Uma Cidade Cenográfica surgiu nos jardins do Catete: pano de fundo para aventuras do Zorro. Foto: Bruno Veiga/Strana

Karen Acioly (no centro): infância de Villa-Lobos em cena. Foto: Bruno Veiga/Strana

Matéria publicada na Revista Veja Rio
Por Lívia de Almeida – Rio de Janeiro – 04.06.1997

Tim Rescala e Karen Acioly revivem parceria em A Orquestra de Sonhos: ópera infanto-juvenil. Foto: Arthur Cavalieri/Strana

Papagueno fala sobre pais separados: tema sério tratado com sensibilidade. Foto: Ricardo Pasanello/Strana

Amigas x Amigas: musical de sapateado despretensioso. Foto: Ricardo Pasanello/Strana

Topetudo: palhaços que fazem rir toda a família. Foto: Cristina Granato

A Bela Adormecida: revisão esperta do clássico. Foto: Bruno Veiga/Strana

Os Impagáveis: ladrões de bonecas cheios de prêmios. Foto: Cristiana Miranda

 

Criatividade e Ousadia Fazem o Espetáculo

Imagine ir ao teatro para ver uma peça sobre Heitor Villa-Lobos, com trilha sonora que inclui trechos de A Sagração da Primavera, de Stravinsky, e um elenco capaz de dar conta das acrobacias vocais exigidas pelas partituras. Se o espectador prefere temáticas contemporâneas, pode acompanhar as dificuldades dos filhos de pais separados, ainda em processo de adaptação. Ou encontrar a história de um menino favelado que enfrenta uma crise familiar quando o pai desempregado abandona o lar. Todos esses bons espetáculos tratam de assuntos de gente grande, mas fazem sucesso no horário vespertino dos teatros. São destaques de uma ótima temporada para as crianças e os adultos que as escoltam, se se levar em conta ainda as excelentes montagens em cartaz desde o ano passado (veja no final da matéria). “O bom teatro é apreciado por qualquer idade. Afinal infantil não quer dizer infantilóide”, afirma a diretora Lúcia Coelho, em cartaz com Papagueno.

É injustiça chamar as peças em cartaz de teatrinho, como ainda fazem tantos pais. No Rio, bons profissionais e grupos de qualidade mantêm um trabalho voltado para a criança e o jovem que vem dando banho em muita coisa supostamente adulta. “Acho que as crianças estão cada vez mais espertas. E o teatro infantil carioca está sabendo acompanhar essa nova cara do público”, diz João Batista, diretor do despretensioso Amigas x Amigas, musical de sapateado em cartaz no Teatro de Arena. “Tenho tido mais prazer assistindo às peças infantis”, reforça o compositor, escritor e ator Tim Rescala. De cadeira. No ano passado, Tim, que é autor de Papagueno, fez parte do júri do Prêmio Coca-Cola de Teatro Jovem e assistiu a 52 peças. Adorou.

O público, miúdo ou não, tem endossado a avaliação. Tuhu, O Menino Villa-Lobos, que está em cartaz no Teatro Lamartine Babo, no Centro Cultural da Light, é o mais retumbante sucesso da temporada, em crítica e público. Com texto e direção de Karen Acioly, parceira de Tim no belo Pianíssimo e em A Orquestra de Sonhos, ópera infantil com estreia prevista para julho. Tuhu tem lotado o teatro em todas as sessões. O fato de ter entrada franca ajuda a encher a casa. Mas não é o único motivo. A peça conta com imaginação histórias da infância do maestro, um moleque agitado, que não conseguia enquadrar-se na escola convencional de seu tempo. “É uma fabulação, porque a biografia do Villa-Lobos está pontilhada de polêmicas. Até sua data de nascimento é discutida”, afirma Karen Acioly.

O que se vê no palco encanta e comove. Esqueça o Villa-Lobos de charuto na boca. Tuhu fala dos anos de inocência e da gênese de um gênio musical. O final apoteótico, em uma Amazônia idealizada, com índios, onça, boto cor-de-rosa e macacos, acontece ao som da Invocação em Defesa da Pátria. A direção musical de Tato Taborda incorporou à trilha sonora citações de algumas das mais conhecidas obras do maestro, como O Trenzinho do Caipira, A Prole do Bebê e as Bachianas. A voz humana é o principal instrumento em cena. Muito do charme da peça se deve ao coro formado pelas jovens alunas da professora de canto Agnes Moço. Como Chiara Santoro, que interpreta a fogosa Zildinha, a namorada mineira do compositor. Chiara, 13 anos, encara a complexa Melodia Sentimental com a desenvoltura de quem canta no chuveiro. “É uma peça que afugenta muita cantora experiente”, reconhece Agnes Moço, que interpreta a tia Fifinha.

As cenas criadas por Karen Acioly exigem precisão milimétrica do jovem elenco. Cirandas e jogos infantis acontecem rigorosamente dentro do compasso. Bruno Miguel, de 14 anos, que interpreta o personagem-título, certa vez tropeçou em cena. “Quando vi, estava sendo pisoteado pelo resto do elenco”, lembra. Apesar da juventude, Bruno já pode ser considerado um profissional tarimbado. Aos 9 anos, cantou pelo leãozinho Simba, no desenho animado O Rei Leão, dos estúdios Disney e até hoje passa boa parte do seu tempo em estúdios de dublagem. “É tão bom quanto jogar uma pelada”, afirma. Ele pode ser ouvido, por exemplo, como o adolescente Jonny Quest do seriado televisivo. No ano passado, fez o jovem Nelson Gonçalves, que crescia e era incorporado por Diogo Villela em Metralha, de Stella Miranda. Com sua voz de soprano, cantava A Volta do Boêmio. Foi quando Karen Acioly o viu pela primeira vez. O convite para participar do elenco de Tuhu coincidiu com um acontecimento marcante e irreversível: a entrada na adolescência. A voz começou a mudar, entrou naquela fase do engrossa e afina, e, pior, às vezes desafina. “Não tenho controle”, reconhece Bruno. A mudança começou ainda na época de Metralha. “De repente, algumas notas começaram a ficar muito agudas para ele. O elenco todo torcia para que tudo desse certo”, lembra o ator José Mauro Brant, que também está no elenco de Tuhu. Bruno praticamente não canta em Tuhu. De início, ficou triste, mas se conformou. “Entendi que estou em uma fase em que não posso cantar. Vou aproveitar esses dois anos para estudar teatro e música, e juntar uma bagagem”, diz, com maturidade surpreendente. “É um menino muito sério”, conta Karen Acioly. “Um dos trabalhos que tive com ele foi justamente fazer com que brincasse mais, se soltasse”.

Até chegar ao palco da Light, a vida de Tuhu não foi fácil. ”Apresentei o projeto a mais de vinte empresas. Todas recusaram”, lembra a autora e diretora. A falta de patrocínio já havia arquivado outro projeto de Karen, Amor e Circo, pesquisa sobre dramaturgia para circo, resultado de uma bolsa da Rioarte. “Em teatro, o fato de você estar produzindo em um ano não significa que vai ter trabalho no outro”. Até o início de 1998, Karen tem trabalho garantido. Além da direção da ópera A Orquestra de Sonhos, no Centro Cultural do Banco do Brasil, CCBB, ela estará encenando uma série de peças baseadas na obra infantil de Braguinha, dentro do projeto de teatro gratuito da Light.

Fora dos centros culturais, o apoio ao teatro jovem vem aumentando entre empresas privadas. Apenas uma marca de refrigerante apoia dez espetáculos no Rio e oito em São Paulo, além de premiar os melhores do ano. Para 1997, a empresa destinou verba de 1,6 milhão de reais, 400.000 a mais do que no ano passado. Com ela puderam sair do papel estreias recentes como Zorro, de Maria Clara Machado, com direção de Gaspar Filho, equipada com uma cidade cenográfica em pleno jardim do Palácio do Catete. O espetáculo tem sérios problemas de ritmo, mas é sucesso de público graças à presença do ator Leonardo Vieira e a movimentados duelos de espada. Outro projeto da série é o simpático Amigas x Amigas, de João Batista, com elenco de meninas de 10 a 12 anos, da escola de artes Catsapá.

Papagueno, de Tim Rescala, também foi aquinhoado. A peça recebeu ainda apoio logístico e financeiro do Centro Cultural Gama Filho. “Ganhar dinheiro com teatro infantil, que tem apenas duas apresentações por semana, é muito difícil. Pianíssimo foi um sucesso, e eu só passava na bilheteria para assinar cheque”, diz Tim. Papagueno trata com sensibilidade e humor um tema espinhoso: a situação da criança diante da separação dos pais. Foi escrito especialmente para a mulher de Tim, a atriz Cláudia Mele. Ela faz o papel de Júlia, uma menina inconformada com a separação. Cláudia é graciosa e sapeca em cena, e passa longe da caricatura de menininha que frequentemente é vista nos palcos. Júlia adora atrapalhar os namoros da mãe, (Alice Borges) com esperança de que ela volte a viver com o pai (Cláudio Mendes), um atarefado executivo. Papagueno, um papagaio de espuma, manipulado por Fernando Sant’Anna, é seu confidente.

A peça é valorizada pela confecção cenográfica de Cica Modesto. Em vez de reproduzir simplesmente o interior de um apartamento de classe média, ela criou no palco blocos que formam castelos de areia, uma alusão aos sonhos da menina, que são transformados no decorrer da peça. O próprio Tim se surpreendeu com o resultado. “Eu nunca teria imaginado. Fiz questão mesmo de me afastar dos ensaios para dar à diretora, Lúcia Coelho, toda a liberdade de criar em cima do texto”, conta.

Este parece ser mesmo um bom ano para Tim Rescala. Depois de emplacar Papagueno, ele conseguiu o apoio do CCBB para montar A Orquestra de Sonhos, composta graças à bolsa da Rioarte. O elenco tem dezoito músicos e cantores. “Achei que era oportuno fazer uma peça que aproximasse o público infantil da sala de concertos”, conta. Pelo elenco que selecionou, a garotada deve entrar mesmo pela porta da frente. Da orquestra de sonhos de Tim fazem parte o fagote de Aloysio Fagerlande, a trompa de Philip Doyle, o piano de Maria Teresa Madeira, que faz par romântico com o tenor Zé Rescala, isso mesmo, irmão do autor. Mas, ao contrário das orquestras convencionais, nesta os músicos falam e até representam. É uma das boas apostas da temporada. As crianças agradecem.

Sucessos Testados e Aprovados

Nem só de novidades vive a temporada. Até o final de junho continuam em cartaz quatro dos melhores espetáculos do ano passado. Não perca. (Veja Serviço na coluna para as Crianças).

A Bela Adormecida, de Maria Clara Machado. O clássico se transformou em uma fábula sobre a passagem do tempo e seus efeitos, com toques pessoais de Maria Clara Machado. Em vez de esperar 100 anos para acordar a moça, o príncipe quebra o feitiço antes do prazo. O texto foi valorizado pela direção de Cacá Mourthé, pelo lindo, e premiado, cenário de Maurício Sette e pela iluminação de Cláudio Neves. É um daqueles espetáculos que podem ser curtidos sem restrições até pelos mais miúdos.

A História de Topetudo, de Ana Barroso, Mônica Biel e Theresa Falcão. Ana e Mônica interpretam os palhaços Lazanha e Ravióli, que por sua vez contam a história do Topetudo do título se revezando entre dezoito personagens. Os figurinos de Bia Salgado são uma atração à parte. Topetudo faz rir a família inteira e foi considerado um dos cinco melhores espetáculos de 1996 pelo Troféu Mambembe. Direção de Theresa Falcão.

Os Impagáveis, de Teresa Frota. A peça colecionou uma penca de prêmios no Troféu Mambembe: ator, Marcello Caridad, excelente; coadjuvantes, Heloísa Perissé e Carlos Lofller; figurino, Teresa Frota, além de ser considerada uma das cinco melhores do ano. É uma produção caprichada, ambientada nos anos 20. Teresa usa seu humor cáustico para falar do casal de gângsteres Luxúria, ela mesmo, e Carcaça, Caridad, que rouba todas as bonecas Barbie da cidade e passa a controlar o mercado negro. Direção de Henri Pagnoncelli.

João e o Pé de Feijão, texto e direção de Marcelo Valle. Ousada adaptação do conto de fada. A história foi ambientada em uma favela. A situação da família de João, George Bezerra, não é boa. Desempregado, o pai ameaça sair de casa. Mas o baixo-astral passa longe dessa montagem. Logo, o menino se encontra com uma série de personagens curiosos, embalados pela trilha sonora esperta de Carlos Cardoso.