É uma contradição, ainda pouco comentada, o fato de a ação educativa e cultural visando a infância e adolescência não serem, como deveriam, prioridade nas ações governamentais ou socioculturais, hoje. Por quê?
Primeiro, por um dado que muitos desconhecem: 42% da população brasileira tem menos de 15 anos. A esse dado quantitativo soma-se outro, qualitativo. Nas diferentes ciências humanas surgidas ou ampliadas a partir de fins do século 19, a infância passou a ser vista com olhos novos: a psicanálise demonstrou o peso que têm a infância e as relações nela vividas no desenvolvimento do indivíduo adulto; a sociologia e a antropologia, a influência sociocultural do ambiente no enriquecimento de experiências que, vividas como tais, vão orientar ou aprofundar esse desenvolvimento; os teóricos da comunicação e da propaganda comprovaram que a criança é excelente veículo receptor e difusor; a análise político-cultural enfatizou a mudança de valores, comportamentos e atitudes, ou mesmo de sistemas de pensamento, que fizeram da década de 1970 a chamada “geração da ruptura”, afetando sobretudo as gerações mais jovens; a redescoberta da alquimia, da astrologia, dos mitos, englobando da filosofia mais séria à mais fanática mania de horóscopos, falam igualmente da força crescente do pensamento mágico e mítico e suas formas de apreensão do real.
Acresce a isso a transformação que todos sentimos e vivemos: o espaço planetizado, o tempo acelerado e seu cruzamento nas linhas da evolução; a instabilidade de um tempo de transição que foi definido ou descrito com expressões que falam por si: “a era do vazio”, “a era da incerteza”, a “sociedade do espetáculo”, em tudo é feito apenas “para os olhos’, para gerar imagens céleres e mutantes em que o parecer se torna mais importante que o ser; e onde até nas ciências antes ditas exatas surgiram a “teoria do caos” ou “o princípio de indecidibilidade”.
Quadro que explica por si só porque a informação e a comunicação se tornaram diretrizes fundamentais de ação e a linguagem a preocupação filosófica central. No caso da criança, um dado apenas ilustra igualmente mudança das mais radicais. Pelas razões acima lembradas, a criança é alvo bastante visado por esse mercado produtor: no espaço das duas últimas décadas não só decuplicou a quantidade de produtos que lhe são oferecidos – ou seja, o número de livros, músicas, filmes, programas de TV, jornais, revistas, (inclusive de quadrinhos), DVDs, vídeos, videogames etc.- como ela tem hoje novos meios e veículos a seu alcance: pesquisas recentes indicam que as crianças e adolescentes passam hoje de 6 a 8 horas por dia diante da televisão; que internautas brasileiros passam de 23 a 25 horas por mês na internet, “com o cérebro mais ligado no virtual que no real”.
As consequências dessa mudança merecem atenção e reflexão: se, por um lado, se constata que a criança de hoje é mais esperta, mais inquieta, mais atenta ao entorno, por outro lado esse contato direto, pessoal e in-mediato (sem mediações) com os objetos da cultura e o mundo em torno leva a criança a uma prematuridade, a ter que ser mais responsável, ou seja, ela mesma responder por esse bombardeio de tudo que recebe do exterior e a desequilibra em primeiro momento, até ser absorvido ou integrado. Esse “movimento auto didático”, como já foi chamado, obriga pais e professores a modificar os esquemas da educação, tornando-a menos centrada nas “mensagens” ou “lições” a serem transmitidas e mais, muito mais preocupada com a avaliação das mensagens recebidas, com desenvolver no educando o espírito crítico, a capacidade de seleção, de reflexão, maior atividade, maior participação, o hábito da indagação, da pesquisa orientada, a criatividade, a imaginação, a invenção. Alguns supõem que a mudança “reduziu” a autoridade e influência dos pais e professores como mediadores tradicionais, sem perceber que, pelo contrário, ela assim os desafia a contribuir para uma sociedade menos hierárquica e mais igualitária, na qual a autoridade tende a voltar ao sentido original da palavra: pois autoridade vem de autor, que é aquele que gera, que fecunda, faz nascer – atitude que hoje se espera do educador. O fosso gerado por essa mudança não se espelha apenas em termos de gerações, mas também de camadas sociais: ela aprofundou a desigualdade e a exclusão, criando defasagem cada vez maior entre as crianças que têm acesso a esses meios e produtos e as que deles se veem privadas, no todo ou em parte.
Para que criança falamos?
Se a relação criança-mundo atual nos confronta com esses desafios, o que pode aí representar o teatro feito para a criança e a juventude?
Te-atrium = lugar de VER. Por sua definição mesma o teatro surge como uma das linguagens com maior potencial para expressar/ representar nosso tempo: a realidade que não é mais mediatizada pela autoridade também não o é mais exclusivamente pelo conceito e, sobretudo para a criança, adquire enorme importância à “alfabetização visual” que o teatro pode propiciar, trazendo à cena, ao vivo, presentificando em termos sensíveis um mundo e relações que as telas só retratam em imagens. Há uma visualização dos conteúdos verbais e uma verbalização dos conteúdos das imagens, conjugando pensamento verbalizante e pensamento imagístico. O que é mostrado é uma experiência vivida, e como tal igualmente experienciada. Daí se entender a afirmação corrente dos psicólogos que de que as crianças estão usando esses meios como fontes de que extraem material para organizar e interpretar as próprias experiências.
Definição que descarta de imediato os “espetáculos” que apenas colocam figuras em movimento em uma cena (a meu ver já nem cabe chamá-los de atores, pois nada existe aí em ato), ou tolas “brincadeiras” pretensamente lúdicas – sem noção sequer de que o verdadeiro lúdico é, no mínimo, aprendizado de uma realidade nova e caminho possível de uma descoberta.
O teatro capaz de co(r)responder à criança de hoje nos coloca assim, diante de algumas questões: a busca de uma dramaturgia em que o autor seja alguém coerente com o sentido acima dado à palavra, alguém capaz de responder às perguntas que definem um autor: eu tenho o que dizer? O que vou dizer será capaz de dar ao espectador uma experiência capaz de aumentar sua observação, sua percepção de objetos e fatos, de contribuir para sua maturação, de abrir seus olhos a uma realidade ampliada pela imaginação, a criação, a fantasia? De proporcionar-lhe a riqueza e diversidade de experiências capazes de suscitar seu desenvolvimento? Ou de estimular sua socialização, sua abertura aos outros e ao mundo? De expressar a instabilidade e transformação do mundo em que vivemos com uma estrutura aberta e flexível, que possibilite maior atividade e participação? Participação que não tem nada a ver com gritaria ou cantoria provocadas e passivamente repetidas, ou indução a um mecânico e imitativo bater palmas. Pelo contrário, atividade ou passividade são tendências opostas, mas igualmente estimulada na relação criança-ambiente, hoje: porém a passividade a faz perder sua capacidade criadora, tornando-se apenas repetidora, reprodutora (de)formada por “modelos” vistos; enquanto que a atividade incentiva sua capacidade de ter iniciativa e organização, de agir com apoio relativamente pequeno do meio ambiente, de enfrentar obstáculos e desafios, inclusive diante de forças dominadoras. Em suma, de acrescentar algo a quem vê.
Com a consciência de que a ampliação de meios nos dá possibilidades de diversificar e aprofundar as informações que vão trazer ao intelecto a criança uma visão mais ampla; de agir sobre sua percepção sensível, fazendo, de seu encantamento com o que vê e da credulidade que ele suscita, um mecanismo de projeção e identificação que estimule sua afetividade; aumentando, assim, sua socialização, religando-a aos que vivem experiências semelhantes; incluindo nessa visão uma escala de princípios e valores que não só decorrem da ação e a orientam, como suscitam a imaginação, a criação, a capacidade de inventar. Se criança vem de criar e jovem vem de Juvene, Jovis (Júpiter) que é a luz divina, o Criador, cabe lembrar a importância crescente, para todos nós, dessa dimensão que nos religa a humanidade e ao universo. Pois, como diz Guillebaud, “o planeta do futuro não será nossa conquista e sim nossa criação; e o mundo que nos espera não está por ser descoberto, está por ser inventado e construído.”
Maria Helena Kühner
Escritora de peças teatrais para adultos e crianças, ensaios, pesquisas, literatura infanto-juvenil