Crítica publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
Por Lucia Cerrone – Rio de Janeiro – 13.01.1996
Cidade sob o humor absurdo
Com o Rio na Barriga é o resultado de oito meses de trabalho do autor Rogério Blat e do diretor Ernesto Piccolo, realizado com seus alunos nas oficinas para atores do Teatro Calouste Gulbenkian, no Rio. Diferente de outros profissionais que optam pela pesquisa acadêmica, para construir seus textos e desenhar a concepção de seus espetáculos, Rogério e Ernesto se envolvem à exaustão com os temas escolhidos, passando a frequentar os cenários reais de suas produções, não exatamente na condição de meros espectadores, mas como membros atuantes da comunidade. O que para alguns pode parecer um exagero antiteatral, acabou se convertendo numa bem-sucedida experiência, iniciada no ano passado com a montagem de Funk-se.
Com um elenco formado por 60 atores, que reúne no mesmo palco profissionais de diferentes áreas – como um padeiro, uma advogada, uma costureira, um dentista e vários professores, além de adolescentes classe média, galera funk, e meninos de rua -, experiências bem-sucedidas – a outra é o carnaval – na trégua entre a luta de classes.
O espetáculo tem como proposta mostrar um Rio de Janeiro idealizado a partir de seus absurdos. Um jogo de contrastes que aponta com humor cruel, e às vezes propositalmente didático, os problemas da cidade e também suas possíveis soluções.
Mostrando várias histórias encadeadas, todas elas com princípio, meio e fim, Rogério Blat tem um texto com linha dramática perfeita, que deixa para o espectador a oportunidade de adivinhar o final de cada cena, para depois explicitá-la junto com o riso da plateia. O vínculo de cumplicidade é estabelecido instantaneamente.
Usando como fio condutor a figura do nordestino Severino, que migra com a família para o Rio em busca de melhor sorte, onde não encontra exatamente uma ilha de paz e tranquilidade, ouro pelas ruas e oportunidades iguais para todos, Severino, com seu desconcertante despreparo, acaba se transformando numa espécie de Forrest Gump a ser seguido pela população carioca. Se a trama principal já é bem interessante, as tramas paralelas, embora muito engraçadas, ultrapassam a condição de piadas encenadas. A turma de turistas que vem ao Rio para conhecer de perto a impunidade e a violência é levada à saída do Maracanã depois de um Vasco X Flamengo, onde eles vestem a camisa da cruz de Malta para receber a torcida do derrotado rubro-negro, é apenas uma delas. O affair da socialite com a marginalidade, a rotina sistemática de jogar lixo nas ruas, a atuação de pivetes e o esquema dos sequestradores, mostram quase que na totalidade o cotidiano da cidade maravilhosa.
A direção de Ernesto Piccolo, além de mostrar exatidão de comando para quilométrico elenco, é de rara sensibilidade ao tratar um tema tão polemico sem cair na pieguice. Assinando mais uma vez uma montagem de grande porte, Ernesto Piccolo reforça sua proposta teatral para não atores de maneira criativa, poucas vezes vista num palco.
A música de Charles Kahn é uma revelação de ritmos completamente integrada à ação. Sua estrutura dançante é o veículo ideal para as coreografias de Daniela Visco.
Com o Rio na Barriga é uma experiência teatral, obrigatória e imperdível, para adolescentes, adultos, brasileiros, estrangeiros, Incas Venezianos e quem mais chegar.
Cotação: 4 estrelas (Excelente)