Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 22.07.2019

Fotos: Victor Iemini

Desbotou, produção da Cia. da Revista, é espetáculo obrigatório, por falar das ameaças à arte e ao livre arbítrio – mas a competência aflora mais do que a emoção

Primeiro foi-se o vermelho, caiu gritando “Perigo!”. Depois perdeu seu abrigo o pobre do azul, coitado. E não deixaram de lado nem o roxo nem o rosa. O preto caiu sem rima, o branco tombou sem prosa. Rapou-se da trança à franja a cabeça do laranja. Desceu sem dó o cutelo sobre o verde e o amarelo. E quando findou a dança, das cores nem mais lembrança. Só se ouvia a voz do homem que a todos tinha enganado. E essa voz gritou: “Silêncio!” E essa voz gritou: “Proíbo!” E essa voz gritou: “Não anda! Pois aqui sou eu quem manda!”

É gratificante ver espetáculos para crianças tão bem cuidados, inteligentemente pensados, eficientemente construídos, passo a passo. Assim é Desbotou, inspirado no conto Quando As Cores Foram Proibidas, da alemã Monika Feth, e, com dramaturgia de Marcos Barbosa. De cara, já saio dizendo que o melhor de tudo é o texto, todo feito em versos. Como é difícil escrever assim e não deixar que as rimas pobres tomem conta ou que pareça que estão ‘declamando’ letra de música… O autor se esmerou na prosa poética, na cadência suave do discurso, na fluência dos diálogos. Ainda assim, eu esperava mais poesia ainda… Sabe quando você gosta tanto e, por isso, ainda quer mais?

Acho que a fábula escolhida está muito bem contada e desenvolvida, mas o tema é candente e atual e, por isso, fui com expectativas, esperando que a montagem tivesse optado por um dos seguintes caminhos: ou a contundência pulsante e militante, capaz de provocar catarse imediata na plateia e reações aquecidas, ou, ao contrário, valorizar mais as metáforas poéticas, suavizando a mensagem, mas tornando-a forte pela via da sutileza e do encantamento. Logo percebemos que a segunda opção foi a escolhida, mas que talvez pudesse ter ido mais a fundo ainda em sua potência lírica, para emocionar desbragadamente, sem pudores.

Há poesia, há prosa poética, como eu disse, mas não senti a emoção da plateia na sessão em que estive. Sabe quando tudo está certo, lindo, esbanjando qualidades, mas fica faltando aquele excesso que transborda, aquele ‘golpe baixo’ que nos tira o chão? Pois é isso o que tenho a dizer de Desbotou. Puxa, como eles sabem fazer teatro, mas queria ter saído de lá com o coração rasgado, descompassado… Competência inegável, visível, constante, mas deixando a impressão de controle demais de tudo. A direção de Adriano Merlini e Luiza Torres talvez tenha ‘pesado’ um pouco além do esperado, querendo acertar o tempo todo (e, de fato, acerta muito!), mas sem deixar espaço para o inusitado que arrebata, o imponderável do teatro. Pronto, falei.

Veja como a trama diz muito sobre o Brasil de hoje: “Um país é governado por um tirano que silencia emoções e pensamentos ao confiscar as cores. Nesse país cinza, vemos a protagonista Catarina, uma menina, testemunhar o milagre do nascimento de uma flor colorida e, a partir desse fato, reunir sua avó e todo o povo da localidade contra o banimento das cores.”   A metáfora do roubo das cores (da cultura, das artes, dos sentimentos, da vida, enfim) é tiro certeiro.

Gosto muito da atriz Priscila Esteves, que faz a menina, seus trejeitos, seu corpo que fala, suas expressões faciais de criança inquieta e irrequieta. Apenas ressalvo que o tom infantil de voz às vezes beira o caricato desnecessário, mas não é o tempo todo, felizmente. A avó, defendida por Gisele Valeri, tem essa questão da voz resolvida de forma mais homogeneizada. Sua potência vocal é impressionante. Só questiono um pouco a virada muito abrupta da personagem (avó), que, para mim, ficou sem explicação, sem clareza da motivação para a mudança. No início, ela é uma avó tão preocupada com a neta, tão com medo do tirano, tão receosa dos perigos do déspota, fazendo tantas recomendações e tantas restrições ao comportamento da neta combativa… De repente, depois da visita ameaçadora do tirano à sua casa, ela passa para o lado da menina e vira uma avó militante e corajosa. É brusco. A dramaturgia poderia ter pintado melhor as cores dessa transformação tão importante.

Os dois vilões, o tirano Bruto (Paulo Vasconcelos) e seu ajudante (Bruno Lourenço), são ótimos, clownescos, afetados, exagerados, trapalhões. Cumprem a contento o papel de antagonistas das peças de censura livre. De alguma forma, essa dupla em cena homenageia tantas outras duplas de vilões divertidos que o mundo já aplaudiu. Parabéns.

Dois músicos ao vivo (Betinho Sodré e Gabriel Hernandes) também aprontam muito e mandam bem – outro acerto da peça. A cena do caldeirão, com diversos ritmos musicais (frevo, samba, bossa nova, funk), tem um viço incrível e raro, graças à trilha ao vivo. A cenografia de ‘caixotes’ é eficiente e compacta (Álvaro Barcellos e Luciano Bussab), instigando o jogo de imaginação para marcar a mudança de ‘arenas’: a sala da casa da avó, o quarto da menina, o palanque do tirano, a praça de luta. O truque cenográfico para o nascimento de uma flor no palco é muito bem feito. Por sua vez, os figurinos de Daniel Infantini dão seu recado com primor, marcando muito bem a mudança do cinza desbotado para o colorido despudorado dos trajes finais, com destaque para a rica sombrinha (guarda-chuva), repleta de apliques encantadores.

Recado final para pais e educadores em geral: nossas crianças precisam de peças como Desbotou. Agendem-se, programem-se. As escolas só terão a ganhar se levarem seus alunos à sede da Cia. da Revista. O Brasil de amanhã depende de que plantemos hoje a semente da democracia no coração dos estudantes.

Serviço

Local: Espaço Cia da Revista
Endereço: Alameda Nothmann, 1.135, Santa Cecília, São Paulo
Telefone: (11) 3791-5200
Capacidade: 82 lugares
Quando: Sábados e domingos, às 16h
Duração: 50 minutos
Classificação etária: Livre
Ingressos: R$ 20 (inteira), R$ 10 (meia) e R$ 5 (moradores da região, com apresentação de comprovante de residência). Ou: R$ 5 – ingressos solidários: para quem doar um agasalho ou cobertor em bom estado.
Temporada: 13 de julho a 18 de agosto de 2019