Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 21.05.1977

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D. Quixote de la Mancha

O SESC da Tijuca (Rua Barão de Mesquita, 539) inicia suas atividades de teatro infantil com um musical alegre, gostoso e facilmente comunicativo, Dom Quixote de la Mancha, adaptação de Alexandre Marques, da obra-prima de Cervantes, recebeu uma expressiva tradução cênica com o trabalho de Luiz Mendonça – diretor que prossegue em sua linha por um teatro de cunho popular. A música de J. Lins auxilia bastante nesse sentido.

Enquanto pelo mundo inteiro cavaleiros lutam contra os terroríficos dragões, eu me contento em ficar em casa lendo novelas de aventuras. (…) Os livros são muito bons até chegar à hora de agir. (…) Agora é preciso sair para o mundo, cortar as amarras e lançar-se ao vento em busca de aventuras. Mundo, aqui vou eu. – (D. Quixote)

E na mistura entre uma posição disponível e dinâmica perante a vida e uma linguagem teatral que propõe uma brincadeira sem distanciamentos, que o espetáculo consegue se transformar num trabalho coerente e harmônico. Os figurinos de Laerte Thomé têm vital importância nas imagens que permanecem na mente do público após o espetáculo. Essa significação visual poderia ter seu correspondente no cério de Eduardo Paez. Entretanto, a cenografia é apenas correta sem ampliar o significado e as potencialidades do texto. Da mesma forma, a coreografia de Renato Castelo é muito agradável, mas obedece sempre a um mesmo esquema: dá um bom dinamismo à cena, mas não explora possibilidades mais enriquecedoras de utilização do espaço. Os figurinos compensam um pouco essas falhas, na medida em que, além de bonitos, têm uma certa comicidade, colorem bem as cenas e auxiliam os atores na postura pedida pelos respectivos personagens.

Mendonça mantém em todo o trabalho um clima muito a vontade e isso ficará ainda mais perceptível quando Elba Ramalho se soltar mais, tendo menos preocupação em acertar as marcas. Certamente daqui a alguns espetáculos Elba já estará acrescentando elementos seus dentro das marcas básicas e se permitindo um trabalho mais descontraído e de melhores resultados. Sendo uma atriz que pode explorar bastante o papel de elemento de ligação entre as cenas – por suas características individuais – seu crescimento servirá automaticamente para ampliar ainda mais a comunicação que o espetáculo já vem tendo com o público. De qualquer forma, seu trabalho é muito bom e ela se sente bem cantando e dançando. Apenas fica a impressão de que está rendendo menos do que pode.

Mas esse clima proposto pela direção de Mendonça é muito bem captado por todo o elenco. No dia em que vi o espetáculo o maior ibope entre as crianças era obtido por Alby Ramos por seu engraçado Sancho pança. Mas Eliene Narducci é também uma presença muito viva e determina sempre a manutenção do ritmo do espetáculo. Paulão, como D. Quixote, é o que menos agrada. Como personagem-título e como o elemento que leva a ação, Paulão não poderia, nunca, ser o menos expressivo do elenco. Falta aquela disposição interior de enfrentar o mundo, falta a garra e um certo tom de loucura necessários ao personagem. Completando o elenco, Fernando Wellington tem uma ponta com participação apenas funcional.

Levando-se em consideração que o autor partiu de um texto como D. Quixote o resultado final é um pouco frustrante em termos de adaptação. A peça se desenvolve bem, com bom ritmo e bons diálogos, mas deixa de lado grande parte da fantasia do original de Cervantes. E Alexandre Marques escorrega em certas visões preconceituosas quando, defendendo o valor do sonho, afirma que o “sonhando, se for moreno, louro será e com um pouco de boa vontade transforma-se a camponesa em princesa de verdade”. Fica subentendido que ser louro é o ideal do moreno e que uma princesa é sempre melhor que uma camponesa. Essa frase choca-se, inclusive, com a própria direção de Mendonça que, na tentativa de demolir preconceitos, escolhe exatamente um ator negro para fazer o papel de D. Quixote.

D. Quixote de la Mancha, de Alexandre Marques, com direção de Luís Mendonça é um espetáculo muito agradável, com um acabamento de cunho profissional e que diverte as crianças sem dar aulas, sem adotar atitudes repressoras e propondo uma vida ativa. Para mim, é esse um dos caminhos do teatro infantil.