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Te-atrium = lugar de ver. Mas, como expressar / fazer ver nosso complexo mundo contemporâneo? A pergunta parece permear todos os 31 espetáculos vistos no 7º FENATIB, remetendo a uma questão que ai se mostrou central: a falta, ou a busca de uma dramaturgia.

A falta de uma dramaturgia, no caso daqueles que, na ausência de respostas quanto ao que dizer contentam-se com:

– dirigir seus esforços no sentido de como dizer (como se essa dissociação fosse possível!), concentrando-se no apuro e variação de recursos técnicos de todo tipo, de efeitos visuais, sonoros, uso de formas animadas, figurinos, adereços etc.etc. Resultam dai espetáculos em que se veem atores com toda uma gama de recursos lúdicos / teatrais, em termos de corpo, voz, movimento, gestual, mímica, capacidade de imitar, de caricaturar, de tornar presente urn personagem com uma bem-humorada visão critica, de introduzir uma situação curiosa e interessante, de jogar com o improviso etc. etc., mas cujo trabalho se esgota ou se dilui progressivamente por não conseguir se equilibrar no fio de urn roteiro pobre, em que a estrutura cênica é primaria, esquemática e repetitiva, em que a situação dramática não evolui, em que a fabulação (se, ou quando existe) é débil e insuficiente, os conflitos inexistem, a ação dramática, pouco ou nada desenvolvida, e substituída pela ênfase em diálogos tolos, cheios de gags, piadas, brincadeiras supostamente engraçadas, falas em que o lugar-comum é a tônica e os clichês se repetem, assim como se repete na cena o uso de recursos fáceis, macaquices e gracinhas para tentar prender o publico – que, muitas vezes, responde com dispersão e desinteresse crescentes.

– Ou urn espetáculo em que se tenta, sem conseguir, compensar a pobreza de conteúdo e a falta de uma ação dramática com uma movimentação cênica – que não é em absoluto a mesma coisa – e da qual ficam igualmente excluídos o jogo de relações, contradições, revelações, peripécias e todos os demais elementos que compõem a sequencia de acontecimentos cênicos produzidos em função da ação de personagens. Ação que, obviamente, também se dilui ou se esvazia se esses personagens são estereotipados, sem consistência, indefinidos, se a mudança de cenas tem uma pontuação deficiente, equivoca ou gratuita, sem nada que possa provocar a imaginação, enriquecer a percepção e a sensibilidade do espectador infantil ou juvenil, ou estimular seu senso critico e sua reflexão.

– A falta de uma dramaturgia também se evidencia no caso – que infelizmente ainda existe – de textos que insistem em manter uma postura doutrinaria ou moralista, em que uma trama ou narrativa banal, sem urn mínimo de inventividade e de originalidade, é mero pretexto para uma “mensagem” ou “moral da historia”, em que a relação adulto / crianças é ainda uma relação autoritária, vertical, manipuladora, que as trata como “massa de manobra” oca e moldável, a ser normatizada e dirigida. O que é evidente no caso de espetáculos que provocam ou instigam a plateia infantil a uma gritaria de macacos de auditório de TV, ou de animação de festinhas de aniversario – como no pior teatro de cunho marcado ou exclusivamente comercial, que vê nas crianças apenas uma clientela mercadologicamente compensadora, na qual acham que vale a pena “investir”, até com uma produção dispendiosa ou visualmente atraente.

– Menos grave, mas mesmo assim ainda merecedora de atenção, a elaboração e/ou domínio da expressão: assim como são equivocados urn tati-bitati e/ou trejeitos, gritinhos e pulinhos supostamente infantis, é falha paralela também seu avesso, ou seja, o uso de termos, expressões, ou até ideias, pensamentos e visão que fazem parte da experiência adulta – o que se revelou frequente no caso de adaptações de contos / narrativas já existentes, que estavam previamente direcionados pelos autores a urn publico adulto.

A busca de uma (nova) dramaturgia também se fez sentir naqueles que, dizendo-se ou sentindo-se compro-metidos com uma indefinida “contemporaneidade”, testam suas tentativas:

– na renovação / inovação temática. Como dado mais auspicioso, no caso, urn humanizador resgate de elementos esquecidos ou desqualificados por esta racionalista civilização ocidental crista: o imaginário, a fantasia, a afetividade, o lirismo e um humor lúdico e critico, muito próximo, por vezes, da visão crítico-cômico da cultura popular. Alias, repetiu-se neste ano um fato já registrado no 6º FENATIB: a ligação com a cultura popular, na pesquisa / adaptação de narrativas de diferentes raízes (indígenas, ibéricas, afro); ou no apelo ao folclórico, tornado como ponto de partida e com resultados tanto mais felizes quanto mais Ihe foram acrescentados elementos novos e criativos capazes de fazer emergir sua teatralidade; ou de uma escrita cênica pautada nos folguedos populares e incorporando, por vezes, de forma inventiva e inovadora, seu humor, sua inversão de foco / visão da realidade, sua síntese narrativa – mesmo que, às vezes, correndo o risco de assim reproduzir também os preconceitos de uma visão tradicional e conservadora.

– no uso da narrativa e resgate da palavra em sua oralidade e valor expressivo. Não cabe aqui a discussão da intertextualidade, ou do duplo, ou do falar simultaneamente em 1ª e 3ª pessoa que marcam a literatura (e não só dramática) contemporânea. Mas a inserção de traços narrativos, ou o trabalho com a narrativa oral cênica, foi uma das tendências mais marcantes ou um dos aspectos mais visíveis e constantes do Festival. O melhor ou o pior resultado, no caso, ficou visivelmente ligado à capacidade de entender o que é uma linha de ação dramática e o que são os aspectos narrativos da ação, ou seja, de não abandonar os recursos efetivamente dramáticos e cênicos. Do que vimos, quando o projeto de encenação se sobrepôs ao texto, em vez de a ele se in-corpo-rar organicamente, a dissociação entre ambos acabou desvalorizando o texto – que assim perde seu potencial poético, mítico, mágico, não favorecendo sequer a encenação, ou seja, com prejuízo para ambos. O mesmo se dando no caso contrario, quando se enfatizou uma oralidade centralizadora, “literalizando” toda a estrutura e esquecendo que teatro e re-present-ação, isto em uma ação que se faz presença (no ator / personagem) e presente (no tempo) e não simples “ilustração”, com a figura do ator, de cenas “contadas” ou descritas.

– na incorporação / fusão de diferentes linguagens, ora gerando um espetáculo multimídia (com projeções, vídeos, desenho animado); ou com inserção de técnicas de animação (bonecos /atores), de técnicas circenses; ou com a dança, a musica, a linguagem gestual /corporal como elementos ativos da expressão; ou fazendo do ator um performer, centrado em sua presença física e autobiograficamente estabelecendo uma relação pessoal e direta com os objetos cênicos e a situação em foco.

Mas, por tudo que vimos, uma conclusão se tornou possível e necessária: os melhores espetáculos foram aqueles em que:

– havia um bom texto, com uma carpintaria geradora de boas possibilidades cênicas;
– com um adequado domínio da língua – não só em termos de correção ou da adequação à criança, mas de criatividade da expressão:
– com uma temática sugestiva, não só enquanto ideia ou assunto, mas na própria forma de seu desenvolvimento, deram a encenadores e interpretes um alicerce sólido para um desses trabalhos que e um presente para o espectador de todas as idades.

Enfim, o FENATIB continua sendo uma excelente panorâmica da produção para a criança e o jovem. Se o resultado final não apresentou um todo acabado e homogêneo, e sim irregular e díspar, nem por isso essa diversidade deixa de ser significativa do revelar uma viva inquietação – sempre mais saudável que a apatia, o vale-tudo, ou o massificador comercialismo barato ainda presentes em nossos palcos.

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Maria Helena Kühner
Autora Teatral, Pesquisadora e Ensaísta, com 26 livros publicados. Foi Membro de Direção, Consultoria ou Assessoria de diferentes órgãos de cultura do Rio de Janeiro

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 8º e 9º  Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2004 e 2005)