Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 24.07.1975

 

Barra

Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo

Na sala Corpo-Som, do MAM, criou-se o momento mágico. A atmosfera estabelecida pelo espetáculo é toda magia e tem sempre, para alimentá-la, uma sucessão de ricos impactos visuais e sonoros. A montagem é um derramar de criatividade e imaginação, seja nos riquíssimos figurinos, ponto alto de todos os trabalhos desenvolvidos por Ilo, nesta encenação, onde ideia e realização realmente se complementam; seja nos bonecos e acessórios, quase trezentos no total; seja no uso do espaço cênico, apesar de que, talvez, a encenação ficasse mais envolvente se fosse utilizada a sugestão do próprio texto: “Tudo é a tenda mágica, palco e plateia, tudo”; seja na criação de imagens onde luz, cor, som e movimentos bombardeiam a sensibilidade do espectador (a troca de lugar da tenda; as caminhadas pelos labirintos; o reaparecimento de João João; a corte dos países do Sim e do Não; o voo das pombas brancas).

A poesia está presente em toda a encenação. Mas de uma forma excessiva e dispersa. O texto colabora decisivamente para isso: é longo, confuso, repetitivo. A trama é fraca e, enquanto no primeiro ato a peça se desenvolve através de uma dramaturgia solta, aberta, libertada de padrões e cânones, no segundo ato, o texto se organiza com base num esquema anacrônico de contar em vez de mostrar, de ser decorativo em vez de expressivo. Momento típico é aquele em que os três meninos param o espetáculo para manifestar suas dúvidas: “E agora, como é que o público vai saber o que aconteceu?” “Ah, já sei: Cada um conta o que aconteceu consigo, aí o público fica sabendo”. “Ah, é, então eu conto”. “Não conta ainda não” – etc etc.

Porém, o texto de Ilo também tem suas qualidades, as principais delas sendo sua constante magia e sua beleza poética, propondo a imaginação e a fantasia às crianças. O texto se explica bem através de duas falas de diferentes personagens: “Não queríamos que o Homenzinho destruísse a vontade que temos de ver tudo o que é novo e diferente.” – este, seu aspecto positivo. O aspecto negativo está na fala autocrítica de Ibeji: “Este espetáculo (texto) tem um defeito: é muito complicado”.

A direção de Ilo fica prejudicada pelas suas inúmeras atividades: ao ser autor, diretor, figurinista, cenógrafo, criador de bonecos e (principalmente) ator, ele perdeu o senso de dosagem. A montagem é repetitiva, demasiadamente longa. Um diretor, vendo o espetáculo de fora, se conscientizaria de que há muitas cenas que deveriam ser jogadas fora. Apesar de serem belas.

Uma das qualidades que se exige de um diretor é exatamente essa – a de abrir mão de momentos maravilhosos, mas que não se harmonizam à essência de um texto ou às necessidades características de um espetáculo.

O elenco funciona muito bem dentro da proposta coletiva, sendo comunicativo e bastante musical. O destaque maior fica com Pedro Veras. Seu Homenzinho, numa linha puxada para o caricatural, apresenta riqueza de tempo, ritmo, tons, postura, voz. Destacam-se, ainda, Sílvia Heller (Rainhas), Sílvia Aderne (Velha) e a imagem de suavidade de Regina Linhares. E, como destaque negativo do elenco está, por mais paradoxal que seja, a figura mais expressiva visualmente, que é a de Ilo Krugli. Sua interpretação do Mágico é muito lerda, com pouca força expressiva e é o grande responsável pelo ritmo arrastado da encenação. Um outro ator traria duas grandes vantagens: Ilo, como diretor, de fora, poderia sentir os defeitos (sanáveis) da montagem; e um outro intérprete, menos estático, com mais força dramática, determinaria uma outra dinâmica, melhorando o ritmo e dando cores novas à figura do Mágico. Ilo faz um Mágico com uma composição muito pobre: mostra-se todo já na primeira cena e, até o final, só se repete.

Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo é uma encenação onde a  beleza e a sempre renovada riqueza da montagem conseguem compensar as falhas do texto um tanto longo e confuso. É um espetáculo belíssimo, excepcionalmente criativo e cheio de climas mágicos, no que é auxiliado pelas músicas, sempre envolventes, de Beto Coimbra e Caíque Botkay.

As duas versões de um mesmo texto

Para todas as pessoas interessadas no fenômeno teatral experiência do Grupo Ventoforte foi aguardada com expectativa e pode-se afirmar, agora, que valeu a pena esperar – apesar de todos os defeitos assinalados, o resultado é confortante. Já se disse que “o espetáculo infantil é muito adulto; e, o adulto, demasiadamente infantil”. Não concordo. A magia e o deslumbramento sonoro-visual do espetáculo infantil têm sustentado a concentração das crianças  (que reclamam, apenas porque a encenação é longa demais); e as modificações criadas para a plateia adulta permitiram que saltassem do texto as entrelinhas, as segundas in tenções, transformando a peça não apenas num acontecimento mágico, mas num momento de análise crítica do mundo (se tal análise é esquemática demais, o problema está na fraqueza do texto e não no enfoque para uma plateia adulta). As diferenças básicas são as seguintes:

Na peça adulta, a história do Gigante Azul é contada no epílogo, assumindo uma força crítica praticamente inexistente no prólogo da infantil;

O texto da peça infantil tem uma estrutura mais linear;

Para os adultos, há um espetáculo extra – o Teatro Mágico Pedagógico, onde bonecos discorrem sobre as inúmeras formas de verdade: nua, crua, nova, meia. Apesar de ser muito interessante, este “Teatro” faz com que o espetáculo disperse ainda mais.

Há uma modificação no trabalho de três intérpretes: Sílvia Heller assume a Morte, fazendo com que sua interpretação cresça bastante – apesar de ficar uma hora arranhando o chão como os anacrônicos teatros de vanguarda; Pedro Veras, pelo contrário, ao mudar a linha de seu trabalho, sai prejudicado – o ator não encontrou uma chave para seu personagem. Querendo fazê-lo mais violento e exaltado, Pedro Veras não conseguiu defini-lo bem e atua de um modo apenas clichê; e, finalmente, Ilo Krugli, mais expressivo para os adultos que para as crianças: seu tom passa a ser mais sutil, mais irônico, mais comunicativo – apesar de permanecer com um ritmo demasiadamente lento.

Na peça infantil, o personagem João João morre, mas a magia das mágicas ressuscita-o (“Achamos que não seria bom matar um personagem com quem a criança está se identificando”). Na peça adulta, João João morre mesmo (“No adulto podemos jogar essa responsabilidade. Ele também tem culpa. É ele que faz a guerra”).

O texto, para as crianças, é muito confuso. E, ao contrário para os adultos, ele tem momentos de repisada obviedade. Ao final, quando a plateia adulta já entendeu tudo, o texto ainda se acha na obrigação de dizer: ”Olha, isso aqui quer dizer isso! Aquilo ali quer dizer aquilo! A Metade do Caminho é o País dos Medíocres!, etc. etc.

Nessas diferenças – algumas para melhor, outras para pior – estão a base da pesquisa do Grupo Ventoforte. Mas, numa experiência tão fascinante como essa (e principalmente, com um espetáculo tão fascinante como este) interessa pouco o que diz o crítico. Mais importante é ir lá. E conferir. E concluir por si. A importância do trabalho do crítico estar em chamar a atenção para o fato. E recomendá-lo.