os motivos cotidianos lhe sugerem. Sua lógica está na forma que, de espaço a espaço, surge enriquecida e renovada da sua sensibilidade. (75)

Por esta intensidade doada ao instante vivido, é que Villa-Lobos não precisa procurar longe de si motivos de inspiração, e nem o estado de inspiração em si, como o próprio maestro admite ao dizer: “Esse negócio de inspiração não existe em mim. Eu nasci inspirado já”. (76)

Villa-Lobos vivia no mundo da arte, da poesia e da inspiração, pois não perdeu o espírito da infância: o olhar curioso, inquieto e intenso, onde tudo é inspiração, afinal tudo é novo e diz respeito a si também, mesmo que seja exterior. Toda esta vivência do mundo, Tuhu um dia necessitou transmitir em notas para o mundo, pois desde sempre escolheu esta linguagem para si. Citei, no início do capítulo, um pequeno diálogo entre Tuhu e seu pai Raul, onde transparece a percepção sensível e imaginativa do menino sobre o mundo, e em especial, a sua percepção dos sons. Aqui uma continuação deste trecho da peça para confirmação do que escrevo:

Tuhu: Ih! Mas esse aqui é tão parecido com o do meu coração, o que é isso?
Raul: É um metrônomo!
Tuhu: Metrônomo, metrônomo, metrônomo, que coisa engraçada…
Raul: E esse som aqui, o que é?
Tuhu: O guincho da roda de um bonde!
Raul: E esse aqui?
Tuhu: Uma planta que cai.
Raul: E esse?
Tuhu: Uma andorinha perdida…
Raul: Qual é a nota?
Tuhu: É dó…
(Começa a modular Có- Có- Co).
Raul: E esse som agora?
Tuhu: É o som de dentro…da panela da mamãe…fazendo panqueca…
Raul: Qual é a nota?
Tuhu: É lá… e é lá que eu vou… (Sai correndo). (77)

Este mesmo trecho relaciona-se também com a forma pela qual o maestro acreditava que a música deveria ser ensinada: de dentro. De dentro para fora, e não o contrário. Jamais sem os afetos. Villa-Lobos diz:

Se não houver nenhum sentido, nem alma, nem vida na música, esta deixa de existir. Assim deve-se ensinar música desde o começo, como uma força viva, do mesmo modo que se aprende a linguagem. (…) Deve-se ensiná-lo a conhecer os sons, a ouví-los, a apreciar suas cores, a esperar que certos sons se sigam aos outros, a combinar sons em ritmo. Deixá-lo aprender melodias, sentir harmonias, não em virtude de regras no papel, mas pelo som no seu próprio ouvido. (78)

“Tenho vida para toda a vida”. (79) Eis outra convicção do maestro Villa-Lobos.

Celso Kelly observa que o desapego do músico aos preconceitos, prolonga-se ao desapego histórico. Por isto, Villa é capaz de alimentar-se da musicalidade primitiva indígena, de criar alheio aos comprometimentos classificatórios de temas ou técnicas e de ter uma personalidade, como homem e artista, repleta de vitalidade até mais de setenta anos. Assim Kelly explicita que a tentativa de classificar a obra do músico sob quaisquer aspectos será sempre limitativa, pois a personalidade do homem e do artista (não dissocio o homem do artista, pois para o próprio músico não havia esta distinção entre vida e arte) (80) está acima do tempo cronológico. Como a música e a inspiração, o tempo para Villa é o tempo de Tuhu: o tempo infantil, o tempo interno e presente. Um presente que se eterniza, e por isto se torna atemporal. O tempo dos brinquedos, da música, do teatro e de qualquer manifestação artística. E assim compreendemos outras frases de Villa-Lobos, que podem nos soar inicialmente arrogantes ou infantis (no sentido pejorativo que as pessoas costumam usar), quando as transformamos numa percepção valorizadora da infância. Frases como estas:

“O folclore sou eu”. (81) Ou ainda: “Eu fui meu próprio mestre” (82)

Como uma criança, Villa-Lobos integra os mundos interno e externo e transita sem nenhum pudor entre a realidade e a fantasia. Ao vivenciar o folclore, o maestro se torna folclore. Ele descobre o folclore que existe dentro dele. Assim se torna seu próprio mestre, pois ele transfigura o mundo em seu próprio eu. E por isto nos parece gigante e sua música nos parece divina, pois como toda criança compreende o que é comum a todos os eus.

Como o eterno Tuhu, Heitor Villa-Lobos não negou a natureza, a intuição e a espontaneidade. A liberdade? Nem pensar!

Desta forma, falar do Tuhu de Karen Acioly é também falar do Tuhu atemporal de Heitor Villa-Lobos. É falar da infância presente em toda criança e em todo adulto. Mesmo que em nós adultos, ela às vezes esteja adormecida. Mas certamente viva.

3.2 – A Linguagem Poética

A linguagem é origem. Não é algo que teríamos ganho em relação aos animais de tanto evoluirmos mas algo que vai mais longe do que todas as coisas porque reencontra a sua aparição. A fala não nomeia, chama. É um raio, um relâmpago: as palavras não evocam, elas atalham, racham a pedra. A linguagem não tem nada para descrever já que ela começa. Não há nada que esteja mais no segredo da matéria do que o mistério verbal.                           Valère Novarina. (83)

Penso que a linguagem poética deste texto está fundamentalmente associada a algumas questões específicas. Primeiro, eu poderia falar de uma linguagem que denota uma multiplicidade de imagens, metáforas e sensações, aproximando-se assim de características de um texto dito poético. Refiro-me a uma materialidade das palavras, destacando a plasticidade existente nas mesmas, suas cores e sons.

Em segundo lugar, destaco o entrelaçar das cenas apresentadas com as músicas de Villa-Lobos sugeridas no texto. Este entrelaçamento do desenvolvimento da trama com as músicas compostas pelo maestro, além de outras que um dia o influenciaram, acaba por desdobrar-se em outras relações de linguagem poética, como as de espaço e tempo.

Naturalmente, a própria música é uma linguagem que se aproxima da poesia, pelos ritmos, sonoridades e imagens sugeridas. Faço uma observação aqui, de certa forma um pouco óbvia, mas para não haver dúvidas a respeito do assunto: neste momento, onde escrevo a palavra poesia, refiro-me tanto aos poemas compostos por rimas ou versos livres, como uma prosa poética, ou ainda, no caso proposto, uma dramaturgia que revele em seu discurso traços de uma linguagem poética, como por exemplo, alusões freqüentes a imagens e sonoridades. Ou seja: uma dramaturgia que trabalhe com a materialidade das palavras.

No caso específico da música, é demonstrativo no texto que a presença musical não é um simples adorno para entreter as pessoas que vierem a assistir a encenação.

A música, em Tuhu, O Menino Villa-Lobos, faz parte do corpo textual, assim como de sua conseqüente encenação. Não somente porque a peça trata da infância de Villa-Lobos, um músico, mas pela maneira como o texto enreda a infância e a adolescência do músico, ou seja, sua própria vida, com a experiência sonora. Em outras palavras: arte e vida aparecem indissolúveis.

Esclareço também que não trato aqui de classificar a peça teatral como um musical ou não, pois mesmo em espetáculos ditos musicais, as músicas podem estar descontextualizadas no texto teatral. Um exemplo disto: quando assistimos a um espetáculo teatral dito musical e justamente na hora em que o ator começa a cantar, nós espectadores não prestamos mais atenção. Ou mesmo pensamos: Ah! Agora ele vai cantar… Ou seja: Lá vem a chatice. E esperamos passar a cantoria para voltarmos a prestar atenção à peça. O público se distrai neste momento, justamente porque a música não está integrada ao corpo textual/cênico. Muitas vezes, o próprio ator chega a dar uma leve parada antes de cantar, como se avisasse ao público: “Olha, agora eu vou cantar…” Definitivamente, isto não pode acontecer, pois a música, como qualquer outro elemento cênico, deve estar a serviço do texto/espetáculo e não ser um mero objeto decorativo.

Isto, absolutamente, não acontece em Tuhu, O Menino Villa-Lobos. Às vezes, por exemplo, uma música conduz, inclusive, uma cena a outra, como é o caso de “Prole do bebê n.1 ”, na passagem da cena 13 para a cena 14. Na cena 13, Tuhu vai à casa de sua tia Fifina e a encontra dando aulas de piano para Dulcinha. Tuhu logo se apaixona. Dulcinha idem, pois chega a desmaiar. A aula termina e mesmo relutando, a menina se despede. Após a saída de Dulcinha, Tuhu dialoga com a tia, insistindo em seu desejo de morar com ela, visto que ali a música reinava. A tia não concorda e manda Tuhu ir brincar. Senta ao piano e começa a tocar “A prole do bebê n.1”. Então, pela janela, Tuhu vê algumas meninas brincando de bonecas. Elas também cantam a mesma música tocada pela tia e assim acontece a passagem para a próxima cena: “A Branquinha”. A música serve como um fio condutor na dramaturgia. Por sinal, “A Branquinha” refere-se tanto à boneca de louça quanto à delicada Dulcinha, com quem, lá fora, Tuhu rodopia, e a pede em namoro.

Na cena 15 acontece um encontro, de certa forma um pouco desastroso, entre Tuhu e o pai de Dulcinha. No final, Tia Fifina, que também estava presente ao encontro, senta novamente ao piano e toca “Melodia Sentimental”. E é com esta música que a cena 16 é iniciada. Aqui, Zildinha, A Moreninha (também o nome da cena) aparece cantando. Novamente, uma cena é levada à outra tendo a música como um elo de ligação.

Zildinha, o próximo amor de Tuhu, já é uma menina de características físicas e temperamentais totalmente opostas a Dulcinha. É uma menina brejeira e moreninha, assim como a boneca de pano à que Tuhu se referira durante a cena em que as meninas brincavam e cantavam. Neste momento, ainda há uma imagem poética, relacionando as duas garotas com as duas bonecas. Dulcinha, mais fina e elegante, como a boneca de louça. Já Zildinha, mais simples, porém encantadora, como a boneca de pano.

E são em várias perspectivas que diversos desdobramentos vão sendo desenvolvidos na linguagem teatral da peça de Acioly. Algo também interessante consiste no fato de que estes desdobramentos existentes estão sempre entrelaçados, enredados. É difícil analisar separadamente cada aspecto, sem algum momento, relacionar uns aos outros.

Eu poderia dizer que a imagem referente à dramaturgia de Tuhu, O Menino Villa-Lobos corresponde a uma grande forma espiralada, o que retorna a salientar a carga poética presente na peça teatral. Afinal, o texto apresenta-se como uma grande teia de recursos poéticos. Por exemplo: a música referida anteriormente relaciona-se também com o espaço e o tempo, em idas e vindas.

Por sinal, principalmente o tempo, nesta dramaturgia, revela um caráter de grande força poética. O texto analisado, a princípio, possui um cunho biográfico (mesmo sendo uma fábula), portanto circunstancial, histórico. A peça apresenta cenas, onde percebo uma certa cronologia, porém, ambiguamente, a mesma sugere a presença de uma atemporalidade, marcada esta, pela força de um eterno presente centrado na infância.

Tuhu, O Menino Villa-Lobos sugere a infância duradoura. O tempo passa e Villa-Lobos permanece Tuhu, eternamente Tuhu. As notórias músicas do maestro, apresentadas no texto, desde o início da peça, de forma intercalada com os momentos marcantes de sua infância e adolescência, afirmam-se como obras inerentes a sua experiência enquanto criança e ao seu próprio espírito infantil, mesmo já adulto.

Ou seja: a dramaturgia referida trata de um passado por nós reconhecido, relaciona-se com um futuro, que por nós também já é reconhecido como passado, e torna estes tempos presentes na fábula como um único presente eterno.

O tempo do teatro é o presente, (mesmo que se trate de memória, a característica teatral fundada no mostrar e não no relatar, torna este passado presente). O tempo da infância é o momento presente. A criança Tuhu está sempre em Heitor, mesmo adolescente. Além disto tudo, a música de Villa-Lobos também é sempre presente em nossa história cultural.

Esta dramaturgia, cuja temática parte da memória cultural, é transfigurada num “presente eterno”, o que só poderia expressar-se numa linguagem de cunho poético, por sinal, uma linguagem familiar à natureza infantil. Como vimos anteriormente, a criança possui uma forte noção de concretude em suas relações, em virtude principalmente, de ainda não ter dominado o processo de aquisição da linguagem. É óbvio que para a criança as palavras não estão plenas de sentidos convencionais, como para nós adultos. Assim como o poeta, ela percebe a materialidade que a linguagem possui, e daí é capaz de perceber seu encantamento. A criança entende, através de suas sensações e afetos, que a linguagem também é música e imagem. Ela é capaz desta percepção sem a necessidade do conhecimento, mas pela faculdade da sensibilidade e da fantasia. O poeta, e num sentido mais abrangente de criação, o artista, sabe disto, já de forma consciente, entretanto, torna-se também criador de sentidos e vivências, porque não abandonou no decorrer de sua vida a intuição, sensibilidade e imaginação, ou seja: a capacidade de jogar.

Portanto, verifico neste momento, outro desdobramento vinculado à linguagem poética: a ludicidade. Novamente reencontro esta questão, já aludida no capítulo anterior.

Em Tuhu, O Menino Villa-Lobos, a ludicidade é revelada pela conseqüente percepção da materialidade das palavras. Evidentemente, este aspecto lúdico aparece também como presença fundamental do teatro, além de característica essencial do próprio brincar infantil.

Então, relaciono a linguagem poética como jogo dramático e possibilidade de fantasia, onde o eu ganha espaço e se afirma no tempo como poder criador e transformador, podendo inclusive recriar o seu próprio tempo.

Tuhu materializa o poder de recriar a natureza e a cultura através de sua fantasia e afetividade, recriando-as assim a seu modo particular de sentir e ver. Melhor dizendo: a seu modo particular de ouvir, “com o ouvido de dentro”. (84)

Primeiramente, ele ouve os sons à sua volta e mais tarde apreende as notas musicais. E assim, hoje, nos é dado o prazer de ouvir e sentir, por exemplo, o “Trenzinho Caipira” ou “As Bachianas”, do maestro Sr. Heitor Villa-Lobos.

Ou simplesmente de Tuhu, do menino Tuhu.

3.3 – Poesia e Música.

A ação é música.
                        Charles Chaplin. (85)Tuhu: Zé, me diz…como se chama essa coisa linda aí? Esse tal de  pa…pa…pa…pa…(imita o som da música).
Zé Do Cavaquinho: É o choro. O único choro que ri.
Tuhu: Um choro que ri…
(Aos pouquinhos a música vai ganhando mais e mais alegria e todos começam a rir muito). Me ensina, Zé… a tocar tudo isso… (86)

Neste trecho observamos que Tuhu não pergunta a Zé qual música era aquela que os chorões acabavam de tocar, ele pergunta já em sua linguagem escolhida, a musical. Tuhu fala: “pa…pa…pa…pa…”, fazendo a melodia. E Zé responde com humor que aquele “é o choro, o único choro que ri”.

Esta frase é representativa do tom fornecido pelo discurso proposto na dramaturgia de Acioly. O discurso poético e lírico, intercalado com a poesia musical, traduz uma aura de encanto e magia, presente em todo o texto.

O eu lírico de Tuhu contamina todo o corpo do texto. Poderia dizer que Tuhu, O Menino Villa-Lobos é, de certa forma, quase como um grande monólogo, no sentido de que o estado emocional do personagem principal estende-se por toda a estrutura textual, tornando a dramaturgia envolta num espírito mágico. Este lugar mágico, com aura de encantamento e sedução, é o mesmo lugar para onde a música, enquanto expressão artística, é capaz de levar-nos. O lugar aonde os sentidos lógicos nos escapam, os afetos se revelam e permanecemos mergulhados nas sensações. Por sinal, se repararmos com atenção, o mesmo lugar da infância.

Jorge Luis Borges, em uma palestra proferida em Harvard e publicada no livro, “O ofício do verso”, faz uma alusão à música e poesia, e julgo importante citá-la aqui:

Walter Pater escreveu que toda arte aspira à condição da música. A razão óbvia (falo na condição de leigo, é claro) seria que, em música, forma e substância não podem ser cindidas uma da outra. Melodia, ou qualquer peça musical, é um modelo de sons e pausas que se desdobram no tempo. A melodia é simplesmente o modelo – as emoções da qual ela brotou e as emoções que ela desperta. O crítico austríaco Hanslick escreveu que a música é o idioma que podemos usar, que podemos entender, mas que somos incapazes de traduzir. (87)

Tuhu, O Menino Villa-Lobos é uma dramaturgia cuja construção de trama é cuidadosamente elaborada, os diálogos são bem construídos e os personagens habilmente delineados. Quero dizer: não há fragilidade em sua dramaturgia, crítica constante no panorama atual do teatro infantil. Também não há aula de história e cultura para crianças. As referências a uma determinada época, tais como certo tipo de vocabulário, determinadas brincadeiras de crianças e costumes, são mostradas, dentro de um contexto artístico, sem nenhum tom didático. E, primordialmente, para mim, o que liberta esta dramaturgia da armadilha “educativa” (88) é o uso de forma transbordante da linguagem poética. Digo isto, porque apesar do trabalho da autora Acioly já ser reconhecido como exemplo de talento e competência, seria muito fácil, dentro da proposta temática, a peça enveredar pelos caminhos instrutivos, didáticos. Terminar a peça teatral com “Invocação em defesa à pátria”, música de Villa-Lobos, fornece um grande risco, por exemplo, de se resvalar para um patriotismo moralista, porém, o texto integra esta música ao espírito generoso e infantil do maestro: o espírito que absorve o mundo a sua volta, revelando, como toda criança, a capacidade natural de tornar o espaço o seu próprio eu. Reconhecê-lo como parte de si, e por isto ser capaz de amá-lo e cuidá-lo. Observo ainda que esta música está incorporada a uma cena cujo cenário é a Floresta Amazônica. Ou seja, Tuhu compõe esta música de amor à pátria no meio da natureza selvagem. A valorização da pátria não está vinculada de forma costumeira às instituições familiar e escolar. Tuhu descobre a pátria, sua música e a si mesmo nas ruas, nas matas, liberto de possíveis vínculos opressores. Nesta cena, enquanto “Invocação em defesa da pátria” é composta, os índios cantam ao mesmo tempo suas próprias músicas, entrelaçando as diferentes melodias num clima integrador. Ao final, todos cantam a música de Villa-Lobos, incluindo os índios, animais e toda a natureza, pois ela é capaz de tocar a cada um e irmaná-los. O amor à pátria como sua terra, não é um conceito abstrato, e o amor ao outro diferente de mim torna-se possível porque Tuhu é capaz de sentir e transmitir em sua música um elo comum a todos.

Retornando a Borges, em seu discurso sobre a linguagem poética, o escritor ressalta duas posições diferentes. A primeira, baseada no exemplo do pensamento de Robert Louis Stevenson, ressalta que a poesia estaria mais próxima do ser humano comum do que a música. Isto, pelo fato do poeta trabalhar com uma matéria prima conhecida por este homem comum: as palavras. Estas são usadas, em seu sentido lógico, diariamente, pelos seres humanos. O poeta seria a pessoa capaz de transfigurar as palavras ao distanciá-las deste sentido lógico e aproximá-las das sensações de encantamento e magia, já referidas anteriormente.

Na segunda posição, Borges apresenta um pensamento oposto ao anterior. O escritor acredita que as palavras não seriam originárias dos sentidos propostos pelos dicionários, e sim provenientes, desde o início, desse lugar envolto pela magia e pelo encantamento. Ou seja, o poeta, na verdade, não transformaria as palavras desviando-as de sua origem lógica e destinando-as à magia e sim, faria o movimento inverso: o movimento de retorno das palavras. O poeta seria o sujeito capaz de devolver às palavras o seu lugar de origem: o lugar da magia.

Borges diz:

(…) uma língua não é, como somos levados a supor pelo dicionário, a invenção de acadêmicos ou filólogos. Ao contrário, ela foi desenvolvida através do tempo, através de um longo tempo, por camponeses, por pescadores, por caçadores, por cavaleiros. Não veio das bibliotecas; veio dos campos, do mar, dos rios, da noite, da aurora. (89)

Assim, Borges conclui que a poesia pode aproximar-se da música no que diz respeito à capacidade de unir sua substância, sua forma e seu som. Na primeira colocação, baseada em Stevenson, a separação entre os componentes seria inevitável.

O escritor acrescenta ainda que a linguagem poética diz respeito muito mais às sensações do que aos sentidos. Somos capazes de presenciar a sensação de confronto com algo belo, mesmo sem ter noção de seu sentido. Este sentido não é o mais importante do que a sensação provocada em nós.

E mesmo que percebamos o sentido de um poema, por exemplo, não saberemos com exatidão traçar o percurso da experiência do poeta. A linguagem poética, assim como a música, sempre terá algum mistério, algum caráter enigmático. Será uma linguagem que se dirigirá muito mais à imaginação do que à razão. Por isto, continua Borges, não precisamos testar a veracidade das metáforas, por exemplo, mas sim, sentirmos que elas se relacionam a uma real necessidade do autor em usá-las, afinal, estas mesmas metáforas correspondem fielmente às emoções sentidas pelo artista. Nesta perspectiva, as palavras são vivas e mágicas, pois as compreendemos através das sensações, afetos e da imaginação, e não a julgamos pela razão e lógica.

Caso analisemos todas estas considerações de Jorge Luis Borges sobre a linguagem poética e pensemos em tudo o que foi dito até agora sobre as dramaturgias analisadas e a natureza infantil, observaremos que esta percepção afastada da lógica convencional, próxima à imaginação, arraigada aos afetos, é nada mais nada menos do que o estado infantil, o olhar atento e curioso para o mundo que se revela e se descobre. Por isto, Tuhu indaga sobre o som que voa ou aquele som que molha. Observa as cores e se encanta. Como um poeta faria.

Um trecho da peça:

Cena 2
Raul e Noêmia (Juntos): Ah! Você! Você viu Tuhu?
Noêmia: Eu não… Tuhuuuuuuu!
Raul: Ah, meu Deus! Tuhuuuuuuu!
Noêmia: Já tomou o seu remédio hoje?
Tuhu: Já.
Noêmia: Tomou o remédio certo? O azul de metileno? (Começa a tocar Co-Có-Có).
Tuhu: Já. (Sai Noêmia). Eu adoro esse remédio… o xixi fica todinho azul…da  cor do céu… (Tuhu sobe no telhado. Fica de costas para a platéia como se     estivesse fazendo xixi). A vizinha tem um galo. Um galo branquinho…  branquinho…(faz xixi e som de xixi) com o meu xixi, que beleza! muda de cor fica azul, todo azulzinho…
Noêmia: Tuhuuuuu! O que você fez com o galo da vizinha, Tuhu? Não é possível! Tuhuuuuuuu! (Tuhu foge). (90)

O estado poético, artístico, é o estado da criança. O artista retorna, de certa forma, a esta instância. Mais uma vez, observo que para dialogar com a criança, qualquer que seja a expressão artística escolhida, é necessário, mais do que nunca, que o artista se coloque realmente na região da arte. Mais apurado ele deve estar em sua técnica e em seu aperfeiçoamento artístico de uma maneira global. O contrário, o artista conseguirá manter um “suposto diálogo” com determinados adultos, que já formatados em suas convicções rígidas e julgamentos artísticos cristalizados, terão medo de crer na sua sensibilidade dizendo-lhes que aquilo apontado como obra artística pode dizer respeito a tudo, menos realmente a uma proposta artística. Caso este mesmo adulto não tenha medo do que sua sensibilidade lhe diz, provavelmente então, ficará quieto como manda a “boa educação”.

A criança não. A criança irá dormir, olhar à sua volta para ver se descobre algo mais interessante para explorar, ou então, simplesmente dirá em voz alta, bem alta, que quer ir embora.

3.4 – O Jogo Poético.

Escutar as imagens, ver as palavras, tocar a música…                                                         Alberto Miralles. (91)

Começo minha leitura, apontando o teatro como espaço poético. Poderíamos visualizar o espaço físico do teatro como uma simples caixa preta, onde de repente, somos capazes de transformá-la na casa de Lasanha e Ravióli, depois na floresta onde Chapeuzinho Vermelho encontra o Lobo, ou ainda nas ruas onde Tuhu encontra os chorões para empinar pipa e aprender música. Em outro instante, vemos a Floresta Amazônica, por onde Tuhu viaja com Donizetti.

Naturalmente, este espaço relaciona-se à questão temporal. Colocarei como exemplo, a peça agora analisada. Tuhu, O Menino Villa-Lobos inicia quando Raul anuncia, como narrador, o nascimento de seu filho, Heitor Villa-Lobos. Em seguida, é travado um diálogo entre o pai e Tuhu. Depois, vamos acompanhando as primeiras brincadeiras de Tuhu, o aprendizado musical, a experiência escolar, os primeiros amores, etc… No desenrolar dramatúrgico, chegaremos à adolescência de Tuhu, seu primeiro concerto musical e sua partida de casa para conhecer o Brasil. Ou seja: o tempo dramático não se relacionará ao tempo da representação desta peça teatral. Concluindo, o teatro em si é o local do jogo e da metáfora.

A palavra teatral, proferida pelo ator, circunstanciará também este tempo e espaço. Os diálogos apresentados em Tuhu, O Menino Villa-Lobos nos levarão para o espaço teatral, mesmo que estejamos apenas fazendo uma leitura da peça, e não sua encenação. Afinal, repito, as palavras no teatro estão inevitavelmente e impreterivelmente relacionadas à ação.

O dramaturgo e ensaísta Denis Guénoun escreve, em seu livro “A exibição das palavras”, que a palavra no teatro é “o verbo tornado carne”(92) Para o autor, o teatro é o espaço onde as palavras são corporificadas, onde as percebemos como algo concreto. Esta percepção do público se dá não somente pelo aspecto lógico que o sentido da visão costuma relacionar-se, mas sim por uma visão caracterizada pela globalização de todos os nossos sentidos, numa experiência totalizadora. Mesmo que não estejamos vendo o espetáculo teatral, apenas lendo seu texto, penso que o texto que pretende ser realmente teatral deve ser capaz de nos levar para este espaço da imaginação da ação e suas sensações. As palavras no texto teatral devem relutar a permanecerem no papel, levando forçosamente o leitor para este espaço do jogo dramático. Assim, será prazerosa a leitura de um texto teatral e o seu leitor se sentirá estimulado, conseqüentemente, a ir ao teatro.

Esta dinâmica de fornecer corpo às palavras, como escreve Guénoun, é o que fornece teatralidade às palavras. E esta teatralidade é correspondente ao dito jogo cênico, ao seu aspecto lúdico.

Faço esta colocação aqui, para dizer que o teatro em si, e aí incluo sua dramaturgia, é um ato poético “por natureza”. Por isto, quando realmente se faz teatro, encontramos a palavra como poesia, espaço de confronto e dona do tempo. Naturalmente, uma palavra associada a todos os outros recursos que o teatro pode nos oferecer. Especificamente em Tuhu, O Menino Villa-Lobos vemos a música como outro corpo imprescindível. A música aqui também é palavra, tempo e espaço, pois nos enreda à trama dramática.

Este transfigurar da palavra em corpo ativo, de uma caixa preta em espaço e tempo determinados por nós, artistas e leitores, correspondem, obviamente ao universo lúdico, inerente ao artista e à criança.

Esta fábula da infância de Villa-Lobos nos dá a sensação da infância como estado passível de eternidade, pois ela é sempre tempo presente e espaço do mundo como algo físico. O pensamento a vir é sempre decorrente desta concretude da experimentação. Assim, a peça teatral nos fornece inevitavelmente a mesma aura de magia do jogo lúdico e poético. O mesmo encantamento de um verdadeiro “faz de conta infantil”.

Henriqueta Lisboa faz uma reflexão sobre a frequente concepção teórica fundamentada na relação entre a poesia e a infância e que julgo ser importante registrar aqui. Antes, reitero a possibilidade do teatro e do fazer artístico alcançarem um estado poético, como o referido pela escritora. Lisboa verifica que tanto o poeta como a criança, experimentam suas vivências pela imaginação e pelo uso de metáforas. A autora também diferencia a imaginação de ilusão escapista ou incapacidade de perceber a realidade. Ao contrário: a criança, como o artista, confronta-se com a realidade sim, porém sua forma de expressão perante a esta realidade é feita de forma diferente, criadora e lúdica. A necessidade de jogar é imperativa.

Cito então um trecho do artigo de Lisboa, pela concisão e beleza de seu pensamento:

(…) quando o índio da Polinésia, proibido de nomear as cousas que pertencem ao chefe, vê fogo ou luz na casa real, exclama: ‘O raio arde nas nuvens do céu’. O conhecimento da realidade é a substância mesma de sua metáfora. Não há ilusão, há troca de valores. Assim a imaginação, que tem como chave de ouro a metáfora, não representa uma fuga, mas uma libertação, como o seu poder de vencer tabus, ultrapassar horizontes, cristalizar o abstrato, circunscrever ao pequeno mundo dos sentidos a beleza universal, beber copos de liberdade.

É um jogo consciente e sério, em que o poeta se revela meio selvagem. Por seu turno, não são ingênuos os selvagens quando falam por símbolos. Nem tão pouco as crianças, no cerimonial dos brinquedos. Contam que, em meio às festas de Natal, certa vez, disse uma criança a outra que Papai Noel eram os próprios pais… A que ouviu, delicada, nunca mais pode esquecer o golpe moral intenso que no instante sofrera, não porque desconhecesse o segredo, mas porque não deveria ser dito. Assim como a infância preserva lindamente a poesia, também a poesia pode preservar a infância através de todas as idades. (93)

Podemos reparar que Henriqueta Lisboa usa a palavra ‘jogo, um jogo sério’. A mesma seriedade da criança que crê no poder de sua imaginação ao brincar, ao dramatizar absorto naquela atividade e instante único. Característica da natureza infantil, já citada no segundo capítulo desta dissertação, quando assinalei os conceitos propostos por Peter Slade.

Penso que já demonstrei, em todo este capítulo, como a dramaturgia de Tuhu, O Menino Villa-Lobos apresenta, em seu corpo textual, o jogo com as palavras, a música, o tempo e espaço.

Agora, como ilustração, cito alguns trechos representativos do aspecto lúdico e teatral apontado por mim na dramaturgia de Acioly. No primeiro trecho destaco a ludicidade espacial da cena sugerida pela autora:

Cena 15 – Banana Glacê
(Toda a movimentação da cena se dá como um jogo de pique-espaço: se um dos personagens se movimenta, os outros três imitam esse movimento, como se estivessem cada um em um dos quatro vértices de um quadrado.
Tia Fifina entra e apresenta orgulhosa o sobrinho):
Tia Fifina: Este é meu sobrinho, Heitor Villa-Lobos, este é o Sr. Barbosa, pai de Dulcinha.
Os dois: Prazer.
Os dois: O prazer é todo meu.
( Risos e constrangimentos)
Sr. Barbosa: Como já deve saber, Sr. Heitor, Dulcinha é tudo para mim. Se suas intenções são sérias com minha filha, terá que arrumar trabalho seguro. Eu lhe ofereço um!
Dulcinha: Que bom, papai!
(Tuhu e tia Fifina estranham tudo).
Sr. Barbosa: Eu tenho uma fábrica de doces de banana glacê em Minas Gerais (tira um do bolso e mostra a Tuhu) e preciso vender mais…! De forma que aqui estão a passagem e o dinheiro, para você fazer a venda. Se conseguir, casa com Dulcinha! E ainda vão passar a lua-de-mel em Paris!
Dulcinha: Em Paris? ( Animadíssima).
Sr. Barbosa: Oui em Paris… comendo petit-pois e acendendo abat-jour.
Tia Fifina: Paris…Paris…Paris…( Animadíssima).
Tuhu: Paris…Paris? (Totalmente indignado).
(Tuhu começa a girar no centro do palco. Tia Fifina ao piano toca a Melodia Sentimental). (94)

Percebemos o jogo lúdico presente na marcação proposta pela autora. A brincadeira do pique espaço, onde se dá a imitação dos movimentos de cada um, propicia uma integração entre texto e espaço, além de um humor lúdico. Isto se dá não somente pelo jogo dos corpos dos atores no espaço cênico, mas também porque a marcação proposta pela autora possui uma coerência com a situação de constrangimento dos personagens em cena. Esta cena retrata o primeiro encontro de Tuhu com o pai da garota em quem está interessado. O pai já tem segundas intenções, a filha está somente interessada em que o namoro dê certo, já Tuhu não sabe direito o que fazer e tia Fifina desempenha um papel de “mestre de cerimônias” do encontro. Os personagens, cada um com seu objetivo, se enquadram literalmente num quadrado, onde procuram chegar a um consenso harmonizador, sem resultados satisfatórios. Daí a repetição dos movimentos de cada um. Porém, como não há uma veracidade interna correspondente aos desejos de todos, estes terminam a conversa num clima constrangedor.

Ou seja: a marcação espacial sugerida fornece humor e beleza, pois condiz com a cena proposta. O jogo e a poesia se fazem presentes porque estão entrelaçados como um único corpo.

Naturalmente eu sei que um diretor pode escolher outra concepção cênica ao montar o texto, porém, é necessário admitir-se que a sugestão da autora demonstra, além de jogo e poesia, uma dramaturgia de estrutura consistente e dialógica, (já no papel), com o espaço cênico. Uma dramaturgia realmente teatral, pois a palavra apresenta-se como um corpo dramático.

Ao final, por exemplo, o giro de Tuhu demonstra claramente como este ficou perdido com a proposta do Sr. Barbosa. Não somente a cabeça de Tuhu girou, mas o seu corpo inteiro.

Um outro exemplo interessante para ilustração está na cena onde Villa conhece Donizetti no Amazonas:

Cena 18- Donizetti e Villa
(Teatro de animação. Onça-cara feita em máscara e corpo de atriz – traz o rio Negro em cena. Indiazinhas surgem dançando e, numa espécie de ritual, trazem primeiro o rio Solimões, depois, o rio Negro. Donizetti e Villa quase levitam sobre eles, estão em rios diferentes navegando até se encontrar; como os rios, a música vai modulando para De kekeke).
Tuhu: Ei! Quem é você?
Donizetti: Eu sou Donizetti. E você?
Tuhu: Eu sou Villa-Lobos. Você sabe para onde estamos indo?
Donizetti: Estamos indo conhecer o Brasil, o país mais lindo do mundo! A Amazônia, o rio Solimões, o rio Negro, encontro das águas!
Tuhu: Ei, ô! Você faz o quê?
Donizetti: Sou músico.
Tuhu: Eu também. Toco violoncelo, violão, às vezes até sou maestro de orquestra, na verdade toco um pouco de tudo e…componho. E você?
Donizetti: Eu? (Solta a voz) Toco violino, saxofone e, quando eu posso, eu canto. (Canta de novo).
Tuhu: Para onde você vai?
Donizetti: Vou conhecer o país mais rico do mundo!
Tuhu: (desconfiando da resposta) É esse aqui?
Donizetti: É o Brasil, esse Brasil que não está no mapa. Todinho, cantinho por cantinho. Navegando pelos rios, rio Amazonas, rio Negro, o encontro dos rios… ÔOOO! (Cai). (Tuhu vê aquela figura divertida, os dois começam a acertar o passo numa coreografia divertida. Donizetti nunca acerta o passo e está sempre em desequilíbrio, até cair da sua canoa, que é retirada pelas indiazinhas. Villa ajuda Donizetti a subir na canoa e começam a ouvir os sons da floresta). (95)

Nesta cena vê-se a poética e o jogo relacionados às palavras, à música, à plasticidade visual na coreografia proposta e ao cenário baseado no teatro de animação. É notório que o teatro de animação é um recurso muitas vezes utilizado no teatro infantil. A maneira de fazê-lo em cena irá constituir seu sucesso ou fracasso. Mas certamente, observa-se que aqui, já na escrita, ele está contextualizado na cena e não de forma gratuita, pois revela uma maneira interessante e plasticamente bonita de representar a natureza. Além disto, a máscara de onça no corpo aparente da atriz traz uma teatralidade marcante. As índias promovendo o encontro das águas como um ritual caracteriza aquele momento como um momento poético e especial. O encontro dos rios é também uma metáfora do encontro dos dois músicos. No fundo, apesar de não marcado, aquele não é um encontro casual. Ambos personagens têm o porquê de se encontrarem, afinal possuem os mesmos ideais e estão em momentos de vida similares. A modulação da música indígena sugerindo o encontro dos rios e dos dois personagens transmite uma imagem cheia de poesia e beleza.

O humor lúdico na dramaturgia apresenta-se de modo delicado e lírico, não de maneira rasgada como em Lasanha e Ravióli in Casa. Aqui, especificamente nesta cena, o humor aparece primeiro na dúvida de Tuhu sobre qual é o país mais rico do mundo e depois surge no descompasso corporal de Donizetti. O músico, ironicamente e poeticamente, perde o ritmo no corpo.

As índias, retirando a canoa de Donizetti em cena, ressaltam, mais uma vez, a teatralidade textual. E a observação dos sons da floresta pelos dois músicos imprime, mais uma vez, o caráter musical como algo existente já no meio ambiente, e no caso presente na natureza selvagem. Antes mesmo das notas musicais, a natureza circundante já revela a musicalidade.

A música, e de certa forma também a poesia, provocam-nos por um caminho mais físico do que racional e são capazes de deixar para nós, como presente, diversas percepções sensoriais e imagéticas. Elas revelam, imperiosamente, para nós todos, uma instância sempre renegada: a instância da infância. Renegada, pois navega pelo indizível e pelo encantamento. Se eu não sou capaz de nomear, eu não domino. E assim sofro num mundo repleto de convenções vazias. Por isto Tuhu sofre. Por isto toda criança sofre.

Porém, o indizível é também o lugar do encantamento, da magia. E é neste mesmo lugar que os artistas e as crianças se irmanam.

E assim, Tuhu, O Menino Villa-Lobos representa um elogio teatral à infância.

Termino este capítulo com o registro do juramento de Tuhu ao ganhar um pequeno violoncelo dos pais. Ele diz:

Tuhu: Nossa, pai, como ele é lindo! Eu prometo que eu vou merecer este violoncelo, pai.
(Entra música. Sonata para celo).
Eu juro te amar a vida toda, na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença…minha música…minha mãe…meu pai.
(Noêmia e Raul saem de cena).
Tuhu (Só) : Eu juro te amar a vida toda, na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença…minha música…minha mãe…meu pai. (96)

O artista é aquele que decide levar adiante o projeto de continuar a ser criança. E é durante este pacto com a música que o menino Villa-Lobos também faz um pacto eterno com a infância.

Para sempre Tuhu.

Notas de Rodapé

61. Jr. Simões, José Geraldo, O pensamento vivo de Chaplin. SP: Martin Claret, p. 91.
62. Informação dada pela própria autora. Segundo Acioly, o trabalho estava em processo de revisão.
63. Observação verificada em seu acervo pessoal de críticas para o JB.
64. Acioly, Tuhu, O Menino Villa-Lobos, p. 10.
65. Idem.
66. Colocação presente em Dramaturgia – hoje e sempre.
67. Jorge Luis Borges, Esse ofício do verso, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.105.
68. Huyssen, Memórias do modernismo. RJ: UFRJ, 1997.
69. “Villa-Lobos por ele mesmo”, de Celso Kelly, in “Presença de Villa-Lobos”, Vol. 8, MEC- DAC- Museu Villa-Lobos, 1973.
70. Op.cit., p. 15-16.
71. Ibidem, p. 16-17.
72. Op.cit., p. 65.
73. Op.cit. p. 66.
74. Ibidem, p. 52.
75. Idem.
76. Ibidem, p. 53.
77. Op.cit., p. 10-11.
78. Apud Kelly, p. 63.
79. Ibidem Kelly, p. 60.
80. Frase de Lobos: “Toda a minha filosofia se centraliza na música, porque a música é a única razão, único motivo para a minha existência”. Ibidem, p. 65.
81. Ibidem, p. 26.
82. Ibidem, p. 62.
83. Novarina, “Diante da palavra”,Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003, p. 24.
84. Lobos apud Acioly, p. 7.
85. Jr.Simões, José Geraldo, “O pensamento vivo de Chaplin”.São Paulo: Martin Claret,1984, p. 69.
86. Op.cit. p.14.
87. Borges, “Esse ofício do verso”, São Paulo: Companhia das letras, 2001, p 83.
88. Utilizo aqui a palavra educativa entre aspas, pois faço uma alusão ao seu pior sentido. Quando é retirado da obra justamente o seu principal valor, o artístico, e a restringem como um objeto meramente educativo.
89. Op. Cit., p. 86.
90. Op.cit. , p. 11.
91. Miralles, “Novos rumos do teatro”, R.J: Salvat, 1979, p.19.
92. Guénoun,“A exibição das palavras”, Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003, p. 77.
93. Lisboa, “Infância e Poesia”, in Revista do Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, n. 8, Belo Horizonte, 1980, p. 51-52.
94. Op.Cit., p. 21-22.
95. Op.Cit, p. 25-26.
96. Op.Cit., p. 13.