Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 11.01.1980

Lendas e Arrepios

Se a precariedade de algumas salas de espetáculos com que conta o teatro infantil costuma servir de justificativa para um baixo rendimento artístico, tal argumento se torna discutível se observarmos, por exemplo, dois espetáculos tão diversos como Com Panos e Lendas e Barão Azul Com Arrepio na Lua. Enfrenta-se em ambos os casos um problema comum: os teatros em que se apresentam não possuem, nem de longe, condições ideais de trabalho. O Teatro da Gávea, que serve de palco a Barão Azul Com Arrepio na Lua, continua, infelizmente, quentíssimo, e com um espaço cênico tão exíguo que os atores se veem obrigados a transformarem uma movimentação que deveria se passar no palco, num corre-corre sem sentido entre as portas de entrada e saída do teatro.

No entanto, o simples fato de no Teatro da Gávea estar impossibilitada uma maior mobilidade e de o palco ser tão pequeno que cinco atores mal cabem em cena, não justifica a pouca criatividade com que a direção de Ricardo D’Amorim procura solucionar tais problemas. Exemplar, nesse sentido, é o lugar atribuído em cena à cama de onde o menino Paulinho sonha com as aventuras do Pirata Vermelho e do Barão Azul. Num cenário praticamente nu não era difícil encontrar posição melhor, mas a cama é colocada no centro e na frente demais, o que acaba provocando situações constrangedoras. Como quando em algumas precárias coreografias os atores pisam nos sapatos largados no chão ou nos cobertores e chegam quase a tropeçar no menino adormecido.

Já o aproveitamento do espaço cênico do Teatro Cacilda Becker na montagem, e do Vanucci, agora, segue ramos bem diversos em Com Panos e Lendas, onde panos, roupas e objetos em constante transformação dão origem a personagens e situações diversos, e acompanham a rapidez com que se sucedem e modificam as lendas encenadas . Procura-se justamente explorar ao máximo os materiais utilizados que, mais móveis e dotados de maior imprevisibilidade, funcionam com vantagem como substitutos para um cenário fixo. Valnice Vieira e Nora Vianna, autoras do cenário e dos figurinos de Com Panos e Lendas, e a direção de Ivan Merlino e Vladimir Capella, poderiam, dessa maneira, fornecer ao Grupo Rotunda, de Barão Azul Com Arrepio na Lua, um exemplo de como a precariedade do espaço cênico pode acabar dando lugar a uma exploração mais criativa da linguagem teatral.

No caso de Barão Azul Com Arrepio na Lua, no entanto, mesmo um melhor aproveitamento do espaço teatral dificilmente supriria as deficiências do texto de Ricardo D’Amorim.

Há, de cara, o recurso à situação sempre repetida nos espetáculos infantis, da criança que está sonhando. Com isso o espectador não precisa ter medo: “Paulinho está dormindo, está sonhando, é por isso que tudo está acontecendo”. Nesse sonho o que há é o rapto de uma princesa e a luta pelo trono, colocando em confronto como sempre o rei e um possível usurpador. O resultado é previsível. E exposto claramente sob a forma de ameaça pela princesa ao Barão Azul: “O povo faz até revolução. Tira o poder do rei mau e dá para o rei bom”. Estranha revolução onde as coisas permanecem exatamente iguais, com uma mudança apenas de cunho moral, sem que o trono ou as relações de poder fiquem em momento algum ameaçados. A troca possível é apenas de um nobre para outro. Sai o rei mau e fica o bom. Mudanças bem comportadas e discutível maniqueísmo que se mesclam num texto de poucos voos e numa encenação sem muita criatividade.

O que mais uma vez diferencia o espetáculo do Teatro da Gávea de Com Panos e Lendas. Aí, um dos pontos altos está justamente no texto de José Geraldo Rocha e Vladimir Capella, premiada em São Paulo em 1978 com um Mambembe, e caracterizado por um trabalho com lendas, cantigas e brincadeiras próprias à cultura popular brasileira, cujo excelente encadeamento permite que se obtenha ótimo resultado cênico nessa montagem carioca a cargo de Ivan Merlino e Vladimir Capella. Com o belo trabalho realizado em Com Panos e Lendas acrescenta-se um terceiro personagem, o espectador, à trajetória de Carú e Rairú. Trajetória guiada inicialmente pelo pai para a descoberta, para onde tudo começa, e depois pelo filho para onde tudo acaba, para o fim do mundo. Até que, ao final, tocam-se as duas viagens, assim como o começo e o fim, o pai e o filho.