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Os animais se dividem em:

a) pertencentes ao imperador
b) embalsamados
c) domesticados
d) leitões
e) sereias
f) fabulosos
g) cães em liberdade
h) incluídos na presente classificação
i) que se agitam como loucos
j) inumeráveis
k) desenhados com um pincel bem fino
l) etc.
m) que acabam de quebrar a bilha
n) que de longe parecem moscas

“Se pensarmos que só em 1884 é que houve uma conferência mundial para tomar medidas que visassem padronizar a medição do tempo em todo mundo (e nessa o Brasil se absteve)…”

” Que a guerra em 1914, teve como uma das principais razões, a incapacidade dos diplomatas de lidarem com a velocidade sem precedentes da comunicação telegráfica…”

“Que os relógios de pulso, antes de se tornarem equipamento militar padrão, nessa guerra, eram considerados “coisa de mulher”…

“Que o calendário gregoriano não foi aceito pela Igreja Ortodoxa na Grécia e na Rússia até 1923 e os monges de Montes Altos (no nordeste da Grécia) até hoje o recusam… ”

“E que se supusermos um viajante que partisse de Veneza em 1 de março de 1245, o primeiro dia do ano veneziano, ele se encontraria no ano de 1244 quando chegasse a Florença; e se depois de uma breve permanência, seguisse para Pisa, veria que o ano de 1246 já começara ali. Se progredisse viagem rumo ao oeste, encontrar-se-ia de novo em 1245 ao entrar na Provença e, chegando à França, antes da Páscoa (16 de abril), estaria de novo no ano de 1244. Isto porque naquela época a contagem dos anos não tinha a menor importância, salvo para aqueles que registravam por escrito algum acontecimento…”

No primeiro texto, que é de Borges, retirado de uma provável enciclopédia chinesa, colhido por Foucault (A Palavra e as Coisas), e nos outros baseados no livro Tempo e História de Gerald Witrow, levantamos aspectos da linguagem, ordem, visão de mundo, tempo (percepção e medição) e espaço. Esses aspectos relacionados com o computador, a internet e o teatro, servirão de base para as nossas observações.

Aparentemente o teatro e o computador, pelo seu confronto imediato do real e virtual, estariam afastados um do outro, mas como o que nos interessa aqui, é o como a criança lida com um e o outro, podemos traçar paralelos principalmente no referente a linguagem que os dois podem partilhar.

Sendo a participação da criança, mais evidenciada pela ação externa, convencionou-se durante algum tempo uma linha de teatro à la Pavlov , com estímulo/resposta, do tipo “Aonde foi o lobo?” , obrigando a criança a um tipo de participação similar aos pátios de recreio, inclusive com suas gritarias.

O fato de que no computador existe mouse e teclado, prevendo uma ação física, condizente com uma escolha, não significa que a criança está optando mais ou interagindo com mais intensidade do que com o teatro.

Significa que ela está em movimento interno, e o tipo deste movimento interno é o que nos interessa analisar.

Se o computador, seus programas e a internet, escolhidos pela criança, estiverem provocando apenas situações estímulo/resposta primários, como vemos na maior parte dos vídeo-games, depararemos com o mesmo pouco aproveitamento que encontramos no precário teatro para crianças citado acima.

Sobre isso, Valdemar Setzer, prof. do Departamento de Ciência da Computação da USP, em entrevista à Folha de São Paulo ( 23/07/2000), sobre a relação da escola e os meios eletrônicos diz: “A escola do futuro deveria ser mais humana, e não mais tecnológica, pois esta vai produzir futuros adultos menos humanos, comportando-se como animais e máquinas. O nazismo será fichinha perto do que essas crianças e jovens informatizados farão no futuro (e estão começando a fazer) e o sofrimento por que passarão.”

Bom, parece radical, mas se observarmos que golfinhos e macacos já estão sendo treinados com computadores, podemos pensar que o Pavlov – computadorizado pode servir tanto para orientar comportamentos em animais como em humanos…

Mas que similaridade teria o teatro, o computador na sua relação com a criança? Por que para nós adultos é tão mais difícil entrar nesse mundo informatizado, do que para uma criança de 5 anos? Por que esses adolescentes estão entrando de sola no mundo dos adultos, interferindo na ordem pré-estabelecida, seja como ‘hackers’ ou como os mais novos milionários?

Um dos caminhos a seguir é o de observar o pensamento nas primeiras faixas etárias sendo a não-linearidade a forma de lidar com o mundo, objetos e pessoas. O tempo é realmente relativo na infância, como o é no mundo, só que não mais nos damos conta disto. Para a criança não existe o ontem, o amanhã, tudo é vivido no “tempo de ágoras”. Nós é que insistimos que a vida, ou que o nosso cotidiano tem princípio meio e fim.

Umberto Eco (A Obra Aberta) nos fala sobre isto; “De fato é natural que a vida seja mais semelhante ao ‘Ulisses’ de Joyce do que a ‘Os Três Mosqueteiros’, todavia, qualquer um de nós está mais inclinado a pensar na vida em termos de ‘Os Três Mosqueteiros’ do que em termos de ‘Ulisses’; ou melhor, pode rememorar a vida e julgá-la somente repensando-a como romance bem feito.”

Isto porque o nosso hábito mental de ver um acontecimento depois do outro, e criar nexos de causalidade entre eles, não nos permite perceber a casualidade que o mundo nos oferece, nos convidando a explorações e ligações inventivas entre os acontecimentos. Nossos hábitos mentais são tão fortes, que continuamos a ver, e a ensinar a ver o sol se pondo, mesmo passados 4 séculos de Copérnico.

Mas na infância, a forma de ler e ver o mundo ainda não foi contaminada por uma lógica formal, que relaciona uma pressuposta ordem nos eventos e um princípio, meio e fim. Podemos observar essa forma não linear de ver o mundo, através de Graciliano Ramos que nos descreve sua “Infância”: “Datam deste tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal. Até então algumas pessoas, ou fragmentos de pessoas, tinham-se manifestado, mas para bem dizer viviam fora do espaço. Começaram pouco a pouco a localizar-se, o que me transtornou. Apareceram lugares imprecisos, e entre eles não havia continuidade. Pontos nebulosos, ilhas esboçando-se no universo vazio”… “Naquele tempo a escuridão se ia dissipando, vagarosa. Acordei, reuni pedaços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo boiavam no passado confuso, articulei tudo, criei o meu pequeno mundo incongruente. As vezes as peças se descolocavam – e surgiam estranhas mudanças. Os objetos se tornavam irreconhecíveis, e a humanidade, feita de indivíduos que me atormentavam e indivíduos que não me atormentavam, perdia os característicos.”

A não linearidade tem a ver diretamente com a forma de apreensão do mundo pela criança. Ela recolhe de acordo com o seu interesse, detalhes da realidade e constrói a sua opção, a sua história.

Lídia Weber, psicóloga e prof. da Universidade Federal do Paraná, em entrevista à Veja (agosto 2000) ressalta que: “o que considera um dos aspectos positivos da Internet para o desenvolvimento infantil é o estímulo ao pensamento não linear .A criança depara com situações em que tem de saber selecionar o que quer. Por exemplo, quando encontra um hyperlink que a leva a outras páginas da Internet. Nessa exploração, ela tem de desenvolver a capacidade de comandar o pensamento, saber avançar pelas páginas e voltar ao ponto de origem. É um exercício que ensina a lidar com as variações do mundo.”

E Rogério da Costa, prof. De pós graduação em Comunicação e Semiótica da PUC de São Paulo, em entrevista à Folha de São Paulo (23/7/2000), aponta também este aspecto: “A navegação na rede significa, basicamente, a possibilidade de explorarmos de um modo não linear universos distintos de informações e conhecimentos… Ora a ideia de exploração por si só, já nos convida a refletir sobre a aprendizagem de uma maneira distinta daquela que comumente entendemos: a recepção do conhecimento…”

Enfocando o teatro no Brasil, podemos ver na década de 70, através de Ilo Krugli, a inserção do simbólico e da não linearidade como estrutura narrativa do espetáculo para crianças, abandonando o jeito clássico do contar histórias, do princípio, meio e fim.

Esta forma da criança ver o mundo certamente facilita o interagir com a máquina, e responde em parte o porque para nós adultos é tão mais difícil “entender” aquele mecanismo, até que, quando perdemos o medo, nos entregamos ao lúdico, ao jogo que ele nos solicita, seu principal atrativo.

O jogo de que, a partir de elementos aparentemente desconexos, incita à exploração, convocando o pensamento não linear, pouco usado conscientemente no mundo adulto, mais ainda não perdido, obrigando-nos a construir a nossa própria história, nosso conhecimento.

Tanto na frente de uma tela, quanto no espaço do teatro, podemos ter a sensação do “tempo de ágoras” vivido na infância, quando nos permitimos à exploração intensa do que é visto e percebido, nos perdendo em horas frente à tela.

O sentido do termo internauta, aquele que viaja e explora vem a calhar nesta discussão se confrontado com público, quando interpretado pelo gesto passivo. Se dermos à criança, ou ao adulto, algo pronto, mastigado, a direção da sua percepção será ativada no sentido do acompanhar o enredo, inibindo chances de viagem ou exploração sobre os elementos apresentados.

Já, quando apresentados a uma estrutura narrativa aberta, não linear são convidados à exploração e construção de outras histórias no ato da representação.

Observamos que estamos falando de linguagem, tanto no teatro quanto em relação a computadores. E linguagem forma e conforma o pensamento, a ação física do pensar sobre a vida e a possibilidade de agirmos ou não a partir disso. Linguagem compreende ideologia como a forma de construir cidadãos, com uma ética e estéticas inerentes.

Mas na música, nas artes-plásticas, dança, literatura e no teatro contemporâneo, a proposta de se construir obras que a princípio propõem a ambiguidade, traduzindo-se em linguagens abertas que objetivam introduzir o espectador no jogo da cena, fornece meios de exercitar a exploração e viagem pelos elementos que constituem o espetáculo.

Ao espectador é conferido um lugar de autoria, que tal chamarmos de público-nauta?

Logo, se pudermos no teatro e no computador, exercitar essa forma de linguagem, certamente estaremos contribuindo para formar cidadãos com mais crítica e participação na sociedade. Não é o único, mas é um dos caminhos que se apresenta.

Para concluir vale citar um texto de Deleuze (Conversações) sobre o cinema: “O cinema inteiro vale pelos circuitos cerebrais que ele instaura, justamente porque a imagem está em movimento. Cerebral não quer dizer intelectual: existe um cérebro emotivo, passional… A esse respeito, a questão que se coloca, concerne à riqueza, à complexidade, ao teor desses agenciamentos, dessas conexões, disjunções, circuitos e curtos-circuitos… criar novos circuitos diz respeito ao cérebro e também à arte… Toda criação tem um valor e um teor político. Mas o problema é que ela se concilia mal com os circuitos de informação e de comunicação, que são circuitos inteiramente preparados e degenerados de antemão…É sempre uma questão cerebral: o cérebro é a face oculta de todos os circuitos que podem fazer triunfar os reflexos condicionados mais rudimentares, tanto quanto dar uma oportunidade a traçados mais criativos, a ligações menos prováveis. O cérebro é um volume espaço-temporal: cabe à arte traçar nele novos caminhos atuais.”

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Alice Koenow
Diretora de Teatro

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Obs.
Este texto foi retirado da mesa redonda InterneTEATRO, ocorrida em 20 de outubro de 2001, às 19h, no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, em Santa Tereza. Este encontro foi coordenado pelo CBTIJ, e fez parte da II Mostra de Teatro de Animação BOM DE BONECO, realizada por Bonecos em Ação, sob a tutela de Susanita Freire e Marcílio Barroco.

Além da palestra acima, foram proferidas as seguintes palestras:

Tecnologia Teatral (José Henrique Moraes)
Sites de Teatro (Paulo Thelmo Ribeiro)

Ao final das palestras, ocorreu um debate entre convidados e plateia com intermediação de Antonio Carlos Bernardes, presidente do CBTIJ.