Matéria publicada no O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 19.05.1976
Concurso de Peças Infantis do Paraná: O Que Pensam os Autores
Numa reunião realizada em Curitiba e que durou duas horas e meia, uma peça sobre chuvas, chuvisco, poças d’água, chuveiros e guarda chuvas foi a escolhida pelo júri formado por Clóvis Garcia, São Paulo; Lúcia Camargo e Joacyr Baggio, Paraná e Ana Maria Machado e Clóvis Levi, Rio. Neste artigo, o crítico do Globo faz uma rápida análise das peças vencedoras e mostra o que se passa na cabeça dos autores que escrevem, hoje, para as crianças.
Com Eu Chovo, Tu Choves, Ele Chove, Sylvia Orthoff venceu o Segundo Concurso Nacional de Textos para Teatro Infantil, promovido pela Fundação Teatro Guaíra, do Paraná, repetindo o feito do ano passado, quando tirou o primeiro lugar com A Viagem do Barquinho. Em segundo lugar ficou o curitibano Pedro Leônidas Lobo dos Santos, com a peça João, José e Juca ou De Como Faz o Pinto Para Sair da Casca. Em terceiro, Ilo Krugli, com Andando e Voando com Alguém e Ninguém. Em quarto, Benjamin Santos, com A Loja das Maravilhas Naturais; e, finalmente, em quinto, o paulista Marco Antônio de Carvalho, com O Que Fazer Pela Flor.
Os prêmios, que deverão ser entregues em julho, durante o Encontro Nacional de Teatro Infantil, a ser realizado em Curitiba, são os seguintes: 1º lugar, Cr$10 mil; 2º, Cr$ 8 mil; 3º, Cr$ 6 mil; 4º, Cr$ 4 mil; 5º, Cr4 2 mil.
Uma coincidência, não tão acidental assim: Sylvia Orthoff, Ilo Krugli e Benjamin Santos estavam, também, entre os cinco premiados do ano passado. O que, de um lado, demonstra, por parte deles, uma continuidade de trabalho; mas, de outro, mostra também que não está existindo muita renovação. Das 62 peças inscritas, 15 chegaram à fase final, obtendo de dez pontos para cima, num total máximo de 15. Foram os textos de números 7, 8, 18, 25, 28, 32, 35, 36, 38, 41, 44B, 47, 48, 50 e 58.
É importante assinalar que o nível geral foi baixo. Mas é bom que se diga, também, que entre as peças finalistas, e onde podem ser incluídas as de números 17, 30 e 40, com nove pontos e meio, a qualidade foi muito superior a todas essas cinderelas, baratinhas, princesinhas, etc., que dominam, em termos quantitativos, o nosso mercado carioca. Para o primeiro lugar, fui voto vencido: coloquei Eu Chovo, Tu Choves, Ele Chove na segunda colocação, dando o prêmio maior para João, José e Juca. Mas a peça de Sylvia Orthoff esteve sempre em todas as listas dos jurados e foi juntamente com João, José e Juca, o texto que conseguiu mais pontos na primeira votação global: treze e meio, num total máximo de quinze.
A ressaltar o fato de que o concurso permitia textos para atores e/ou bonecos, mas quase não havia peças para as “formas animadas”. Eu Chovo, Tu Choves, Ele Chove, por coincidência, é uma peça mista, utilizando tanto bonecos como atores.
As Premiadas
Com o intuito de permitir ao leitor, uma noção genérica sobre o que pensam as pessoas que escrevem para crianças, faço agora um rápido apanhado das cinco premiadas.
Eu Chovo, Tu Choves, Ele Chove, de Sylvia Orthoff, é uma peça que se vai desenvolvendo com muito charme, através de um humor inteligente. A estrutura do texto baseia-se num progressivo desdobramento da ação. O texto, entretanto, me pareceu algo superficial, carecendo de mais profundidade. Sylvia Orthoff, também notando que a peça tinha algumas deficiências, começou a reescrevê-la e, hoje, já tem quase pronta sua forma final. Uma escritora que, mesmo tendo seu texto premiado, insiste em revisá-lo, em enriquecê-lo, deixa patente ser uma artista que leva a sério seu trabalho.
A segunda colocada, João, José e Juca, de Pedro Leônidas Lobo dos Santos, foi, para mim, o melhor dos 62 textos concorrentes. Três pintos saem de seus ovos e, a partir daí, o autor lança para as crianças três posições do ser humano quanto à maneira de enfrentar a vida. Mas a linguagem não é difícil: o mundo infantil está presente a todo instante, através de uma ação dramática interessante, inteligente, original. Apesar de trabalhar com uma proposição bastante boa, nem sempre o autor consegue as melhores soluções cênicas para o que pretende dizer. Outro aspecto que poderia ser mais trabalhado por Pedro Leônidas: definir melhor o personagem “José”.
Ilo Krugli, com Andando e Voando com Alguém e Ninguém, mostra uma narrativa com bom “timing”, numa proposta de vida dinâmica, aberta, afetiva e sem compromissos rígidos. Nota-se uma certa superficialidade no tratamento do tema, aspecto que certamente desaparecerá numa montagem do próprio autor. Com outro diretor, entretanto, há o perigo de a peça ficar demasiadamente esquemática.
A Loja das Maravilhas Naturais, de Benjamin Santos, parte de uma ideia interessante: três árvores que têm a missão secreta de levar a primavera para o Piauí. Entretanto, o autor não encontrou a forma mais expressiva para isso e o texto mostra-se demasiadamente longo, perdendo-se muito em ênfases injustificadas nas ações secundárias.
Marco Antônio Carvalho apresenta bom ritmo e dinâmica em O Que Fazer Pela Flor. Ingenuamente ecológica, no início, ela vai tomando gradativamente grande força crítica quanto aos modos equivocados, lugar comum de lançar perguntas ao público sem qualquer necessidade, e mistura um pouco os temas: educação, defesa da flora, defesa da fauna, racismo, televisão, repressão. Os diálogos são de boa qualidade.
Características Gerais
Na análise das cinco premiadas vê-se, claramente, que quatro delas traduzem uma preocupação dos respectivos autores de dar à criança estímulos para a realização de uma vida mais criativa, menos preconceituosa, sempre aberta. Essa temática começa a dominar o panorama da dramaturgia infantil, ultrapassando até mesmo o que julgávamos eternamente invencível: o esquemático maniqueísmo. Há uma necessidade de despertar a consciência crítica da criança, o que pode ser exemplificado nesta frase tirada de uma das peças concorrentes: “Quando recebemos uma ordem, devemos procurar entender o que ela significa. Não se deve obedecer cegamente, sem saber por quê”. Há, também, muito marcado, o desejo de romper com um esquema educacional comprovadamente ineficaz. Todavia, apesar de ineficaz, é melhor tê-lo que não ter nenhum. E é nesse ponto que alguns autores incorrem em equívocos. No desejo de romper com um esquema educacional que tenta dar uma visão estratificada e limitada da vida, os dramaturgos às vezes caem em extremos perigosos, falando mal da escola, em geral, sem qualquer proposta mais significativa. Há algumas frases bem expressivas:
– “Eu não gosto dessa D. Escola. Tenho que ficar calada o tempo todo ouvindo o que ela fala. Acabo não entendendo nada pois não posso falar quando tenho vontade ou quando me vem uma ideia”.
– “Você sabe que eu detesto a escola. Nela, a gente só aprende a decorar. Gosto de ser curioso, aprender com a vida”.
– “Se você continuar só a ouvir o que a professora diz, não vai sacar nada da vida, entende?”
– “A professora diz uma coisa, o poeta outra”.
Como se vê, o que esses autores estão propondo, no fundo, não é acabar com as escolas, mas transformá-las em algo vivo e enriquecedor. O assunto é muito delicado e precisa ser tratado com cuidado, inclusive com a escolha das palavras mais adequadas.
Curiosamente existe, também de modo bastante significativo, a defesa de uma posição contrária. Diversos autores defendem a segurança contra o exercício da liberdade; defendem a ideia de que nada deve ser mudado; que perguntas não devem ser feitas; que “o mundo é assim mesmo”. No fundo, difunde se viver a vida. A peça utiliza a ideia de que a criança é um objeto manipulável pelos adultos; e que os adultos são manipulados pelo destino. São autores que pregam um tipo de educação para formar pessoas exteriormente bem educadas mas que, em sua essência, são apenas indivíduos conformistas, passivos. Essa posição é bem exemplificada quando, numa das peças, um menino muito curioso, sempre disposto a descobrir a vida e que vive caindo e se machucando, mas que guarda um fogo interior muito grande tem como antagonista uma criança sempre limpa, que estuda bastante, que respeita os pais mas que não utiliza a parte “criança” de sua personalidade. Reagindo às propostas da vida feitas pelo menino curioso, ele encerra o assunto com essa frase definitiva: “Não. Eu sou bonzinho e obediente”. Notem que nem bom ele é; é bonzinho.
Podemos enumerar ainda outras características que se mantém ano após ano, nesses concursos: falta de ação dramática; ações incoerentes e arbitrárias; problemas que se resolvem magicamente ; personagens que brincam por bobagens, apenas para dar certa dinâmica; humor baseado em esbarrões, correrias e quedas; personagens que de repente se arrependem e “trilham o caminho do bem” porque ouvem determinada música ou avistam uma flor; personagens que se escondem para ouvir; perguntas à plateia sem qualquer necessidade dramática; final com crianças brincando de roda ou com os atores dançando; aulas de História; aulas de Higiene; aulas de bom-comportamento; diálogos repletos de diminutivos.
O júri, depois de ler e analisar tantas peças fica com a frustração de não poder conversar com certos autores. Há peças muito fracas em que se nota a presença potencial de um autor vigoroso. Há peças muito bem escritas cuja ideia central é confusa e contraditória, peças números 18 e 30. E há sempre a ameaça de tais autores, desestimulados por não terem sido premiados, deixarem de se inscrever. Foi a partir daí que Clóvis Garcia sugeriu a realização de um seminário de dramaturgia: os autores enviariam seus textos, um júri selecionaria cerca de vinte e os escritores escolhidos teriam suas peças discutidas exaustivamente, num contato enriquecedor tanto para o júri como para os dramaturgos. Essa proposta, entretanto, esbarra em alguns problemas materiais que teriam de ser solucionados previamente. Em Curitiba e em São Paulo, o Prêmio Narizinho está voltando, já se está pensando na possibilidade de adoção dessa fórmula. E o Rio? Quando teremos um concurso nosso?