Os Atores de Laura exploram o humor cruel de Nelson Rodrigues. Foto Antonio Lacerda


Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 1996

 

Barra

Ousada aventura teatral 

A paixão é antiga. Quando encenaram Cartão de Embarque, em 1994, os Atores de Laura, companhia que promove uma espécie de festival de seu repertório na Casa de Cultura Laura Alvim, com os espetáculos. A Casa Bem AssombradaO Julgamento e Decote, já buscava pôr em cena, mesmo que intuitivamente, algo do universo rodrigueano. A peça, ambientada na época atual, tinha na redação de um jornal uma pequena homenagem ao autor. Com anacrônicas máquinas de escrever e muita fumaça de ansiosos fumantes, estava em cena uma redação imaginária, onde certamente Nelson se sentiria muito à vontade. Em Decote, a peça atual, eles foram mais longe.

Mergulhados na obra e sob a orientação de Bruno Lara Resende, que desvendou minuciosamente para a companhia o psicologismo dos personagens de Nelson Rodrigues, os Atores de Laura reverenciam e pedem passagem ao autor, criando para Decote nove esquetes impregnados de tipos e situações muito característicos. Depois de muito estudo, foram ao palco para as improvisações. De lá partiram para o texto escrito, e depois novamente para o palco. O trabalho destes atores em constante exercício de sua arte tem surpreendente resultado.

Partindo da ideia de que os personagens rodrigueano levam suas emoções as últimas consequências e daí vem sua tragicidade ou humor cruel, a companhia cria um espetáculo de situações com tipos bem marcados. Assim, estão em cena, mediados pelas partidas de sinuca e a expectativa da final do campeonato de futebol – certamente um Fla-Flu – histórias curtas de final tragicômico como a da irmã bonita que convence a irmã feia se matar porque “toda mulher morta é linda”, o marido que tem certeza que é traído, porque “toda mulher trai”, o adúltero arrependido, “que só funciona quando têm amantes” e outras preciosidades do cotidiano imaginado pelo escritor. Todos sem salvação.

Seguindo a estética desse universo, Daniel Herz e Susanna Krueger dirigem o espetáculo investindo nesse humor cruel sem restrições. Para cada final da ação entram no palco os enfermeiros e a padiola para recolher os mortos. Dividindo a cena em foco principal da historia encenada e em grupos de contraponto á ação, Daniel e Susanna criam um espetáculo harmônico de cenas bem interligadas, sem que com isso desprezem a performance isolada do ator. Uma visão diferente dos diretores de grandes grupos que costumam, ou costumavam dizer que “ator é cenário”. Na companhia Atores de Laura, ator ainda é o grande motivo de encenação.

Decote, peça premiadíssima em sua estreia em 1997, volta oportunamente ao palco, para rever amigos – o grupo tem um certo público cativo – e para conquistar novos espectadores. Mesmo que o tema fuja da fórmula usada no palco para adolescentes (primeiro namorado, primeira transa, primeiro baseado) e que naturalmente o jovem elenco desconheça algumas relíquias dos anos 50 e 60 – A Grande Resenha Facit, programa de TV obrigatório para fãs do futebol da época, é só uma delas – o grupo consegue manter o mesmo diálogo afiado com sua plateia. Mais do que uma peça, Decote tem a marca da ousadia da companhia, que sem repetir receitas, prefere se arriscar sempre numa nova aventura teatral. Gol de placa dos Atores de Laura.

Cotação: 3 estrelas (Ótimo)