Capítulo 2 – Lasanha e Ravioli in Casa ou O Riso da Crítica (28)

O palhaço é a figura cômica por excelência. Ele é a mais enlouquecida expressão da comicidade: é tragicamente cômico. Tudo que é alucinante, violento, excêntrico e absurdo é próprio do palhaço. Ele não tem nenhum compromisso com qualquer aparência de realidade. O palhaço é comicidade pura.
Alice Viveiros de Castro
. (29)

 

O primeiro texto de minha análise chama-se Lasanha e Ravioli in Casa, autoria de Ana Barroso, Mônica Biel e Thereza Falcão. O texto data de 1999 e estreou no Rio de Janeiro em 2000, sendo encenado até o ano de 2006, em comemoração da parceria da dupla de intérpretes. Ana Barroso e Mônica Biel são além de dramaturgas, atrizes e diretoras. Thereza Falcão, além de dramaturga, é roteirista de televisão, atriz e diretora teatral, já tendo dirigido inclusive um espetáculo da dupla de atrizes, Riquet, o Topetudo.

Ana Barroso e Mônica Biel completaram em 2006 dezesseis anos de parceria, com um trabalho de forte proposta autoral. O trabalho da dupla consiste também no reconto de contos de fadas. Mas possui alguns diferenciais, o que valoriza a importância da análise de seu trabalho e em específico o texto escolhido nesta dissertação. E por isto a dupla tem conquistado a crítica especializada e tem um público já cativo.

Primeiro ponto a destacar no trabalho da dupla: não é a simples dramatização de contos de fadas e sim a dramatização de dois palhaços – atores fazendo a dramatização de contos de fadas. Neste percurso, a dupla já traz uma renovação para o assunto ao fundirem a linguagem do palhaço com a do ator e consequentemente a do circo com o teatro.

Segundo: a dupla utiliza um humor bastante lúdico e crítico. Usa o humor ingênuo da linguagem dos palhaços; no entanto abdica dos possíveis excessos de movimentação corporal que estas figuras poderiam ter. As atrizes e autoras aproveitam neste tipo de linguagem justamente o jogo essencial existente na relação entre os palhaços: o código lúdico entre estas figuras – personagens.

Outro aspecto importante é o humor crítico da dupla. Em nenhum momento elas apelam para o riso fácil que desvaloriza a inteligência da criança. O palhaço é um personagem altamente crítico em sua aparente ingenuidade. Ele ri e nos faz rir de uma situação muitas vezes patética.

No caso aqui referido, as atrizes Mônica Biel (Lasanha) e Ana Barroso (Ravioli) são palhaços – atores. Portanto, interpretam palhaços, que por sua vez, interpretam outros personagens. Como autoras, trabalham com o reconto utilizando a fusão das linguagens circo-teatro e da manipulação de bonecos com diferentes contos de fadas conhecidos do público, como Riquet, o Topetudo. Já em A História de Catarina, os palhaços elaboram um conto de fadas de autoria própria, ainda que este possua os elementos de todo conto de fadas tradicional.

O texto que escolhi para fazer minha leitura crítica (Lasanha e Ravioli in Casa) foi eleito, entre outros textos das autoras (Riquet, o Topetudo, A História de Catarina) por se afastar do reconto como princípio fundamental e se aproximar do fazer teatral como história a contar, mostrando a seu público o processo criativo do artista e o ensaio de uma peça. Vejo este texto como original na dramaturgia para crianças, não somente por não ser uma adaptação fiel de Chapeuzinho Vermelho, mas sim por ser uma história sobre como encenar uma peça teatral. Este tipo de trabalho pode ser já conhecido do público adulto, mas não é comum para as crianças.

Lasanha e Ravioli in Casa mostra fundamentalmente os conflitos e o prazer existentes no processo da criação teatral. Chapeuzinho Vermelho, o texto escolhido pela dupla de palhaços para fazer seu espetáculo, é quase um detalhe, pois o que importa é mostrar para a criança o ensaio de uma peça. Na verdade, poderia, inclusive, ser eleito outro conto de fadas; afinal o mais interessante é ver os palhaços – atores discutirem seu processo de trabalho. O reconto aqui está a serviço do metateatro. E ao assumir esta proposta, o texto brinca à vontade com o remexer na história de Chapeuzinho Vermelho, sem nenhum pudor. Aqui não há a obrigatoriedade de retratar fielmente a trama ou a essência do conto, visto que o propósito textual é mostrar à criança a carpintaria teatral, o como as cenas vão sendo construídas no teatro. Mas com inteligência e crítica, a própria dupla de palhaços – atores discute os limites possíveis na modificação do conto, até onde pode ir a transformação da história ao ser apropriada por eles. E então, vão sendo mostrados na peça aspectos e discussões inerentes a um processo de ensaio teatral: a discussão sobre o texto e direção das cenas, já que Lasanha e Ravioli escrevem e dirigem também seus espetáculos; a escolha e caracterização das personagens (como são apenas dois atores eles tem que fazer mais de um papel), além da atuação de cada um, etc… E mais: tudo aquilo que advém desse processo, como as mágoas pelas críticas feitas ao trabalho do outro, discussões na busca do consenso e o bloqueio de um ator ao fazer um personagem (Ravioli tem medo de fazer o Lobo Mau).

Cito aqui dois trechos da peça representativos dos comentários já feitos:

Primeiro:

Lasanha– (…) Eu vou fazer a Dona Maria Chapéu! Vou começar. (Muda a voz) Chapeuzinhoooooooo! Leva estes docinhos para a sua vovozinha. Cuidadosinho, porque o Lobinho Mauzinho, pode estar pertinho…
Ravioli– Lasanha, isso é muito ruim! Lasanha, isso é ruim demais! Lasanha, isso é péssimo!
Lasanha– (Magoada) Assim não tem condição. Assim eu não consigo criar! Faz você então.
Ravioli– Tudo bem. Tudo bem. Repare na naturalidade da minha interpretação.
(Fazendo a mãe) Ô Chapéu, vem cá, minha filha! Leva estes doces aí pra tua avó! Mas se liga! O lobo é mauzão e pode estar na área.
Lasanha– Ravioli, isso é muito ruim! Ravioli, isso é ruim demais! Ravioli, isso é péssimo!
Os dois param o ensaio, sentam em volta da mesa do café, sem se falar. Clima de briga. Aos poucos vão fazendo as pazes. (…) (30)

Segundo:

Ravioli– E o lobo mau passeia aqui por perto… (Olha para os lados) Ai meu Deus! Se a Lasanha vai fazer a Chapeuzinho, isso quer dizer que eu vou fazer o Lobo Mau! Ah não! Ah não! O papel do Lobo eu não vou fazer não! Eu tenho horros de Lobo Mau! Quando eu era pequeno, eu tinha uma coisa chamada lobofabia, me dava uma coceira danada! Ah não! (Fica cada vez mais nervoso) Não vou fazer nem a pau! Não vou fazer nem a pau! (É interrompido por Lasanha que volta à cena)
Lasanha– Para Ravioli! Para com isso! Para!!! Senta aí! Fica quieto! Fica calmo! (Ravioli senta e se acalma) Não é de verdade não! É só um personagem! Ravioli, presta atenção: Ator é ator, personagem é personagem, você é um ator, o lobo é um personagem, entendeu? E não vai fazer o Lobo porquê? Vai passar o resto da vida fazendo fadinha, é? Topetudinho? Clarabelinha? Tem que enfrentar um desafio! Fazer um personagem! Fazer um Lobo Mau! (Imitando o Ravioli) Não vou fazer o Lobo! Não vou fazer o Lobo! Ah! Que que há! Assim é fácil, né? Assim qualquer um…
Ravioli– Tá bem. Tá bem. Eu vou fazer o Lobo. Eu vou fazer o Lobo Mau.
Lasanha– Eu acho bom… (31)

O reconto aqui é quase um pretexto para mostrar o processo de ensaio teatral. Por isto não há problema na alteração da trama, inclusive porque o texto possui um caráter de paródia, predominando a ironia.

Outro ponto interessante no texto é o fato de mostrar na ficção aspectos evidenciados na realidade pela crítica teatral, como a saturação da dramatização dos contos de fadas e a busca para resolver esta mesmice numa diferenciação do fazer teatral. E como se sabe, muitas vezes este como fazer diferente pode ser apenas um blefe para esconder uma fragilidade no que se quer contar, resultando assim em um grande equívoco.

No caso de Lasanha e Ravioli in Casa a proposta dá certo, pois o como fazer não consiste em adornos superficiais, mas sim numa proposta consistente de linguagem textual e teatral. O texto, de certa forma, discute questões inerentes ao teatro e ao panorama do teatro para crianças na atualidade. É uma obra que se alimenta da reflexão e crítica teatral e a transforma em material artístico. O metateatro acontece não somente por conter uma história dentro da outra, mas essencialmente por ser uma dramaturgia que pensa o próprio teatro (texto e cena).

Para exemplo de minha leitura, cito aqui outro trecho da peça:

Ravioli– Era o jornal!
Lasanha– Ótimo. Lê aí as notícias…
(…)
Ravioli– Lasanha, olha só essa notícia. É sobre nós.
Lasanha– Tá brincando?
Ravioli– É sério! Ouve só: Lasanha e Ravioli comemoram 10 anos  de parceria.
Lasanha– Somos nós mesmos!
Ravioli (lendo)- Lasanha e Ravioli, os palhaços atores de A história  de Topetudo e A História de Catarina, comemoram 10 anos de   trabalho juntos. É mesmo. Tinha me esquecido.
Lasanha– Como será que eles souberam?
Ravioli– Esse pessoal do jornal tem informantes por todo lado.
Lasanha– Ravioli…eu acho que a gente devia pensar num espetáculo novo pra comemorar esta data.
Ravioli– Ótimo! Eu já estava louco pra fazer uma peça nova. Mas   fazer o quê?
Lasanha– Não tenho a menor idéia.
Ravioli– Mas dessa vez não pode ter nem fada nem bruxa…nem  vaca, nem pata, nem príncipe, nem princesa…
Lasanha– Mas, Ravioli, conto de fadas sem esses personagens não  é conto de fadas.
Ravioli– A gente podia fazer “Os três porquinhos”!
Lasanha– Ah, não! Esses porquinhos ficam juntos o tempo todo. Eu  faço um porquinho, você faz o segundo porquinho, quem vai fazer o  terceiro porquinho?
Ravioli– E se a gente fizesse uma adaptação e em vez de “Os três
porquinhos” a gente montasse “Os dois porquinhos”?
Lasanha– Não dá Ravioli. Não ia pegar bem. É que nem montar  Branca de Neve e o anão. (…).
(…)
Lasanha– Não Ravioli, a gente podia fazer o Chapeuzinho vermelho.
Ravioli– Ah não! Essa peça é muito batida, todo mundo monta!
Lasanha– A gente podia dar um novo enfoque.
Ravioli– Enfoque? O que é isso?
Lasanha– Um novo enfoque, Ravioli, uma maneira diferente de  contar, um jeito novo de mostrar… A gente muda!
Ravioli– Tá bem…com um novo enfoque…pode ser… (32)

Lasanha e Ravioli iniciam seu trabalho lendo a história de Chapeuzinho Vermelho (um texto narrativo) para rememorá-la, mas logo a transportam para um texto dramático. Não há narração, tendência freqüente hoje em teatro para crianças, e sim dramatização. Os palhaços – atores transformam o texto narrativo fazendo as cenas, já como um primeiro ensaio de palco. As próprias discussões dos atores, referentes ao modo de elaborar as cenas são testadas e experimentadas na prática dramática. A escrita do conto será elaborada na prática de encenação.

Lasanha e Ravioli in Casa é um texto contemporâneo no que diz respeito à forma de tratar o conteúdo da narrativa dramática, pois traz um olhar renovador sobre o tradicional conto, além de ser extremamente teatral pela linguagem cênica propiciada pela estrutura dramática.

A apreensão do teor do texto pela criança se dá pelo fato de a linguagem ser simples (jamais simplória) e teatral. A criança pequena pode não entender tudo, afinal as histórias vão se cruzando no texto (metateatro), além de os dois personagens palhaços fazerem num ritmo intenso mais de um personagem da história de Chapeuzinho Vermelho. Mas com certeza, a criança irá apreender a peça dentro de sua forma pessoal e com prazer, pois o jogo cênico acontece o tempo todo, envolto por palavras, sensações e afetos em processo de ação. Este aspecto lúdico presente no texto/cena e substrato próprio da criança a faz capaz de acompanhar a história.

O processo de ensaio de Lasanha e Ravioli interpretando Chapeuzinho Vermelho vai sendo mostrado em cenas e este mostrar é a base do fazer teatro, por sinal, um fundamento que vem sendo esquecido, segundo a crítica especializada (Carlos Augusto Nazareth e Maria Helena Kuhner apontam esta questão frequentemente, entre outros), devido à preferência à narração. Teatro é fazer para o outro ver e não relatar para o outro ouvir. Assim, o texto teatral Lasanha e Ravioli in Casa se revela uma propícia iniciação da criança no universo teatral, tanto em sua palavra, como em sua conseqüente transposição para cena, e se torna um exemplar de proposta artística com forte característica autoral renovadora para a dramaturgia (e conseqüentemente o teatro) infantil.

2.1 – A fusão de linguagens: circo-teatro.

O teatro é um lugar onde o homem vai para subir e cai. Sua queda é uma oração. Há, no riso que acompanha o dom do corpo que despenca, um despojamento de si; há uma verdadeira santidade do palhaço. O acrobata que leva uma queda executa a prova cômica da oferenda de nosso corpo ao espaço.Valère Novarina. (33)

A dramaturga e ensaísta Maria Helena Kühner aponta, em seu artigo “Dramaturgia – hoje e sempre”, a fusão de linguagens como característica renovadora no panorama do teatro “dito infantil” (utilizo aqui as próprias palavras da ensaísta). Kühner destaca esta fusão muitas vezes presente na encenação em si e não na dramaturgia. Por exemplo, um grupo teatral pode fazer uma adaptação fiel (trama e essência de um conto tradicional europeu) e o diretor do espetáculo optar por uma linguagem cênica que mescle o teatro e a dança. Será uma opção cênica diferenciada (se será bem sucedida ou não, é outra questão), porém a dramaturgia seguirá de forma tradicional. Ou seja: terá um aspecto renovador no palco, apesar da escrita teatral não registrar esta renovação.

No caso de Lasanha e Ravioli in Casa, esta fusão de linguagens ocorrerá como opção cênica, entretanto já se encontra presente de forma clara e consistente no próprio texto teatral.

Os personagens protagonistas do texto, como já foi dito, são dois palhaços – atores chamados Lasanha e Ravioli. Eles estão tomando café da manhã em sua casa e “descobrem” através do jornal que estão fazendo dez anos de trabalho juntos (fato já insólito). Decidem então montar um novo espetáculo teatral. Lasanha e Ravioli são personas palhaços que trabalham como atores. O cenário da casa deles é sugerido no texto com elementos prosaicos de qualquer casa, tais como: telefone, abajur, vasinho de flores, porta-retratos, etc… Porém o chão é coberto por uma lona, material tipicamente circense.

O diálogo inicial dos personagens já revela o jogo lúdico e ingênuo dos palhaços, em que o que falam não importa muito; a graça será evidenciada em cena, com o ritmo dado pelos atores que interpretarão Lasanha e Ravioli. O diálogo simples sugere um ritmo bem marcado, típico do palhaço e do cômico, onde um segundo a mais ou a menos pode causar a perda da piada.

Eis o trecho:

Lasanha– Ravioli…
Ravioli– O quê?
Lasanha– Passa o café.
Ravioli– Toma.
Lasanha– Ravioli…
Ravioli– O quê?
Lasanha– Passa o pão.
Ravioli– Toma.
Lasanha– Ravioli…
Ravioli– O quê?
Lasanha– Passa a manteiga.
Ravioli– Toma!
Toca a campainha. Olham-se.
Lasanha– Ravioli…
Ravioli– O quê?
Lasanha– Estão tocando a campainha.
Toca o segundo sinal. Dois toques de campainha.
Ravioli– Você não vai abrir?
Toca o terceiro sinal. Três toques de campainha.
Lasanha– Não posso. Estou passando manteiga no pão. (34)

O diálogo em si não possui nada de especial, a forma das frases repetindo-se é o que acaba por revelar a graça, além do tratamento abusivo de Lasanha sobre Ravioli.

Lasanha chama Ravioli que sempre responde somente o quê? , e o primeiro vai ordenando passa istopassa aquilo, numa exigência que parece durar o café da manhã inteiro, caso não fosse a campainha tocar. O segundo responde sempre com uma única palavra (toma), até que o último tomar vem escrito com um ponto de exclamação, o que sugere o fim da paciência de Ravioli.

Então é ele quem pergunta a Lasanha se não abrirá a porta (afinal a campainha já tocou várias vezes) e este responde que não pode porque simplesmente está passando manteiga no pão. Como se fosse impossível interromper esta prosaica ação.

O diálogo é ingênuo e também patético, novamente num jogo ritmado. A primeira vez que a campainha toca e eles param para se olhar também é algo típico do cômico, em que uma parada de ação ocorre sem motivo plausível (afinal o fato de uma campainha tocar não é motivo para a troca pausada de olhares) e isto ocasionará naturalmente a risada do público.

Outro detalhe interessante diz respeito aos toques da campainha da casa virem sempre após o toque de campainha característico do teatro. É notório o fato de que um espetáculo teatral começa após o sinal de um terceiro toque de campainha.

Assim, o próprio texto teatral já evidencia, de uma forma precisa e bem elaborada, esta fusão de linguagens entre o circo e o teatro e o cruzamento da realidade teatral com sua própria ficção.

No acervo pessoal de críticas de Carlos Nazareth para o “Jornal do Brasil” (cedido gentilmente pelo próprio autor), o crítico caracteriza os espetáculos teatrais de Ana Barroso e Mônica Biel (responsáveis pela criação da dupla Lasanha e Ravioli) como espetáculos predominantemente marcados e valorizados pela performance dos atores. Concordo plenamente com esta colocação, pois esta fusão de linguagens envolvendo a personapalhaço necessita de uma boa desenvoltura do intérprete. Como já vi um espetáculo da dupla (“Riquet, Topetudo”), pude conferir a boa atuação das atrizes.

O texto estabelece uma ludicidade e uma comicidade que irão ser afirmadas através da cena feita no palco, porém os textos das autoras também oferecem uma escrita teatral consistente e bem desenvolvida. O fato de ser uma encenação pautada na marcante performance das atrizes não diminui a obra como dramaturgia em si, apenas a valoriza como um texto essencialmente teatral, onde as palavras clamam para serem corporificadas em cena.

Muitas vezes, espetáculos valorizados de forma extrema na performance da cena possuem um roteiro dramático frágil quando apenas lido, o que não ocorre com Lasanha e Ravioli in Casa, vital já em sua escrita.

Retornando à questão da fusão de linguagens, verifico também nesta peça a utilização do teatro de bonecos. Neste tipo de expressão não me deterei em análises, pois esta é uma forma bastante corrente e estudada no teatro infantil.

Ademais, a linguagem clownesca é a que se revela como característica determinante no trabalho das artistas.

O fato de Lasanha e Ravioli, os protagonistas da peça, serem além de atores, também palhaços, fará toda uma diferença na expressão dramatúrgica, pois trará forçosamente consigo o segundo traço característico de Lasanha e Ravioli in Casa: o humor lúdico, ingênuo, porém crítico e transgressor.

Por este tipo de humor característico do palhaço é que o texto teatral vai alterar sem piedade o reconto de Chapeuzinho Vermelho, podendo traí-lo assumidamente e não equivocadamente. Eu traio porque eu quero e não porque eu não sei ser fiel. Esta posição é uma opção estética. Como a maioria dos artistas de teatro para crianças só tem feito adaptações dos contos clássicos e não criado nada de “novo”, (dando apenas um novo enfoque), vamos assumir nossa “incapacidade” de contar algo totalmente inédito e mais: vamos rir de nossa própria “incapacidade”. Isto é o que o texto Lasanha e Ravioli in Casa parece nos mostrar.

E o palhaço é capaz disso, pois ri de sua própria “idiotice”. E por isto o palhaço também é sério (sem ser sisudo), um pouco triste e muito corajoso. É preciso de muita coragem e inteligência para poder rir de si mesmo. É preciso não ter medo de parecer ridículo, de errar, de se desequilibrar. Caso observemos, o palhaço e os cômicos em geral possuem sempre em seu corpo algo de desequilíbrio, “um preste a cair”. E caem mesmo.

A dramaturgia de Lasanha e Ravioli in Casa inova ao não ter medo de refletir e assumir o que está acontecendo no atual panorama do teatro infantil. Ela não disfarça que está inovando e ao não disfarçar, não blefar, ela acaba inovando.

Lasanha e Ravioli in Casa reflete este panorama do teatro infantil em seu próprio texto e aponta rindo: – “Olha! É isto o que a gente está fazendo! Mais nada. Então vamos rir de tudo isso, de nós mesmos?”

O palhaço, em geral, como bem observa Viveiros de Castro em seu livro “O elogio da bobagem” (35), se apresenta em dupla: um faz a bobagem e o outro aponta e ri. Não é? Na verdade, os palhaços se apresentam em dupla, pois representam a duplicidade do próprio ser humano, quando ele é capaz de observar a si mesmo em seu ato e neste olhar distanciado rir cruelmente de si próprio.

Das três peças teatrais escolhidas por mim para apresentar tendências de autores contemporâneos, na busca de novos caminhos para a dramaturgia e o teatro infantil, Lasanha e Ravioli in Casa é o único texto que não possui a imagem da criança em sua trama. Mas ele possui esta figura do palhaço por quem naturalmente toda criança se sente atraída.

Através de todos os estudos feitos sobre a criança, sabemos que ela não possui um pensamento abstrato, lógico, a priori. Este vai sendo construído aos poucos e a própria aquisição e conhecimento da linguagem irá alimentar este desenvolvimento.

A criança, ao contrário, possui naturalmente uma inteligência concreta; ela vivencia o mundo tal como uma experiência própria. O que não pode ser vivenciado como gesto próprio não diz respeito ao seu mundo. E por isto também ela procura aproximar o que vê de si mesma. O boneco, por exemplo, é como um prolongamento de seu próprio corpo. Logo, por este raciocínio, ela não tem o distanciamento crítico que o adulto possui e que o cômico revela; porém ela se identifica com o aspecto lúdico que o palhaço tem: a possibilidade de jogo, de brincar, e daí sentir prazer. Por isto ela é capaz de se identificar com a figura cômica, em seu prazer e liberdade de brincar. Além do mais, o fato da figura do palhaço se desdobrar (trabalhando em dupla) facilita à criança a possibilidade de ver a situação com maior clareza, pois o reflexo é apontado, mostrado. A reflexão se torna, de certa forma, concreta.

Alice Viveiros de Castro, que faz uma pesquisa sobre os palhaços no livro anteriormente citado, escreve também sobre a fusão entre o circo e o teatro. Penso ser importante destacar aqui algumas observações.

A autora comenta o fato de o teatro, durante muito tempo, ter se esquecido de sua origem popular, comprometido com ideais ditos nobres, vinculados a um suposto bom gosto e refinamento instrutivo, assim como as Belas Artes e também a Música. De outro lado, o circo ficou à margem: afinal não possuía nenhuma função a não ser provocar o riso. Era visto como algo grotesco, mero divertimento, sem nenhum valor artístico, sem expressão que pudesse enobrecer o povo ou ensinar-lhe algo; logo não poderia ser considerado como arte. Viveiros de Castro esclarece ainda que a arte circense tornou-se a última expressão artística a ter seus ensinamentos formalizados. Sua tradição era passada oralmente em geral dentro da família. Afinal, as próprias elites não se interessavam por um registro de algo visto como inútil.

Mais tarde, espíritos vanguardistas europeus, ao perceberem que o teatro estava se tornando “clássico demais e por isto quase morto”, resolveram reavivá-lo, buscando sua origem saltimbanca, aproximando-o assim do circo e das feiras. Castro se refere então a nomes como Karl Valentim, Brecht, Gordon Craig, Piscator, Meyerhold e Jean Cocteau. Em contrapartida, o circo também foi influenciado pelo teatro de forma positiva, procurando dentro de sua tradição algo renovador. Meyerhold dirigiu inclusive a primeira Escola de Circo de Moscou, em 1926.

Interessante é o fato de Viveiros de Castro dizer que o palhaço não é exclusividade do picadeiro. Temos esta impressão gravada em nossa memória pelo fato de ter sido no circo que o palhaço atingiu o status de protagonista. E realmente não conseguimos imaginar um circo sem palhaço.

A autora traz como exemplo Joe Grimaldi, famoso palhaço inglês que jamais pisou em um picadeiro e, no entanto, foi o responsável pela imagem física tradicional do palhaço: a pintura branca no rosto, as bochechas vermelhas, o enorme sorriso vermelho para cima (como que forçado), além da peruca de fios espetados. Esta figura estranha, que está em nosso imaginário até hoje, foi produzida por um palhaço dito de palco. O trabalho de Grimaldi também se relacionou com as pantomimas e o reconto das histórias de fadas. Curiosamente o trabalho de Ana Barroso e Mônica Biel tem se baseado tanto no reconto quanto na figura do clown. No que se refere às pantomimas inglesas, outro dado é o fato de as histórias não terem sido colocadas de forma adocicada, isto é: a violência e a crueldade existentes originariamente nos contos de fadas não foram suprimidas. O humor e o fantástico eram usados para o reconto destas histórias, por mais absurda que a situação pudesse parecer. Ademais, a graça existia no próprio absurdo e consequentemente a ideia de eliminar a crueldade presente nas histórias não era levada em conta.

A figura do palhaço é em si mesma, cruel. Ao apontar o nosso ridículo, o nosso absurdo e ainda rirmos, mostramos nossa crueldade e nosso lado grotesco.

Em Lasanha e Ravioli in Casa há uma passagem que mostra a natureza deste humor cruel do palhaço. Após as improvisações de Lasanha e Ravioli, já no final do texto, ambos sentam-se para comer algo, enquanto comentam sobre o espetáculo que irão fazer:

Ravioli– Aquela ideia de colocar o Juvenal até que foi boa, né?
Lasanha– Foi ótima… mas, pelo amor de Deus, Ravioli, não repete a ideia da Fada! É muito ruim! Você…
Ravioli– Pode deixar! Já entendi! Não vou botar… Ô Lasanha, você não acha que ficou muito diferente do conto, não?
Lasanha– Não, não acho não.
Ravioli– Mas você acha que as crianças vão entender?
Lasanha– Ah, Ravioli… tem Chapeuzinho, tem Lobo Mau… vão entender, sim. Ah… também se não entender, dane-se… (36 )

Confesso que eu mesmo quando li este trecho, e especialmente a última frase de Lasanha, tive receio em incluí-la em minha leitura. Depois, estudando e revendo os meus próprios conceitos e preconceitos sobre a criança, além do fato de que esta obra trabalha com a paródia e o humor clownesco, vi que a tal frase de Lasanha revela este tipo de humor cruel, onde não há lugar para paternalismos e cuidados excessivos com a criança. E daí resulta: “Ah! Se ela não entender o problema é dela”.

E nós, adultos, entendemos tudo o que se passa à nossa volta? Mais uma vez o texto Lasanha e Ravioli in Casa revela uma reflexão constante do trabalho de quem escreve e ou trabalha com crianças. Será que elas vão entender? Mas elas têm que entender tudo? Ou será que as crianças estão entendendo e nós adultos é que sempre diminuímos o entendimento delas? Será que estamos sendo demasiado inteligentes e ou sofisticados para as crianças? Outra vez as colocamos numa posição de inferioridade.

Caso contrário, não nos importando em demasia com elas, sem dar muitas explicações ou ensinamentos, temos medo de parecermos cruéis ou insensíveis. Ah! As crianças são tão frágeis e delicadas, que se nós adultos não explicarmos detalhadamente, passo a passo, como irão se orientar?

Então vem a figura de um palhaço, cômico por natureza e diz: “Ah… também se não entender, dane-se…”

Em “O elogio da bobagem”, Viveiros de Castro dedica um de seus capítulos à questão ética do riso.

Em tempos politicamente corretos, todos perguntam os limites que devem conter as telenovelas, a importância de mensagens positivas nos filmes ou a posição política e ética dos livros. Ainda mais, quando o público a que se destina a produção é de crianças, ou mesmo adolescentes, público caracterizado como em processo de formação.

No que diz respeito ao teatro para crianças, a mesma dúvida existe. O dramaturgo Ivanir Calado, por exemplo, em seu artigo intitulado “Seminário de dramaturgia para crianças e jovens”, (37) para a revista do CBTIJ, confirma que não há diferenças técnicas entre uma dramaturgia para crianças ou uma dramaturgia para adultos. Ou seja: a forma como se escreve uma boa peça infantil tem os mesmos princípios da estrutura de uma boa peça para adultos. Mas, apesar do perigo moralizante e didático já verificado na história do teatro infantil e apontado como um equívoco, o autor tem dúvidas sobre ter cuidado ou não com o que se escreve para crianças. Deve-se vigiar o conteúdo das obras direcionadas a este público? Ivanir Calado faz esta pergunta a si mesmo quando escreve. Esta dúvida acaba ocorrendo devido à falta de limites e parâmetros na nossa própria realidade. O dramaturgo ressalta a questão da violência. Há tanta violência hoje, em nossa realidade, que Calado questiona se deve ou não controlar a violência em sua obra teatral.

Esta é uma questão que suscita dúvidas e controvérsias naturalmente, mas não se deve, em minha opinião, passar para a ficção (seja teatro, literatura, cinema ou qualquer outra expressão artística) a responsabilidade de resolver o que a sociedade não consegue delimitar na realidade. O terreno da arte e da ficção foi sempre o terreno da liberdade e é por isto mesmo que a arte é necessária. Não se pode, inverter os valores e oficializar para a arte uma função de nossa realidade social: a função de elaborar regras de valores e condutas para a melhor convivência possível entre os seres humanos.

Este é um ponto de discussão de qualquer trabalho artístico, mas levanto a questão neste momento, pois o humor do palhaço é justamente um humor transgressor. O riso é sempre transgressor, cruel. Caso limitemos nossa expressão artística ao dito politicamente correto, não haverá mais lugar para a liberdade de criação, principalmente para o humor, forma de expressão característica na dramaturgia e no teatro de artistas como Ana Barroso, Mônica Biel e Thereza Falcão.

Há, inclusive, uma ironia claramente expressa sobre este assunto presente na dramaturgia de Lasanha e Ravioli in Casa. O trecho consiste na conversa final entre o Caçador e Chapeuzinho:

Caçador– Sabe que tu és uma gatinha…
Chapeuzinho– Você acha?
Caçador– Bah!
Chapeuzinho– E você é… forte, hein? Derrubar o Lobo, assim…
Caçador– É que eu sou o caçador, ‘forte e corajoso’, já viu, né?
Chapeuzinho– Mas você não vai matá-lo, não é?
Caçador– Não! Eu sou um caçador moderno, sou do bem, eu sou da     paz! Eu vou dar um outro enfoque! Vou levar o Lobo para uma reserva florestal, de onde ele nunca mais vai conseguir sair. Lá ele não fará mal     a ninguém e estará em meio à natureza que é o seu lugar!
Chapeuzinho– Ah! Que bom! (38)

Viveiros de Castro diz sobre o humor característico do palhaço: “O palhaço é um transgressor, um excêntrico; está fora dos eixos, das regras, da lógica, do bom senso, do bom gosto e das boas maneiras”. (39)

Ou seja: o excesso de arte politicamente correta e “comprometida” – o que na verdade revela um grande moralismo para um mundo que perdeu as rédeas em seu cotidiano real – deixa no ar a pergunta: onde haverá espaço para a fantasia, e em especial para este humor muito bem colocado por Viveiros de Castro?

O humor pode ser crítico e transgressor com a realidade circundante, subversivo em sua forma: cruel, excêntrica, rebelde. O “bom moço”, observemos, jamais é bem humorado. E não esqueçamos que ficção é ficção, realidade é realidade.

Estudando a fusão de linguagens circo-teatro, Viveiros de Castro se refere a Jacques Lecoq e Philippe Gaulier como os precursores deste tipo de trabalho.

Palhaço, bufão, clown, bobo da Corte, todos são nomes referentes ao papel do cômico, aquele que faz rir, provoca a graça, como primeira e última intenção. Mas quando se refere ao palhaço de palco, não nascido no circo, que aprendeu as técnicas em escolas e cursos, convencionou-se chamá-lo de clown.

clown busca a origem do palhaço de picadeiro, mas o transforma em certos aspectos. No que diz respeito ao humor, por exemplo, o clown possui um humor menos rasgado, menos óbvio (não há nenhum tom pejorativo no uso desta palavra), do que o humor apresentado no palhaço de picadeiro.

No que toca ao trabalho corporal, o palhaço de palco dará menos valor ao aspecto acrobático, aos malabarismos típicos circenses e centrará mais sua performance no talento cômico, valorizando o trabalho do ator.

Viveiros de Castro explica que a graça do artista de circo consiste sempre na demonstração corporal de um fracasso. O palhaço sempre fracassa, por isto possui este jeito um pouco idiota, patético, e, de certa forma, até triste. O palhaço é triste porque parece um ser fracassado. Ele jamais “dá certo”, não consegue ser bem sucedido em seus projetos. Só que, como o olhar da comicidade não é o olhar da compaixão (como o olhar trágico) e sim o da crueldade, nós somos capazes de rir do fracassado (inclusive o próprio palhaço ri de si mesmo).

clown vai se alimentar deste olhar e marcar em sua performance esta atitude do fracasso. Ou seja: com o talento cômico, ele vai evidenciar este fracasso. Como a pesquisadora coloca, não bastará fracassar, o artista terá que fracassar bem, afinal está em xeque o próprio jogo cênico: o jogo do ator. O clown terá que interpretar bem o personagem fracassado – o personagem palhaço.

Viveiros de Castro comenta ainda que a linguagem clownesca explodiu mundialmente nos anos noventa do século passado. Curiosamente, aqui no Brasil, a linguagem clownesca mesclou as influências europeias com a inspiração do palhaço presente nos circos populares e nos folguedos do folclore nacional.

Os palhaços – atores da peça em estudo demonstram uma fusão interessante. Como nos próprios diálogos já exibidos aqui, além da própria caracterização proposta para o cenário, também descrita, observo que Lasanha e Ravioli são os típicos palhaços de palco, já que são também atores e evidenciam o humor inteligente. Porém, possuem ao mesmo tempo algo ingênuo, mesmo caipira. Como disse antes, o chão de sua casa é uma lona, material tipicamente circense e popular.

Em contraponto, esbanjam contemporaneidade, inclusive, ao demonstrar total lucidez sobre o atual momento do teatro carioca para crianças. Lasanha e Ravioli são também urbanos. O mais interessante consiste na observação de que este aspecto multifacetado de suas personalidades não as dilui, apenas valorizam-nas, tornando-as mais ricas ainda. Lasanha e Ravioli são simples, mas não são óbvios. Talvez isto demarque bem a diferença entre um arquétipo e um clichê. Estes personagens representam a persona palhaço, mas não se limitam aí, logo não se tornam clichês.

2.2 – A Criança e o Humor Lúdico

Per ludum, per jocum.
Por brincadeira, por prazer.
Alice Viveiros de Castro (40)

Através da análise da fusão da linguagem do circo com o teatro, evidenciei antes o papel do palhaço e o seu humor crítico. Aqui, quero tratar do humor lúdico, presente também na peça e na figura do palhaço. Penso ser importante analisar separadamente esta questão, pois estou tratando de uma dramaturgia direcionada especialmente à criança.

O humor crítico provém basicamente de dois pontos cruciais: o primeiro refere-se ao meta teatro, já que Lasanha e Ravioli in Casa reflete artisticamente a própria crítica sobre o teatro feito para crianças; o segundo ponto relaciona-se ao arquétipo do palhaço, protagonista desta fusão entre o teatro e o circo. Este humor do palhaço, como exemplo de contraponto ao absurdo de nosso próprio mundo, aos nossos próprios comportamentos insensatos, favorece consequentemente o olhar crítico e irônico.

Agora quero refletir sobre o caráter humorístico que serve de elo entre a dramaturgia citada e a criança: o humor lúdico, já que é um traço de extrema relevância.

É comprovada pela crítica especializada a presença cada vez maior de crianças pequenas em nossos teatros, crianças de quatro, três, até de dois anos, como espectadores. Consultei o acervo das críticas de Carlos Augusto Nazareth para o Jornal do Brasil e isto está mencionado várias vezes. Inclusive, a indicação, encontrada no mesmo Jornal do Brasil, referente ao espetáculo Lasanha e Ravioli in Casa é para crianças a partir de três anos.

Logo, posso adiantar uma questão. Como a criança pequena, ainda em processo de aquisição da linguagem, irá presenciar e receber este humor crítico? A criança maior poderá perceber a piada contida nos diálogos, os pais idem. Mas, e as crianças menores? Para entendermos a piada, é preciso ter uma certa noção do contexto, não? Não é à toa que existe piada de português no Brasil e não no Uruguai. Uma criança na faixa etária de três anos possui uma forma concreta de pensamento, logo não terá um distanciamento crítico necessário para poder apreciar certas ironias.

Entretanto, o humor presente na dramaturgia é também lúdico, assim como a própria linguagem clownesca. Portanto, a criança que não compreender “tudo”, irá se divertir da mesma forma, melhor dizendo, da sua forma: a forma lúdica, sensível a toda criança.

A própria trama de “Lasanha e Ravioli in casa”, ao retratar um processo de criação de um espetáculo teatral, já provoca naturalmente o espírito lúdico. O fazer teatro é essencialmente um jogo lúdico, um “fazer de conta” com proposta artística. E a atividade preferida da criança consiste na atividade lúdica: brincar é vital para a criança.

Sara Kofman faz uma excelente relação entre a infância e a arte. A psicanalista escreve:

Pelo jogo dos processos psíquicos inconscientes, o jogo dos afetos em sua transformação, o das representações na combinatória, o artista tenta repetir o que a criança faz através de suas brincadeiras, antes que a razão e o julgamento lhe venham impor coações. O homem ‘reverenciado’que é o artista no fundo não é mais do que uma criança que dá aos outros homens a alegria de poder reencontrar, eles também, o paraíso da infância. (41)

A psicanalista acrescenta ainda que a criança desenvolve seu processo de linguagem e sistema psíquico através do jogo, e durante este mesmo processo de aquisição de linguagem, (o que a faz ingressar na cultura social), a criança começa a perder o humor, o cômico, traço característico do jogo. Ou seja: a criança vai se inserindo culturalmente através do jogo e durante esta mesma inserção, ela vai perdendo a capacidade de jogar, de brincar e de rir. A arte então propicia este resgate, o próprio resgate do prazer.

Quanto à atividade dramática especificamente, o pesquisador Peter Slade (42) afirma que o jogo dramático é para a criança uma capacidade vital. A criança experimenta a própria vida caracterizando certos papéis e sempre de forma emotiva, portanto, dramatizando. Inicialmente, percebemos a criança explorando estes momentos como tentativas isoladas, depois, verificamos a repetição de determinados gestos e emoções, como um ritual. A partir desta atividade, ela vai experimentando o próprio mundo e a si própria. Sua identidade vai sendo construída através deste ato dramático. Slade ainda explica que a criança pode direcionar este mesmo jogo para si própria ou para um grupo, mas seja qual a forma escolhida, o jogo dramático infantil em si é sempre caracterizado por uma absorção completa da criança naquele momento, assim como por uma absoluta sinceridade. Esta é decorrente da mesma sensação de absorção citada anteriormente; uma é inerente à outra. O momento de representação de um papel é vivido pela criança como uma experiência real e excitante. O autor chama a atenção para a própria origem da palavra drama, que vem do grego e quer dizer eu faço e luto.

Qualquer pessoa próxima a uma criança é capaz de observar que no momento em que a criança brinca, ela é capaz de imitar diversos gestos. Ela brinca que fala ao telefone, brinca com sua boneca fazendo uma segunda voz para esta boneca, etc… Nesta brincadeira a criança está representando e dramatizando. Depois, com a presença de outras crianças, elas estabelecem uma brincadeira conjunta onde cada um desempenha um papel e assim por diante. Com o passar do tempo e o processo de aquisição da linguagem, as brincadeiras tornam-se mais elaboradas, pois podem ser planejadas. Mas o prazer na representação é o mesmo.

E consequentemente, a apreciação de um espetáculo teatral vai ser também prazerosa, pois esta atividade lúdica diz respeito à criança. No caso da peça Lasanha e Ravioli in Casa, ela irá vivenciar os palhaços fazendo os personagens de Chapeuzinho Vermelho, como ela mesma brinca de fazer outros personagens. A criança pequena pode não entender toda a história de forma lógica, mas irá apreciar aquela movimentação e troca de personagens. Esta ludicidade presente na dramaturgia irá prender a atenção e proporcionar prazer tanto para uma criança de três anos como para uma criança de sete anos, por exemplo.

Lasanha e Ravioli preparam sua casa para ensaiar com o mesmo prazer que a criança prepara o espaço em sua casa para brincar. Cito aqui um trecho da peça, quando os palhaços recebem em sua casa os figurinos e se encantam, da mesma forma que a criança se encanta com seu brinquedo:

Lasanha– Quem é?
Ravioli– Os figurinos.
Lasanha– Ah! (Vai atender a porta. Volta trazendo uma caixa de cada vez. São caixas de cores, formatos e tamanhos diferentes, cada uma     com o nome de um personagem na tampa. Lasanha entrega a caixa a     Ravioli, que vai colocando uma ao lado da outra. Enquanto dura esta arrumação das caixas, os dois falam num ritmo     muito acelerado, de maneira que fica quase incompreensível para a     plateia. Falam sobre as caixas, os formatos, etc. O que dizem não tem importância. Param de falar quando as caixas estão arrumadas).
Lasanha– Que beleza! Está tudo aí! (Lendo a tampa da caixa) A Chapeuzinho!
Ravioli– A Chapeuzinho!
Lasanha– O Caçador!
Ravioli– O Caçador!
Lasanha– A Mãe!
Ravioli– A Mãe! (43)

Aqui, aparece uma indicação de que neste momento não importa o que eles falam, o mais importante consiste na ação de arrumar as caixas e em todo o encantamento e entusiasmo ao verem os figurinos dos personagens. Depois, quando vão lendo os nomes nas caixas, a graça consiste (como no diálogo da abertura da peça), na repetição das palavras, de forma ritmada. Por sinal, presencia-se mais uma vez o peso da personalidade forte de Lasanha sobre Ravioli.

Este encantamento do teatro e da brincadeira em si está presente em todo o texto de Lasanha e Ravioli in Casa, o que indica uma teatralidade já presente na dramaturgia, pois a percebemos já em sua leitura, independentemente da encenação.

Regina Forneaut Monteiro, em seu livro “Jogos Dramáticos” (44), afirma o jogo como atividade inerente à criança, mas também ao homem adulto. Para a criança, a atividade lúdica é a sua forma de expressar-se no mundo: a sua própria linguagem. A criança faz da atividade lúdica uma atividade vital tão importante quanto se alimentar, por exemplo.

Já o adulto acaba reprimindo a importância desta atividade, ou, penso eu, a nossa sociedade acaba fazendo-o pensar que esta atividade é algo “mais pertencente” ao mundo infantil.

No entanto, Forneaut destaca justamente o contrário: o jogo é uma atividade não somente infantil, mas humana. A ludicidade também é importante para o adulto, pois através da capacidade de jogar, expressando-se através da imitação, o homem vai conhecendo seu próprio mundo e compreendendo-o, assim como a si mesmo.

A autora coloca como epígrafe, em sua introdução, um pensamento, de Johan Huizinga, expressivo destas afirmações:

… O drama, devido a seu caráter intrinsecamente funcional e devido ao fato de constituir uma ação, continua permanentemente ligado ao jogo. A própria linguagem reflete este laço indissolúvel. Drama é chamado ‘jogo’ e interpretá-lo é ‘jogar’. (45)

O “fazer de conta” propicia a criação de uma realidade própria, e esta possibilidade de vivenciar o mundo de outra forma representa, nada mais, nada menos, do que o encontro com a liberdade. Esta liberdade criativa faz também com que o homem reencontre sua espontaneidade. Para encontrar novas possibilidades de pensar o mundo e a si próprio, descobrir novas resoluções e mesmo novas indagações, o homem é obrigado a recuperar uma certa espontaneidade, pois o momento de criação é livre de pré-conceitos e julgamentos.

Forneaut desenvolve ainda a ideia de que esta espontaneidade é que fará o indivíduo ser capaz de atravessar o mundo real e tornar o mundo imaginário também real, ao fazer a brincadeira do “faz de conta”. A partir destas recriações o ser humano irá elaborar novas perspectivas de ações, pensamentos e afetos.

É uma pena que o adulto vá embotando esta capacidade de criar e jogar com a vida de forma afetuosa e emotiva, tão espontânea na criança pequena, não se permitindo mais este jogo. E como a própria autora reconhece, é necessário estar aberto, disponível a esta atividade lúdica.

Faço uma ressalva aqui: esta liberdade não significa ausência total de regras, mas sim a possibilidade de poder mudar as regras, reorganizá-las. A liberdade de criação e jogo significa também flexibilidade e relaxamento. Com rigidez é impossível jogar.

Portanto, este jogar, exercício fundamental do ser humano, criança ou adulto, artista ou não, é que fará com que o teatro continue perdurando e mantendo seu fascínio sobre as pessoas. Há uma frase que diz: melhor do que assistir teatro é fazer teatro.

Lasanha e Ravioli in Casa é um texto teatral que significa teatro já em suas letras, pela própria história que conta: um processo de criação teatral. Pode agradar tanto uma criança pequena, quanto uma criança maior, tanto aos pais desta criança, como também a seus avós.

Por sinal, é este caminho que estudiosos, como Maria Lúcia Pupo (46), defendem para o teatro infantil: o caminho da abertura de faixas etárias. Uma boa dramaturgia para crianças é antes de tudo uma boa dramaturgia, e um bom espetáculo teatral para crianças é antes de tudo um bom espetáculo teatral para todos. Esta idéia é compartilhada pelos artistas e críticos que buscam investigar o teatro para este público em especial, como os já citados Carlos Augusto Nazareth e Maria Helena Kühner, entre outros nomes.

2.3 – A Paródia do Próprio Teatro Infantil

Que eu seja um comediante – mas um comediante que pensa.                                                                Charles Chaplin. (47)

Desenvolvo aqui um terceiro ponto que considero crucial na dramaturgia de Lasanha e Ravioli in Casa: o tom de paródia encontrado no texto das autoras.

Como disse antes, um ponto delicado apontado por Carlos Augusto Nazareth em seu trabalho como crítico para o “Jornal do Brasil”, diz respeito à adaptação dos contos de fadas para o teatro infantil.

O crítico aponta a freqüência de equívocos presentes nestas adaptações. Um dos equívocos diz respeito ao esquecimento do conteúdo simbólico dos contos de fadas, apesar da respeitabilidade seqüencial da narrativa. Outro equívoco refere-se à constatação de uma dramaturgia frágil, mesmo com o respeito ao conto enquanto essência e trama narrativa. Ou seja: o conteúdo simbólico está presente no texto, a seqüência da história é respeitada, mas a transposição do texto narrativo para o texto dramático se torna sofrível, com diálogos pouco convincentes, personagens mal construídos e/ou desenvolvimento da história como trama teatral mal apresentado.

Um outro aspecto apontado pelo crítico refere-se à já aludida mescla de narração e drama, presente muitas vezes nos espetáculos teatrais infantis e também adultos. Como já apontei antes: conta-se um trecho da história e faz-se outro trecho, aproximando assim o teatro da narrativa oral cênica, mais conhecida aqui como “contação de histórias”.

Nazareth observa que muitas vezes presencia-se uma perda da teatralidade do espetáculo, assim como um enfraquecimento do poder da palavra, emblema da “contação de histórias”. Nesta mistura de contar uma história (como relato) e mostrar uma história (princípio teatral fundamentado na apreciação das cenas feitas), acaba-se por não fazer nem uma coisa nem outra.

Escolhi assim, também por estas questões, a presença de Lasanha e Ravioli in Casa nesta dissertação.

O texto apresentado relê Chapeuzinho Vermelho, mas com o propósito de nos mostrar um processo de criação de um espetáculo teatral. Mais importante do que mostrar a história de Chapeuzinho Vermelho é revelar a experimentação teatral em si. Vemos que o título da peça é Lasanha e Ravioli in Casa e não Chapeuzinho Vermelho, ou A História de Chapeuzinho Vermelho.

Neste aspecto, o texto teatral, de forma inteligente, se permite não respeitar a história original fielmente. Além do que, a presença clownesca reforça a possibilidade de parodiar a história de “Chapeuzinho Vermelho”.

No “Dicionário de Teatro” de Patrice Pavis (48), lê-se que a origem da palavra paródia vem do grego e quer dizer contracódigo, contracanto. O autor escreve: “Peça ou fragmento que transforma ironicamente um texto preexistente, zombando dele por toda espécie de efeito cômico”. (49)

Já que os protagonistas são dois palhaços atores, nada mais natural do que se permitirem brincar com a história de Chapeuzinho Vermelho, subvertendo-a, recontando-a a sua maneira cheia de humor, até mesmo contestando-a.

Por exemplo: Lasanha e Ravioli destacam a estranheza de alguém se chamar Chapeuzinho Vermelho. Também decidem colocar um nome na mãe de Chapeuzinho, D. Maria Chapéu, (para os palhaços, simplesmente D. Chapéu iria soar esquisito). Além disto, os palhaços criam novos personagens para a história, como o personagem de um menino, (por sinal, a princípio, não sabem nem mesmo o que este menino irá fazer na trama), como também decidem que aparecer uma fada no meio da história seria um exagero, já que não há fadas no conto proposto.

Importante mostrar que os atores palhaços jogam com o tradicional conto, porém não se esquecem de como é este conto. Um exemplo disto é que, no início do processo de criação, eles pegam o livro e leem um trecho da história para rememorá-la. Afinal, para criar a versão deles, “o novo enfoque”, é preciso conhecer bem a história original. Assim, fica evidente que a “nova” história de Chapeuzinho Vermelho é uma opção estética e não um erro de adaptação da narrativa para o drama.

Affonso Romano de Sant’Anna demonstra, em seu estudo, (50) que a paródia é “uma nova e diferente maneira de ler o convencional”, como “um processo de liberação do discurso” e “uma tomada de consciência crítica”. (51)

Dentro de uma proposta teatral, Patrice Pavis escreve que a paródia não é simplesmente uma técnica de comédia, mas fundamentalmente um diálogo comparativo com o texto de origem, refletindo sobre o mesmo, além de refletir também sobre a tradição literária e teatral. (52)

Observo que no texto, Lasanha Ravioli in Casa, os limites para a mudança na história apresentada são também pensados. Um exemplo disto é o surgimento da fada criada por Ravioli durante o ensaio, o que deixa Lasanha/ Chapeuzinho extremamente irritado:

Entra a Fada da História de Topetudo. Vinheta. Ela fala com forte sotaque alemão.Fada– Olá! Você não é a Chapeuzinho?
Chapeuzinho– Sou eu mesma. A senhora é…
Fada– A Fada da História de Topetudo!
Chapeuzinho– (Meio irritada) Ah desculpa… Eu não estava lhe reconhecendo…
Fada– É natural, eu não trabalho nessa floresta, vim visitar uma fadinha, amiga minha… Como vai mamãe?
Chapeuzinho– Tá ótima.
Fada– Como vai papai?
Chapeuzinho– Papai nesta história não entra.
Fada– ( Pegando a cesta de doces) Ah! Docinhas… No, no, no. Este é do tipo do puxa puxa, agarra na obturação. Mas o que você está fazendo aqui? Ah, já sei! Vai visitar uma amiguinha?
Chapeuzinho– (Cada vez mais irritada) Não… Não…
Fada– (Olha o relógio) Oh! Perdi a hora! Estou atrasadíssima! Tchau, meu bem! Dá um pituca aqui na titia. Beijocas na mamãe! (vai saindo)
Chapeuzinho– (Irritadíssima) Mas o que esta Fada está fazendo aqui?
Fada– Era para fazer alguma coisa, eu achei esse figurino lá atrás,     achei que era uma boa ideia…
Chapeuzinho se vira de costas para o público, tira os óculos e coloca o nariz de palhaço. A Fada vai tirando a roupa enquanto sai de cena resmungando.
Lasanha– Não! Não é uma boa ideia! Essa idéia é péssima! Se você quiser ter uma boa ideia, faz um bichinho da floresta! Um cachorrinho! Uma vaquinha! Mas não coloca uma fada no meio da história de Chapeuzinho Vermelho que ninguém vai entender nada! Eu não quero fazer uma peça pra criança que nem o pai dela vai entender, Ravioli! Olha! Eu vou recomeçar! (Continua falando enquanto se vira de costas  para a platéia, tira o nariz de palhaço e coloca os óculos) Mas você vê se desta vez não me atrapalha! Assim eu fico completamente perdida! Ah! É isso! Eu to perdida! (Se vira para a plateia, já de Chapeuzinho) Ah! Eu to perdida… (53)

Por este trecho acima, verificamos que a paródia existente em Lasanha e Ravioli in Casa diz respeito não somente ao conto de “Chapeuzinho vermelho”, mas também à paródia do próprio teatro infantil e à relação dos adultos com as crianças.

A Fada pergunta para a criança sobre papai, mamãe, comenta sobre as balas que arrancam as obturações, fala várias vezes no diminutivo porque está conversando com Chapeuzinho, uma criança, etc…

Através de uma crítica irônica, vão sendo expostos vários aspectos equivocados que são comumente apresentados no panorama do teatro infantil, conseqüentes da maneira também equivocada que os adultos insistem em se relacionar com as crianças.

Penso, inclusive, que a paródia mais importante presente nesta peça consiste na crítica ao teatro infantil. Esta dramaturgia explicita em drama todos os equívocos verificados por Pupo na década de 70 (54), e que infelizmente ainda são hoje apontados por vários críticos e dramaturgos citados, como erros inadmissíveis. (55)

Lasanha e Ravioli passam por todas as dificuldades presentes no processo de criação artística, e também por todas as dúvidas e erros possíveis de acontecer com os artistas que trabalham com crianças.

Já sabemos que é preciso evitar o didatismo na arte para crianças e que também caso elas não entendam tudo que está sendo dito, não haverá problemas, porque nós adultos também não entendemos tudo. Caso a dramaturgia/ espetáculo tenha algo interessante para falar a esta criança, numa forma correspondente ao seu próprio universo, a criança terá fruição estética. Cada um, criança, jovem ou adulto, apreciará o espetáculo teatral na sua maneira de apreender a obra. Mas mesmo assim, os artistas quando criam, se deparam com esta dúvida, apontada anteriormente.

Lasanha e Ravioli abusam, no melhor sentido, de sua falta de compromisso como palhaços, e assim, vão apontando ironicamente, e de certa forma exageradamente, todas as curiosidades, prazeres, dores e enganos, presentes no fazer teatral, para crianças e para todos.

No “Dicionário de Teatro Brasileiro”, encontramos esta frase sobre a paródia no teatro: “é a transposição de um texto tomado como modelo, já escrito e conhecido, manipulado e submetido a um formato crítico”. (56)

Reitero que nesta peça, a mais importante paródia consiste no formato crítico do ainda frágil panorama do teatro infantil (tanto na dramaturgia como na encenação). Este é um dos legados de Lasanha e Ravioli in Casa: transformar em teatro, obra artística, a reflexão crítica teatral, incluindo nosso próprio desconhecimento em lidar com a criança.

Ressalto mais um aspecto importante na relação entre paródia e teatralidade. Pavis, em seu “Dicionário de Teatro”, considera a paródia um gênero independente e uma técnica que evidencia a teatralidade porque mostra o processo do fazer artístico. O autor escreve:

No teatro, ela se traduzirá num resgate de teatralidade e num rompimento da ilusão através de uma insistência grande demais nas marcas do jogo teatral (…). Como a ironia, a paródia talvez seja um princípio estrutural próprio da obra dramática: desde que a encenação mostre um pouco de seus ‘cordéis’e subordine a comunicação interna (da cena) à comunicação externa (entre palco e plateia). (57)

Como já foi mostrado, Lasanha e Ravioli in Casa é um texto essencialmente teatral não somente por uma fundamental subordinação da palavra à ação, (com seus diálogos em perfeita sintonia com esta ação), mas também, pela sempre presente ludicidade, além do caráter elucidado por Pavis.

Com relação ao último aspecto, esta dramaturgia mostra deliberadamente os ‘cordéis’ teatrais, visto que a própria trama centrada num processo de criação teatral já favorece isto. A comunicação com a platéia é sublinhada como um traço marcante pelos mesmos fatores, além de haver no texto referências com o mundo atual, fortalecendo esta comunicação.

Penso ser importante frisar o fato de que a obra dialoga com o nosso cotidiano sem nenhum caráter apelativo. As referências vêm no decorrer da escrita de forma natural, sem sobrepujar a trama principal.

Cito aqui um trecho para ilustração dos fatores acima analisados:

Entra Lasanha. Ela fala com Ravioli que está atrás do biombo.Lasanha– Ô Ravioli… Eu vou te dizer um negócio… eu vou te dar um toque… eu acho…assim, né? Que nesse momento da história, que o Lobo está quase chegando na casa da vovozinha… porque eu já entendi que eu vou fazer a vovozinha, já que você está fazendo o Lobo Mau, né? Pois é… eu acho que você devia fazer o lobo assim… mais delicado. Não tem a menor necessidade do Lobo ser assim. Todo mundo já entendeu que ele é mau. O próprio nome já diz: Lobo mau.Entra Ravioli, se arrumando de Lobo Mau.Ravioli– Lasanha… Eu acho melhor você ir se arrumando logo… (Lasanha está perto da poltrona, pega a caixa com o figurino da Avó e durantetoda a cena a seguir ela se arruma).Lasanha– Você acha melhor, é?Ravioli– Ele já está chegando… Se eu fosse você, eu me vestia logo de Vovozinha e dava um jeito de enganar ele. Eu ouvi dizer que este Lobo é um elemento altamente periculoso… (Ri e sai de cena, já com a capa e as luvas de Lobo mas ainda sem o focinho)Lasanha– (Enquanto acaba de se arrumar de Avó). Tá rindo, né? Da próxima vez Quem vai fazer este elemento periculoso sou eu. Não to achando a menor graça.(Já pronta de Avó porém sem tirar o nariz. A personagem será feita com o nariz de palhaço. A partir daqui, fala com voz de velhinha) Aliás, estou achando tudo uma droga! Onde é que já se viu se isto é programa de domingo? A pessoa ficar em casa à tarde, esperando um lobo chegar! Ai, eu estou nervosa! Preciso de ajuda! Vou telefonar! Vou telefonar! (Senta na poltrona e tenta telefonar) Está desligado! Vou ler o jornal pra ver se tem alguma coisa sobre isso! (pega o jornal e lê) Um Lobo solto na Gávea! (58)

Para finalizar o capítulo, faço uma reflexão acerca deste formato crítico e     irônico da paródia e sua comunicação com a criança.

Lasanha e Ravioli in Casa faz o mesmo jogo que Gianni Rodari nomeia “Errando as Histórias” (59).

Inicialmente, Rodari diz que a criança não aprecia muito o jogo de modificação das histórias. Em processo de apreensão e dominação do mundo a sua volta, elas necessitam, em geral, de uma certa repetição em suas experiências. Portanto, a mudança repentina de personagens, cenários e da ação prevista, por exemplo, pode desagradar a criança. O prazer consiste aqui no reconhecimento da história e no reviver das mesmas sensações e emoções provocadas.

Porém, o escritor faz a ressalva de que em certo momento esta repetição acabará por causar um desinteresse na criança, e aí ela estará apta para experimentar outra forma de ouvir a mesma história.

Nas próprias palavras do autor:

Em determinada altura-provavelmente quando Chapeuzinho Vermelho não tem mais nada a lhes dizer, quando estão prontas para separar-se dela como de um brinquedo velho, aceitam que da estória nasça a paródia; um pouco porque esta oficializa o desinteresse, mas também porque o ponto de vista renova o próprio interesse da estória, revive-a sobre um outro compasso. Neste jogo as crianças brincam com Chapeuzinho Vermelho e mais consigo mesmas: desafiam-se a enfrentar a liberdade sem medo, a assumir arriscada responsabilidade. (60)

Outro fator ressaltado por Rodari consiste em algo já analisado aqui (a necessidade da análise do texto inicial), visto que a paródia é capaz de funcionar em alguns pontos e em outros não. Para se chegar à descoberta destes pontos, Rodari explica que mais que a lógica, é necessária a intuição e a experimentação prática.

Vê-se que estes princípios colocados pelo autor, como a intuição e a ação prática, são inerentes a qualquer experimentação artística, envolvendo crianças ou não. Percebe-se também que a dramaturgia de Lasanha e Ravioli in Casa percorre este caminho, com eficácia e inteligência.

Rodari afirma ainda que esta reinvenção fabulística permite um diálogo maior entre o mundo dito real e o mundo dito imaginário, favorecendo a flexibilidade nos conceitos e nas vivências.

Lasanha e Ravioli in Casa é capaz de fabular com uma criança, um jovem ou adulto, pois trata, nada mais, nada menos, da gratuidade do prazer liberto e das possibilidades de brincar e criar.

Notas de Rodapé

28. Os segundos títulos das peças são todos dados por mim.
29. Castro, O elogio da bobagem, Rio de Janeiro: Família Bastos, 2005.
30. Barroso, Biel e Falcão, Lasanha e Ravioli in casa, p. 8.
31. Ibid, p 10-11.
32. Ibid, p.2-5.
33. Novarina, Valère. Diante da palavra, RJ: 7 letras, 2003, p. 46.
34. Ibid, p. 1-2.
35. Alice Viveiros de Castro, O elogio da bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. RJ: Família Bastos, 2005.
36. Ibid., p.38.
37. Em revista do CBTIJ intitulada Sensibilidade e Imaginação, dramaturgia e educação, p. 11. RJ: 2005.
38. Ibidem, p.32.
39. Castro, O elogio da bobagem, p. 257
40. Op.Cit, p. 9.
41. Kofman, A infância da arte, p. 134.
42. Slade, O jogo dramático infantil. SP: Summus, 1978.
43. Op.cit., p.14-15.
44. Monteiro. Jogos dramáticos. SP: Ágora, 1984.
45. Huizinga apud Forneaut, ibidem, introdução, s/p.
46. Artigo da autora: Fronteiras etárias: da demarcação à abertura em O teatro dito infantil, de Maria Helena Kühner.
47. Jr. Simões, José Geraldo, O pensamento vivo de Chaplin, p. 70.
48. Pavis, Dicionário de teatro, São Paulo: Perspectiva, 2006.
49. Ibidem, p. 279.
50. Sant´ Anna. Paródia, Paráfrase e Cia. SP: Ática, 1985.
51. Ibidem, p. 31.
52. Op. cit.
53. Op. cit., p. 19-20.
54. Pupo, Maria Lucia de Souza Barros. No reino da desigualdade: teatro infantil nos anos 70em São Paulo. S.P: Perspectiva. Estes equívocos propostos por Pupo são bem destacados no artigo de Maia Aparecida de Souza, Teatro infantil ou teatro para crianças?
55. Ver o artigo de Kühner, Dramaturgia – hoje e sempre, além do já mencionado artigo de Maria Aparecida de Souza.
56. Guinsburg. Dicionário do teatro brasileiro. SP: Perspectiva, 2006, p.231.
57. Op.cit., p. 27.
58. Op. cit., p. 27-28.
59. Ver A gramática da fantasia, de Gianni Rodari, São Paulo: Summus, 1982, p. 51
60. Ibidem, p. 51