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Escrevo estas linhas com lágrimas nos olhos. São seis horas de trabalho diário e extenuante nas ruas e favelas desta cidade há 16 anos. Saem governos, entram governos e a mesmice dos discursos se repete: no meu mandato, criança é prioridade , vou tirá-las das ruas. Mas uma vez lá em cima, são mordidos pela mosca que transmite a doença da insensibilidade, do palavreado bonito mas sem ação. Muitas vezes sou criticada pôr não ser diplomática ou “política” nas minhas declarações e nas minhas críticas. É verdade. Mas quando tenho nos braços uma criança ferida, maltratada, com fome e abandonada a diplomacia e a política me parecem hipócritas e é por causa desta hipocrisia que estamos há séculos vivendo num país injusto, cruel com os mais desfavorecidos.

As ruas da cidade do Rio de Janeiro nunca tiveram tantas crianças neste começo de ano, nas calçadas, debaixo de viadutos e em todos os bairros, de Zona Sul à Zona Oeste. Só em Copacabana, antes do Carnaval , contei numa noite noventas e duas. São uma miríade de crianças entre 4 e 13 anos de idade, para não falar nos jovens, sem saber quem são mas cientes do que será o seu futuro: o narcotráfico e a morte prematura.

Vários fenômenos têm contribuído para esse aumento dos meninos de rua. Um deles é a crise do crescimento zero e da falta de oportunidades de emprego para as classes mais carentes. Nos últimos meses, caiu drasticamente a oferta de emprego doméstico e cada vez mais crianças têm que ajudar sua família a sobreviver engraxando sapatos, vendendo doces ou saindo de casa, da violência do alcoolismo dos pais, da fome.

Um outro são as guerras do tráfico de drogas nas favelas. A violência dos últimos meses tem afastado famílias inteiras dos seus domicílios. Já perdi a conta das vezes que tive que me abaixar no chão, protegendo as crianças dos tiros dos traficantes e da polícia. O Rio de Janeiro esta em guerra , numa guerra sem fim onde não há vencidos nem vencedores, mas nos últimos quinze anos, mais de dez mil crianças e jovens perderam a vida. As ruas são o lugar mais seguro no momento e a Zona Sul é um oásis de riqueza e bem estar no meio da miséria.

Até 1993 havia muitas ONGs que trabalhavam nas ruas do Rio. Mas foi decidido pelos governos que o trabalho na rua não presta , e hoje em dia pouquíssimas organizações o fazem. O dinheiro estrangeiro minguou . O mundo é cínico, e depois da onda da preocupação com os meninos de rua na década de 80, vieram a prostituição e mais recentemente o trabalho infantil. Isso serve para se fazerem inúmeras conferências , gastár-se dinheiro com gente que nunca chegou perto de uma criança ou jovem nessa situação. E todos saem satisfeitos e tomam decisões absurdas que nunca serão postas em prática.

E faz-se de conta que o problema dos meninos de rua não existe mais . Ouve-se do poder : tudo está sob controle. Controle de quê ?, gostaria de saber. Os abrigos da Prefeitura são meros depósitos para aqueles que ninguém quer ver, nem ajudar. Quando acontece um problema como o assassinato do jovem que vivia nas ruas do Leblon, fecha-se o abrigo em vez de se pensar em como fazê-lo atraente e agradável para recuperar jovens como ele. Quando comentei esse fato com uma das autoridades no poder , a resposta veio rápida: jovem não tem jeito, criança tem. Isso quer dizer que se temos um filho rebelde que furta numa loja como tantos outros, vamos desistir de educá-lo, expulsá-lo de casa?

A sociedade aplaude e aceita que pequenos seres com grandes problemas já nasçam estigmatizados como bandidos, pivetes , marginais. Não fazem nada para que essa criança cresça equilibrada e depois reclamam que, quando jovem, ela tenha que roubar para sobreviver. Podem imaginar o que é nunca Ter nos pés um sapato novo? Só vestir roupa usada ,rasgada?

A verdade é que não existem de fato políticas Públicas para crianças em zona de risco em todo o país. Elas tem sido cobaias de políticas pontuais de impacto na mídia. E muitos discursos, festas, comes e bebes, para lançar campanhas já natimortas só visando voto e para satisfazer a pequena sociedade burguesa que tem a mesa farta. De vez em quando se recolhem os meninos e os adultos. As crianças e jovens ainda têm alguma proteção, os outros são desovados na ilha do Fundão, num beco sem saída com ordens para não voltar: os filhos da burguesia têm que ser protegidos. Se um garoto pobre é pego com maconha ou cocaína, pau nele. Mas quando se anda na praia de Ipanema, na altura da Rua Maria Quitéria, o fumo e a droga rolam solto e ninguém vai parar numa delegacia ou numa escola para menores infratores. Essas estão lotadas sim, de jovens negros e pobres. Os pais deles não podem pagar propina à polícia. Só no ano passado foram denunciados pelo meu projeto vários policiais por extorsão.

Cada vez mais as condições de existência que propiciam a extrema degradação pessoal de tantas vidas decorrem diretamente das opções políticas, econômicas e sociais que têm presidido a vida brasileira nas últimas décadas. Criamos um Estado suicida onde só quem tem dinheiro ou poder pode sobreviver .Como não sofremos nenhuma Revolução Francesa, os descalabros se perpetuam há 500 anos .As crianças e os adolescentes marginalizados desta cidade não precisam de mais secretarias e gente sentada na cadeira discutindo o que não conhece; precisam sim é de ação, é de vergonha na cara de quem tem o poder de decisão e não decide. Não decide acabar com a vil tristeza de se olhar crianças de 4 anos disputando um osso cozido com um cachorro, como presenciei recentemente. Não existem vagas nas escolas para todas as crianças e jovens dessa cidade. Uma escola que é exclusora e cara. Que família pobre pode comprar listas infindáveis de material, uniforme, etc… Então, eles caem numa escola que é a da vida, do vício, do sexo precoce, do subtrabalho e da ignorância. Eu ainda choro sim, e muito. Cada vez que olho uma criança doente maltratada, estuprada, se prostituindo, eu tenho vergonha, eu sinto aquele aperto no coração, aquele desespero de quem gostaria de ver as coisas acontecerem. Não aguento mais enterrar meninos e meninas todos os anos ,ver nosso país se tornar cada vez mais uma Biafra, uma Sierra Leone, com meninos de 9 anos carregando um fuzil AR15 ou uma G3 automática. Nesse momento, queria ter todo o dinheiro do mundo para protegê-los da insanidade que tomou conta do país. Mas vozes como a minha ecoam no vazio. De reuniões com Associações comerciais, de moradores ,etc, já estou farta. O único interesse é proteger os turistas, segurança máxima. E para nós, brasileiros, o que resta?

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Yone Bezerra de Mello
Presidente da Casa da Paz de Vigário Geral e do Projeto Uerê.