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O que os adultos pensam sobre o mundo infantil? O que os adultos pensam que as crianças pensam? E como pensam? E, no caso destes adultos serem artistas – dramaturgos, atores, diretores etc. – envolvidos na produção de um espetáculo para crianças, como estas concepções sobre infância e criança se revelam e se imprimem em sua obra?

Diz Cisele Ortiz: A representação que os adultos têm do mundo infantil raramente coincide com as necessidades reais das crianças, e quase tudo que se produz ou se realiza para crianças não costuma considerá-las seres inteligentes, criativos e sensíveis, tais como artigos infantis, filmes, programas de TV, peças de teatro, brinquedos, decoração de quartos… (1)

Para entender um pouco mais o porquê desta dificuldade, é importante buscar uma referência histórica. Ela vai nos ajudar a relacionar o teatro que se produz para a criança com correntes filosóficas e de pensamento que viram os pequenos de diferentes maneiras ao longo das épocas.

De novo Cisele Ortiz: Na Idade Média, o sentimento de infância não existia. Não se levava em consideração as diferenças entre crianças e adultos. Assim que a criança passava a não depender tanto da mãe, entrava diretamente no mundo dos grandes. O bebê era paparicado, as pessoas se divertiam com as crianças pequenas como se elas fossem animaizinhos, ou brinquedinhos dos adultos. Era como se as crianças fossem quase “anônimas”.

Até o século XVII, a mortalidade infantil era muito alta, devido às condições precárias de higiene e saúde. As crianças só eram consideradas “gente” quando conseguiam “vingar” e realizar as tarefas dos adultos.

A partir do final do século XVII, com o grande movimento de moralização da humanidade promovido pela Igreja e pelo Estado, a criança foi segregada da família e da sociedade, numa espécie de quarentena, clausura ou prisão, até poder estar liberta para a vida. A esta instituição deu-se o nome de escola.

Neste momento, a escola tinha por objetivo corrigir crianças, que viviam em constante estado de pecado: “gulosas, preguiçosas, indóceis, desobedientes, briguentas, mexeriquentas, faladoras, sem religião…” (inscrição numa gravura do final do século XVIII). E isso vinha de sua própria natureza interna; era como se a infância fosse uma “mancha negra que precisava ser apagada”.

No século XVIII, via-se a criança como um ser primitivo, irracional. Ela era como um animal que precisava ser domesticado. A criança era vista como “páginas em branco” a serem preenchidas pelos adultos. (2)

É interessante notar que, apesar da ideia de criança e infância ter se transformado em nossos dias, muitas das concepções descritas acima permanecem presentes, ainda que de forma disfarçada, em algumas crenças e práticas de nosso tempo.

Os conceitos de “tábula rasa”, de John Locke, bem como o do “bom selvagem” de Rousseau, subsistem até hoje de forma muito forte em tudo que se refere à criança. Estão por trás de diversas obras – de teatro, inclusive – que veem a criança como sempre pura, dócil, carente de informação e formação, sendo o mundo certo o do adulto, que por sua vez deve apresentá-lo como sendo sempre belo e bom. Paradoxalmente também coexiste a ideia de que a criança é má e precisa ser corrigida a priori, através de lições de moral e de situações-exemplo que parecem dizer: “Olha o que vai acontecer se você fizer, ou não fizer, isso!”. De alguma forma, obras de forte caráter moralista produzidas no passado, como “Sofia, a desastrada”, da Condessa de Ségur, ou “Fritz und Hans”, os endiabrados gêmeos da literatura alemã, ainda influenciam hoje a literatura, a TV e o teatro que se produz para as crianças.

Tanto a situação que entende a criança como alguém que precisa ser corrigido, quanto a que a entende como “páginas em branco” não a consideram como um ser competente, que tem sua própria forma de pensar.

No início do Século XX, o advento do higienismo traz o desenvolvimento da puericultura e a perspectiva de preservar a vida das crianças e ensinar regras de higiene às famílias. O caráter da educação era extremamente moralizante. Médicos, enfermeiras e voluntários tinham como “missão” ensinar a família a cuidar da criança pequena, que era vista como pobre, mal cuidada, de vida frágil.

Ao final da II Guerra e no início da década de 50 é a vez da Psicologia influenciar a educação e a arte. As teorias de desenvolvimento infantil ocupam lugar de destaque e as creches começam a se organizar levando em conta características de faixa etária, organizando brincadeiras e jogos e utilizando materiais adequados para a criança pequena.

Mas a Pedagogia também deixa suas marcas. A partir da década de 60, passa a preparar a criança para o 1º grau (prontidão) e tenciona suprir as carências de estimulação. Este conceito – estimulação – alcança aqui seu auge. A estimulação deveria ser intensiva; enaltece-se o treino motor e as chamadas atividades de coordenação motora, bem como o desenvolvimento de habilidades específicas.

Todas estas visões de infância impregnam, em maior ou menor grau, a arte e o teatro voltados para a criança. A partir da década de 70, e até hoje, as ideias de Jean Piaget passam a influenciar a educação de crianças pequenas. Torna-se mundialmente conhecido o Construtivismo, corrente pedagógica que, como o próprio nome diz, entende que o conhecimento é um processo construído pelo indivíduo de dentro para fora, durante toda a vida – ou seja, não é cumulativo. O ser humano elabora os conhecimentos, transformando-os continuamente através da relação com as pessoas e com os objetos.

Já o Sócio-interacionismo, cujo principal expoente é o russo L.S. Vygotsky, acrescenta a ideia de que desde o seu nascimento as crianças desenvolvem face ao que existe uma verdadeira atividade de pesquisa: constroem hipóteses, tateiam, experimentam, testam, reajustam suas ações. Cada descoberta conduz à nova interrogação. O sujeito constrói conhecimento de forma ativa, desenvolvendo suas estruturas de inteligência e reconstruindo suas aquisições continuamente.

O Construtivismo e o Sócio-interacionismo consideram, em primeiro lugar, que a criança não é um “vir a ser”, um “pequeno adulto”, e sim um ser humano pleno e em desenvolvimento, que elabora hipóteses genuínas acerca do mundo que a rodeia; é produtor cultural e sujeito de sua ação, construindo seu próprio conhecimento. O conceito de criança “desestimulada” e “carente” também sofre mudanças. Nestas concepções, não existem crianças carentes ou desprovidas culturalmente, pois a cultura regional e familiar é valorizada, tão importante quanto a cultura dominante e letrada. Assim, a família passa a ser vista como competente para cuidar de seus filhos, com saberes próprios que devem ser respeitados, e a educação infantil complementa o papel desempenhado pela família e pela comunidade.

É possível imaginar as substanciais mudanças que o Construtivismo e o Sócio-interacionismo introduzem na concepção de criança e infância, e que gradualmente trazem consequências para a arte e o teatro infantil.

Ao reler o capítulo relativo ao teatro infantil no livro Estranho Mundo que se Mostra às Crianças, de Fanny Abramovich, confesso que o mesmo não me impactou tanto quanto da primeira vez que o tive nas mãos. O teatro infantil parece ter mudado para melhor, talvez graças às ideias que reconhecem a infância e o direito das crianças à educação e à arte. Podemos dizer que há mais produções que encaram a criança como sujeitos do que na época em que a Fanny escreveu seu livro.

Para demonstrar como a visão de criança influencia os resultados de uma montagem teatral, tomemos como exemplo o original de Pinnochio, de Carlo Collodi. Este texto foi escrito dentro de uma concepção moralista de infância, onde o castigo físico era natural e a chantagem um meio comum de conseguir que os pequenos se comportassem dentro dos padrões esperados na época. Dependendo da ideia que um artista tenha a respeito das crianças, seu “Pinnocchio” para teatro pode:

– eliminar totalmente as características cruéis do texto, poupando as crianças de vê-las em cena ou pensar sobre elas;

– mantê-las e endossá-las por convicção própria, usando o texto como meio moralizante para educar as crianças e ensiná-las a não mentir;

– mantê-las de forma a propor uma discussão crítica sobre “Pinnocchio”, levando as crianças a refletir sobre o que Pinnochio faz e por que, em que circunstâncias.

O que quero dizer é que qualquer obra, mesmo de caráter moralista, pode ser mostrada às crianças, desde que:

– respeite o fato de que a criança pensa de forma qualitativamente diferente dos adultos;

– reconheça o jogo como principal elemento de comunicação e expressão da criança,

– incorporando-o na linguagem teatral;

– reconheça que a criança é mais ação e mais sensação do que verbal, cuidando para que música e imagens ocupem lugar importante nas montagens;

– utilize um vocabulário adequado, que possa ser entendido pelas crianças;

– ainda assim estenda seu vocabulário e experiências, não tendo medo de usar palavras novas, desde que contextualizadas, ideias e elementos novos que se relacionam, não “infantilizando” demais o espetáculo.

Portanto, é importante considerar que podemos comparar a criança ao adulto num sentido positivo – a criança é tão capaz quanto o adulto de fruir uma obra de arte – mas devemos ter sempre em mente que ela é qualitativamente diferente do adulto na maneira de construir seu conhecimento. Devemos identificar sempre as visões de criança que estão subjacentes aos textos e montagens teatrais e refletir sobre essa inter-relação: concepção de criança versus produto cultural.

Bibliografia

ABRAMOVICH, Fanny. O Estranho Mundo que se mostra às Crianças – São Paulo, Summus, 1983
CARNEIRO NETO, Dib. Pecinha É a Vovozinha! –  São Paulo, Editora DBA, 2003
COLLODI, C. – “Pinóquio” – Trad. Edith Negraes, São Paulo, Hemus, 1985
ORTIZ, Cisele – “Orientações para as famílias que buscam escolas para seus filhos” – apostila para Natura Cosméticos, Instituto Avisalá, novembro de 1996
VYGOTSKY, L.S. – “A Formação Social da Mente” – São Paulo, Martins Fontes, 1983.

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Obs.
Texto inicialmente publicado no Site da Aliança para Infância – www.aliancapelainfancia.org.br