Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 26.06.2019

Ordinários

Hai, a Pescadora de Sonhos. Foto: Ulisses Fontana

Hai, a Pescadora de Sonhos. Foto: Ulisses Fontana

Bubuia

Bubuia

Ex-Libris

Das Cinzas, Coração

Wendy e Peter

Wendy e Peter

Inversus

Inversus

Sobre Tomates, Tamancos e Tesouras

Sobre Tomates, Tamancos e Tesouras

Quando o circo se casa com múltiplas e mistas linguagens, a festa é de arromba!

Confira o que nosso crítico achou de 8 dos 30 espetáculos que compuseram a programação da quinta edição do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo, realizado em diversas unidades paulistanas da instituição entre os dias 03 e 13 de junho de 2019.

Ordinários

A mais tradicional palhaçaria como recurso de reflexão sobre as guerras

Faça humor, não faça guerra. Houve um tempo, nos primórdios da TV aberta no Brasil, que existia um programa humorístico com esse título na TV Globo. Guerra é um assunto que já foi bastante explorado na dramaturgia de todas as mídias pelo viés do clownesco, da palhaçaria, do patético e da bufonaria. Para citar apenas alguns e mais óbvios, temos desde Charles Chaplin até Roberto Benigni e, claro, a nossa rainha da dramaturgia infantil Ruth Rocha (Dois Idiotas Sentados Cada Qual em Seu Barril).
Aqui, em Ordinários, pudemos conferir mais uma pérola antológica dessa vertente, a cargo da veterana Cia. La Mínima (criada em 1997), que se inspirou em sua experiência com a Ong Palhaços Sem Fronteiras, que justamente atua em áreas de conflitos. Para a nobre empreitada, chamaram dois convidados fundamentais: o dramaturgo Newton Moreno para contribuir no roteiro e o diretor Álvaro Assad, um profissional muito afeito a lidar com expressão corporal e mímica. Acertos incríveis.
No elenco, Filipe Bregantim, Fernando Sampaio e Fernando Paz dão um show de talento e técnica, fazendo tipos clássicos: o ‘chefe’ valentão, o trapalhão típico e o poeta enganador. As situações que se criam entre eles, no front, têm dimensões amplas de significado, simbologias que se abrem para a vida, reproduções arquetípicas de relacionamentos vividos em estados variados de tensão e perigo. Ponto para a dramaturgia.

Além da graça construída como ferramenta de reflexão (inclusive sobre os dias atuais e com referência aos atuais decretos armamentistas), há momentos ternos e poéticos, envolvendo situações circenses, como a música ‘tirada’ de copos enfileirados. Quem resiste a esse número clássico? A iluminação é usada como aliada do humor, nas cenas que marcam a rapidez da passagem da noite para o dia. Hilariante. A cenografia, apoiada basicamente em adereços, também é marcante, com destaque para a caveira que surge do nada. Gosto muito também do que faz o tempo todo, como uma espécie de bordão, o personagem de Fernando Paz, o poeta: toda vez que o tempo ‘esquenta’ entre os três, ele finge que acabou de receber uma carta, interrompendo o clima conflitante. Uma linda referência ao poder da imaginação e da fantasia. Um personagem apaziguador, entregue de presente para um ator de sobrenome Paz.

E como não ir embora para casa pensando na fala final da peça? “Se já instalaram as minas, como querem agora evitar a guerra?”

Hai, A Pescadora de Sonhos

Um mundo de ilusionismo integrado ao fundo do mar

No quadro de programação de um vasto e diversificado festival chamado de Circos, não poderia faltar um belo espetáculo de ilusionismo aliado à dramaturgia. Números de mágica, sabe? Tipo coelhos na cartola, lembra? Pois então, não há coelhos nem cartolas, mas peixes e barcos no agradável Hai, a Pescadora de Sonhos, vindo de Barcelona, na Espanha, onde já fez muito sucesso. Foi-se o tempo em que um mágico subia no palco de capa preta, fazia seus truques apoiado em uma mesa com fundo falso e toalha comprida, recebia os aplausos e saía.

Não há como não classificar esse espetáculo assim: um desfilar encantatório de poemas visuais encenados. Há uma preocupação constante, desde o primeiro minuto até à cena final, em impactar pela beleza singela no palco, pela eloquência visual de cores, luzes e texturas. Composições plásticas de enternecer. Como o universo marítimo dá o tom, seria fácil cair em facilidades e repetições já bastante exploradas. Mas, não. Esse trabalho de Cia. Giramagic “é uma aventura poética pelo oceano da imaginação”, diz, no programa, a jovem faz-tudo Joana Rhein, que está em cena sozinha o tempo todo e ainda assina co-direção (com Miguel Crespi), concepção, ilusionismo, cenografia e figurinos. Carismática e talentosa, ela é brasileira, radicada em Barcelona.

É criativo e bonito o painel ao fundo do palco, imitando rede de pesca, com seus trançados de fios rústicos e seus tons crus ou de areia, que facilitam os jogos do bem arquitetado design de luz. O casaco usado pela atriz/mágica segue a mesma linha de cores marítimas.

É bem eficiente, repleto de bolsos amplos (afinal, o que seria de uma ilusionista sem bolsos para as trucagens?).  Os adereços todos nos remetem ao mundo do mar: botas furadas, garrafas de mandar mensagem, barcos e canoa, gaiola com pássaro dentro, conchas, caramujos. Tudo de bom gosto, ainda que sejam elementos bem conhecidos de tantas histórias que se passam no mar. É sensacional colocar uma antena em uma concha (caramujo), para virar rádio. Ou a pescadora surgir de ‘fones de ouvido’, que nada mais são do que conchinhas encaixadas nas suas orelhas. Criatividade a toda prova.

A trilha sonora ajuda demais a instaurar climas mágicos e introspectivos. Há desde composições suaves e românticas, até outras de inspiração bossanovista ou com pegada de samba. No início, uma ou mais canções têm voz incidental de criança, o que faz Joana parar uns segundos em cena, com expressão distante e contemplativa no rosto. Isso talvez sugira que a personagem, em alto mar, tenha deixado em terra alguma criança – uma camada da dramaturgia que é mais sugerida do que mostrada, e passa longe da superfície rasa.

Às vezes a gente até percebe – apenas se ficarmos muito ligados na execução das técnicas de ilusionismo – as mãos de Joana Rhein se deslocando em direções suspeitas, como os próprios bolsos, mas isso não tem a menor importância no conjunto geral do que nos é oferecido. Isso não chega a ser falha ou revelação dos artifícios. No palco do teatro, truques de circo caminham de mãos dadas com o estímulo à imaginação, de tal forma que o que eles porventura ‘revelem’ acaba por reforçar, e não enfraquecer, o jogo ilusionista. Eis a magia do teatro.
E, afinal, o que mais vale em Hai, a Pescadora de Sonhos, a meu ver, é mesmo a poesia. Ah, e uma última observação: os números com o público são ótimos, discretos, inteligentes. Ninguém sobe no palco, não é esse tipo de participação. Joana é que desce várias vezes à plateia, e pede participações leves, deliciosas, como se fossem pausas afetivas.  De quebra, ao final, como é lindo vê-la distribuindo minibarquinhos de papel às crianças. Que Joana Rhein ainda pesque muitos e muitos sonhos por sua vida afora – e nos convide sempre para estar neles.

Bubuia

Um circo de emoções e sensações para a primeira infância

Fui ver este espetáculo do Coletivo Antônia, de Brasília (DF), pela segunda vez. E gostei de novo. Bubuia foi criado na modalidade de “teatro para bebês”, essa vertente voltada para estímulos sensoriais, acreditando na máxima que diz que “poetas já nascem poetas”, ou seja, estimular poesias visuais e sonoras em bebês com tendências para a sensibilidade e a emotividade pode ser um caminho lindo de estímulo a delicadezas e afetos, mesmo que esses bebês cresçam e não virem artistas da cena. É teatro para a vida, de olho na vida, tributo ao milagre da vida.

A inspiração do Coletivo Antônia foi o conto de Guimarães Rosa, A Terceira Margem do Rio. O universo rosiano está ali traduzido em formas plásticas, remetendo mais a climas e ambiências do que a palavras e discursos. Que é o que vale nesse tipo de encenação para a primeira infância. Baldes e bacias de alumínio ganham uma força descomunal, dispostos por um caminho no chão do palco que vira a rota de um rio. Pais, mães, titios e vovós se sentam com seus rebentos, como se fosse uma população ribeirinha em harmonia com as águas e seus mistérios. As atrizes Cirila Targhettra, Kamala Ramers e Tatiana Bittar, com o auxílio luxuoso de um músico e sonoplasta, Euler Oliveira, brincam com sons guturais, onomatopeias, chiados, suspiros, engasgos, ora arrastando-se pelo chão, ora pisando nos baldes, ora dando cambalhotas inusitadas ou ainda simplesmente fazendo água jorrar pelas bacias pelo simples prazer de ouvir o som das gotas pingando no alumínio.

É essa a poesia que brota potente de Bubuia e faz os adultos se emocionarem com a leveza da proposta. Enormes balões coloridos suspensos pelas cabeças da plateia ajudam a criar uma atmosfera onírica, de luz suave e sugestão lúdica. Uma experiência e tanto. Teatro de sensações. Circo de emoções. Para a infância dos 0 aos 100.

Das Cinzas, Coração

Circo de mãos dadas com o teatro – para virar cinema

O teatro pode tudo. Ainda mais se aliado ao circo e a tantas outras linguagens artísticas mistas. O teatro pode até virar cinema. Cinema mudo ao vivo, todo em preto e branco. Assim é este agradável Das Cinzas, Coração, que veio de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, com direção de Jéferson Rachewsky, em cena ao lado de Valquíria Cardoso. Trata-se de produção compartilhada entre as companhias Quimera e Teatro Ateliê.
Muitas vezes o cinema de antigamente (Buster Keaton, Charles Chaplin) já foi homenageado no palco. Não se aplaude, portanto, aqui nenhum ineditismo, mas o talento, a criatividade e a perfeição técnica de Das Cinzas, Coração. De curta duração, menos de uma hora, a peça nos envolve com uma graça saudosista, uma ternura que vem das profundezas de nossas memórias.

Arthur de Faria, o “pianeiro” da sessão, entra pela plateia, de fraque e cartola, como nas sessões de cinema de gala dos séculos passados. Senta-se ao piano, ao canto do palco, e faz maravilhas. Tudo em cena, todas as ações, tudo mesmo acontece sincronizado com a música. Cada gesto, cada tombo, cada olhar. O pianista conduz o espetáculo, dedilhando com muita propriedade composições de autores gaúchos nascidos nos séculos 19 e 20 (ele, inclusive).

A iluminação também é fundamental e muito bem pensada. Tudo precisa estar em preto e branco, e a luz consegue com louvor! É muito perfeito. Sabe aqueles riscos que surgem na tela, quando o filme está velho, com o celuloide gasto? Pois então. Esses riscos/chuviscos de filme velho são projetados o tempo todo no palco, na roupa dos atores, nos elementos cenográficos, nos panos, em tudo. Parece mesmo que estamos vendo um filme no palco.

O enredo é feminista. Um casal na cama (cena inicial, já vista em outras peças, porém aqui está muito bem realizada – os atores ficam o tempo todo em pé e a gente acredita que estão deitados no leito nupcial), depois na cozinha, na área de serviço, enfim, vivendo momentos de intimidade do lar. Só que o marido (ótima atuação de Jéferson Rachewsky) é mandão, machista, folgado, bruto. A mulher é submissa, mas inconformada. Só ela trabalha em casa, ele apenas dá ordens e não admite bagunça. Onde já se viu? Ao final, e não há problema nenhum em dar esse spoiler, ela vai se revoltar – a última cena do espetáculo é a única em que a luz fica colorida, e vendo a peça você vai saber o motivo. Grande sacada. A ‘virada’ da esposa é importante. Ficaria esquisito reproduzir em cena o modelo de casamento retrógrado e machista, sem questioná-lo, sem condená-lo hoje em dia. Ao final, saímos com a sensação de ter visto um filme antigo atualizado. Sensacional.

Outra incrível jogada do design de luz do espetáculo é mudar a Iluminação para marcar os sonhos e desejos da mulher inconformada. É como se entrássemos dentro da cabeça dela nesses momentos de luz em movimento, para vermos suas vontades mais inconfessáveis, como matar o marido, queimá-lo, espancá-lo de raiva. As expressões da atriz Valquíria Cardoso, nesses momentos de devaneio e ódio do marido explorador, são excelentes, muito bem construídas, com expressividade nota dez. O público ri e sente empatia.

Os elementos circenses dão um toque de leveza e fazem a trama andar, disparadores de ações. Temos malabarismos na hora de fazer panqueca, temos palhaçaria feita com ajuda de uma ceroula suja, trapalhadas com vassoura, enfim, objetos corriqueiros da rotina do casal ganham vida e poder narrativo. É o teatro de mãos dadas com o circo, da forma mais sutil e harmoniosa possível, contribuindo com a dramaturgia pretendida.

A cena em que a oprimida mulher ajoelha para rezar, provavelmente pedindo uma vida melhor, é hilária, pois aparece para ela um anjo todo maluquinho. Puro clown. Palmas também para o trabalho de maquiagem do casal em cena, que remete aos anos 1920, época dos primórdios do cinema. A cenografia é ágil e funcional, em preto e branco, como já disse. A cama de casal vira o armário de cozinha com bancada, pia, fogão e tanque, em dois segundos. Sem perda de tempo. Sim, o teatro pode tudo. Parabéns aos gaúchos. Na sessão em que eu estive, São Paulo os aplaudiu com muita euforia. Como eles merecem.

Ex Libris

Grupo circense catalão coreografa os efeitos de uma boa leitura

Como resistir a um espetáculo em que o palco fica o tempo todo ocupado por livros? Sim, livros. O objeto livro. Coisa rara entre as novas gerações digitais, que agora leem tudo (se é que leem algo) em seus tablets ou mesmo nos smartphones. Como é importante cultuar o livro nos dias de hoje… E esse espetáculo circense, vindo da Espanha, Ex-Libris, faz isso do começo ao fim.

Trata-se de um agradável exemplar do casamento do circo com a dança, a cargo da Cia. Voël, criada na Catalunha, em 2017. Talvez o mais atraente da curadoria dessa edição do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo, já em sua quinta edição, seja justamente essa variedade de linguagens e gêneros, essas interfaces multidisciplinares que se acasalam lindamente com as técnicas circenses. Um espetáculo é mais teatral, outro mais coreografado, outro com ilusionismo, outro com trapézio, outro com malabares – mas tudo passa prioritariamente pelo circo. Quanta riqueza, quantas combinações possíveis.

Ex-Libris é bastante coreografado e fortemente calcado em acrobacias. Tem leveza, poesia, uma calma incomum, uma falta de pressa que até comove. Começo falando da trilha sonora, porque o músico (Marc Sastre) ao vivo com seu violão dá um show de interpretação à parte, com um incrível bom gosto musical. Às vezes canta, às vezes apenas dedilha seu violão com virtuosismo, mas tudo se encaixa perfeitamente ao que se está vendo no palco: uma viagem por meio de livros.

A cena inicial cativa as crianças logo de cara, justamente uma brincadeira gostosa de juntar o som com a ação cênica. Cada vez que o ator (Jordi Serra) abre um livro, o músico (Marc Sastre) faz um som, ou solta um grito, ou canta coisas em gromelôs, dando a ideia de que há uma música que brota de dentro de cada brochura. Lindo. Até o ato de folhear rapidamente as páginas ganha um som característico na boca do músico. A garotada entra no espetáculo por essa via infalível do lúdico. Outra brincadeira é o ator arrumando os livros como se fossem bancos de se sentar, e o outro não deixa que ele se sente. As crianças gostam desses jogos cênicos e embarcam muito na ideia de “brincar com livros”. Sim, livros existem também para que a gente brinque com eles.

O forte desse circo coreografado pelos espanhóis é a poesia visual que vai surgindo nas cenas e nos surpreendendo com encanto. Páginas soltas que voam pelo palco, chuvas de papeis, o dominó de livros encadeados, um voo da atriz ao se apoiar em um livro. Tudo é metáfora, tudo é simbólico, representando plasticamente o quanto a leitura pode ter esse poder de nos fazer voar, nos fazer nos apaixonar, nos fazer dar cambalhotas pela vida.

Achei incrível a forma escolhida para fazer a atriz (Deborah Cobos) entrar em cena pela primeira vez, depois de mais de 15 minutos de espetáculo só com a presença do ator no palco (Jordi Serra). Desde o começo, inclusive durante a entrada da plateia no espaço, os livros estão todos enfileirados como peças de dominó. É só surgir a figura feminina em cena para que todos os volumes tombem no chão, impulsionados por ela. A ideia é límpida e clara: uma representação da chegada do amor na vida de alguém. O amor, ou uma amizade forte, ou uma sintonia qualquer em ebulição, sentimentos assim, que causam frio na barriga e acontecem principalmente na passagem da infância para a adolescência. A revolução que isso provoca em nosso interior. O cara está lá, tranquilão, lendo seus livros, quando surge a menina para “bagunçar o coreto”, agitar sua rotina, desarrumar toda a “estante”. O amor tem essa força – e a cena é muito eficiente, sem ser óbvia.

Gosto demais também da forma dramatúrgica com que o número do chamado “quadrante coreano”, especialidade dessa cia., é utilizado no espetáculo. A técnica em que dois artistas sobem em uma pequena plataforma no topo de dois mastros e ali realizam estripulias com trapézios serve aqui para retratar um clima romântico de conquista amorosa. Talvez seja o momento do primeiro “namoro” entre o casalzinho. A cena começa com ela no solo, lendo seu livro. E é como se estivesse lendo um romance, pois de repente sua imaginação voa à procura de um príncipe ou herói, que está lá no alto do trapézio e a arrebata para perto dele. Ler aproxima as pessoas, enreda-nos.

Amores da literatura nos inspiram a ‘voar’ em busca de nossos próprios amores. Eis o que a cena retrata. Magnífica composição. O circo a serviço de contar uma história. Uma história ex libris, ou seja, uma história “dos livros”, da posse dos livros, com indica a expressão latina escolhida para dar título a essa festa. Aplausos de pé.

Wendy e Peter

Fisicalidade circense dá o tom nesta versão ‘materna’ de Peter Pan

Eu tinha visto este espetáculo no ano passado, no teatro do Sesc Belenzinho. Sim, dentro do teatro, no palco tradicional, na caixa preta. Agora, nesta quinta edição do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo, Wendy e Peter foi programado para o saguão do Sesc Bom Retiro, que, aliás, é um espaço muito utilizado naquela unidade e sempre de forma satisfatória e com bastante público. Parabéns para os programadores do Bom Retiro pelo acertado aproveitamento de um espaço comum e coletivo.

Portanto, foi curioso ficar observando como se daria essa transposição de um teatro tradicional para um espaço mais aberto e barulhento, ao lado do café/lanchonete da unidade, em pleno funcionamento durante todo o espetáculo. Claro, há vantagens e desvantagens nesse formato mais livre.

As vantagens passam justamente pela liberdade. No saguão do Sesc Bom Retiro, o espetáculo da Cia. Linhas Aéreas, de São Paulo, com direção de Bruno Rudolf, pôde ‘respirar’ melhor. Imagino que o grupo já tenha feito a peça em outros lugares assim menos formalizados e até a céu aberto. A atração se presta muito bem a isso, pois se trata de história bastante conhecida e não é preciso tanta atenção assim para saber o que está se passando com os personagens durante toda a trama.

Além disso, a ampla estrutura metálica circense que serve de cenografia para o espetáculo é vistosa, vultosa, intrigante. As pessoas passavam por ela no saguão, antes do início, e comentavam coisas como “Nossa, que maluquice, o que será isso?” ou “Olha, vai ter circo!” ou, ainda, “Será que vão deixar a gente também subir nisso no final?” É uma engenhoca, de fato, bastante criativa e chamativa, algo que remete muito aos parques de diversões. O grande achado do espetáculo é essa estrutura forte e potente, em torno e em cima da qual as duas atrizes e criadoras do espetáculo fazem contorcionismos, acrobacias e palhaçadas típicas dos melhores clowns.

Quanto às desvantagens, bem, um espaço alternativo nunca oferece os mesmos recursos para o design de luz, por exemplo.  A atração perde muito em iluminação, sobretudo porque tem sequências importantes de teatro de sombras, ainda que por poucos minutos. E, claro, há a natural dispersão da plateia, os ruídos, um entra-e-sai de passantes, essas coisas todas próprias de ‘teatro de rua’, mas que as atrizes Patrícia Rizzi e Ziza Brisola dão conta muito bem, conseguindo se impor com sua arte diante das adversidades comuns a esse tipo de apresentação.
No teatro de caixa preta, Wendy e Peter podia ser admirado mais pela fábula, pois tem bastante texto, bastante mesmo, e um texto lindo, bem escrito, cheio de frases de efeito e momentos poéticos. Numa apresentação em espaço aberto, algo disso tudo se perde, claro. E, curiosamente, como pude observar, a força do espetáculo se transfere totalmente para a fisicalidade, as técnicas circenses, o que, afinal, é o propósito mesmo das atrações de um festival justamente chamado de Circos.
Em minha primeira crítica ao espetáculo, eu escrevi; “O tempo que se ‘perde’ (não sei se é a melhor palavra) no sobe e desce das duas atrizes pela enorme estrutura de ferro de 4 metros de altura é algo constrangedor e muito cansativo, prejudicando demais o ritmo. Há minutos intermináveis de pura exibição das atrizes-acrobatas, interrompendo a ação para lembrar ao público que se trata de um grupo de acrobacias aéreas.” Agora, no saguão aberto, na área de circulação da unidade do Sesc, isso que eu escrevi não vale mais. É o contrário: dentro da programação do festival Circos, isso que eu chamei de “pura exibição das atrizes-acrobatas” ganha um amplo sentido. A força sai do texto e vai para o corpo, o fazer, a ação.
Faço questão também de repetir o quanto gosto do ponto de partida da peça. A fala inicial de Wendy (Ziza Brisola) é muito bem escrita e lindamente narrada pela atriz. “À noite, depois que as crianças pegam no sono, as mães costumam entrar na cabeça delas, para deixar tudo organizado para o dia seguinte.” Essa é a incrível e tocante ideia que faz a peça disparar história adentro. O empoderamento das mães. O afeto das mães. A presença das mães. É lindo de ouvir, impossível não se emocionar. Mesmo com toda a dispersão de uma apresentação tão alternativa e festiva.
Inversus

Duo acrobático feminino arrebata com força e leveza ao mesmo tempo

Que grata surpresa conhecer a Cia. Éos, criada em São Paulo em 2012, referência em números aéreos e em circo aliado à dança contemporânea. Com produção geral de Andressa Moreira, produção executiva de Bel Toledo, direção de Bruno Rudolf e Ricardo Rodrigues (convidados da Cia. Solas de Vento) e atuação de Fernanda Arruda e Daiane Aguilera, vi o espetáculo Inversus.
Epifânico, arrebatador, potente.

O nome do espetáculo sugere muito bem o que desfila aos nossos olhos. Uma loira, outra morena. Uma quer assim, a outra assado. Uma acende as lâmpadas, a outra apaga. As coreografias estimulam posições antagônicas. Climas opostos. Às vezes é força, às vezes delicadeza. E, ao mesmo tempo, há a presença constante de uma harmonia plástica acalentadora. Como diz o texto de apresentação no programa do festival Circos, “força na execução, leveza na imagem”. É isso.

Inversus quer falar dos limites entre isso e aquilo, certo de errado, sanidade e loucura. Acaba falando também – e com muita propriedade, advinda mais do sugerido do que do discurso escancarado – do tal “empoderamento” feminino. É muito mais comum – até pouco tempo era assim – ver duos acrobáticos formados por um homem e uma mulher, e dessa forma prevalecia a força masculina no movimento dos corpos em interação. Aqui, são duas mulheres acrobatas, alternando-se em poder e entrega. Seus gestos têm voz, beleza, sensualidade, firmeza, peso, forma, elasticidade, acasalamento, afeto, insinuações, propostas, verdades, contrastes.

Inacreditável quando Fernanda e Daiane giram juntas no trapézio. Quanta sincronia. O público, arrebatado, não quer mais parar de aplaudir. Os números de tecido, argola, pirâmide e solo também nos fazem voar longe, na companhia das duas silentes, mas eloquentes intérpretes. O casamento bem articulado do circo com a dança traz infindáveis possibilidades de diálogo artístico e dramaturgia cênica – é o que nos comprova a Companhia Éos, com seu Inversus. O tempo de duração do espetáculo é perfeito, nem longo nem curto. Charme adicional é, no início, o contrarregra avisar à plateia que poderemos bater palmas durante todo o tempo, se quisermos, bem como soltar exclamações de espanto e surpresa: Oh! Ah! Uau! U-huuuu! E é o que acontece, de fato, durante o tempo todo.

Para encerrar, deixei para o final mencionar a trilha sonora de Inversus, toda apoiada na obra do compositor contemporâneo Wim Mertens, belga de 66 anos. Seu som minimalista, vanguardista e experimental costuma atrair o interesse de trilheiros, incluindo o cinema, em filmes como A Barriga do Arquiteto, de Peter Greenaway, e até o brasileiro Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos, de Marcelo Masagão. Em Inversus, a trilha é de arrepiar. Uma escolha perfeita e nunca gratuita. Há todo o cuidado de alguns movimentos das duas intérpretes se casarem detalhadamente com o andamento da canção em curso, numa sincronia incrível dos acordes com os gestos. Mas não é pra ser sempre assim? Bem, há quem não consiga – e a trilha vira meramente ilustrativa e incidental. Não é o caso aqui. A tal ponto que a música se torna vital para Inversus funcionar. Corra agora para o seu ‘app de pesquisar músicas’ e ouça Wim Mertens. Você não vai se arrepender.

E vida longa para Inversus e sua Companhia Éos.

Sobre Tomates, Tamancos e Tesouras

E a palhaça, o que é? Uma grande atriz, que faz rir e chorar

Como cai bem o solo de uma palhaça – Sobre Tomates, Tamancos e Tesouras – na grade de programação de um festival chamado Circos! Acerto total da curadoria. Andréa Macera, que encarna a clown Mafalda Mafalda desde 1997, representou no palco do festival todas as inúmeras mulheres que hoje já garantem seu espaço – com muito talento – na palhaçaria, uma arte historicamente tão preenchida por homens.

Foi lindo o festival escalar Andréa Macera e, sobretudo, com um solo que ela já faz há uma década, como contou à plateia ao final. Foi a primeira direção (também é co-roteirista), dez anos atrás, na carreira da premiada Rhena de Faria, do grupo Jogando no Quintal. É quase como renovar um clássico. A atração ganha, portanto, esse peso extra de resgate. O diálogo das criações recentes com o que se fazia há uma década. Palmas para os curadores.

Sobre Tomates, Tamancos e Tesouras apoia-se em um humor macabro. Há indícios – a serem investigados pela polícia – de que uma palhaça, Mafalda Mafalda, após o fracasso de uma apresentação, usou uma tesoura para retalhar pedaços do público – mão, orelha, nariz. Com esse enredo, a apresentação vai e vem em flashbacks espertos, pertinentes, divertidos.

Não é, de forma alguma, um espetáculo obsessivamente preocupado em arrancar risada do público a cada minuto, a cada fala, a cada esquete ou cena. Não é.  Ao contrário. O humor é calculado, ‘encaixado’ no roteiro sem pressa, sem ansiedade nenhuma, provando que no solo de uma palhaça também há espaço para a melancolia, a tristeza, o silêncio, a angústia do fracasso. Alta e grande, Andréa Macera é atriz versátil e multitalentosa, conseguindo brilhar igualmente em momentos calmos, introspectivos. Há sequências bem intimistas, detalhistas, quase minimalistas em gestos e falas. Ela dá conta tanto quanto na hora da irreverência desbragada e assumida.

E, claro, a hora do humor explícito é uma delícia. Tem de tudo. Desde a mais pura e ingênua fisicalidade de picadeiro (tombos, quedas, tropeços) até a infalível graça tirada da escatologia – como quando Mafalda tira ‘caca’ do nariz e leva à boca, ou quando resgata do chão sua comida mastigada e torna a engolir. Passando até por esquetes típicos de personagens caindo de bêbados, que Andréa também sabe fazer muito bem. Riso garantido, misturado a uma ternura inevitável pela decadente figura.

Curioso observar como o espetáculo faz piada com o próprio figurino, o que considero até raro nos roteiros em geral. Há uma cena inteira em que Mafalda Mafalda apenas tenta trocar de vestido. Uma cena completinha só tirando graça disso. Muito legal. Depois, de quebra, ainda há um chiste que arremata a cena do vestido apertado, quando ela descobre que o tecido de sua “roupa de baile” é o mesmo da toalha de mesa. Bela sacada. Isso, eu diria, é que é humor feito com inteligência. O público percebe o ‘ciclo’ inteiro da construção de uma cena, que foi lentamente arquitetada para que terminasse na comparação do vestido com a toalha. Arremate perfeito.

Além de Mafalda Mafalda, Andréa Macera ainda faz outros personagens no solo. A meu ver, o que ela faz de melhor na caracterização é o delegado. Ele é divertidíssimo, no sotaque, nas tiradas, no porte físico, na bituca de cigarro no canto da boca, no bordão de berrar toda hora com um invisível assistente, de nome Moreira. Hilariante! Nas ágeis cenas de Mafalda com o delegado (são várias), a palhaça algemada sempre acaba com uma dúvida. Em seu depoimento, ela nunca consegue se decidir entre duas coisas simples. Ele a confunde, ou ela se confunde? Todas as cenas terminam assim – e essa repetição é bem eficiente como recurso dramatúrgico, como retrato de uma personalidade humanamente complexa. As dúvidas deixando pistas de uma provável loucura.

A cenografia é igualmente eficiente, com adereços de impacto, objetos que ajudam a contar a história e aumentar seu potencial macabro. Gosto muito da simplicidade tocante da cena do metrô (ou trem?). Quando ela vai viajar, um cabideiro (ou arara de roupas) entra em cena. A intérprete apenas o chacoalha sincopadamente e, pronto, já acreditamos que ela está viajando na companhia de um monte de gente (os ternos pendurados na arara). Cena muito bem feita.

Ao final, na hora dos efusivos aplausos, com a plateia de pé, Andréa Macera, muito emotiva, não resistiu e se debulhou em lágrimas, no palco do Sesc Ipiranga. Uma palhaça chorando copiosamente aos olhos de seu público. Que cena rara. Que cena linda. A grandalhona caricata, desbocada e debochada ‘despe-se’, aos olhos de todos, fragilizada, agradecida. Livra-se de sua última camada, de sua última defesa, completando o ciclo de entrega absoluta ao seu ofício. Um dos momentos mais bonitos desta quinta edição do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo.