Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 14.12.1984
Um Natal com Gnomos e Risos
São raros hoje os grupos teatrais cuja escolha de repertório esteja determinada pelo calendário das tradições comunitárias. Para uma forma de expressão que exige ensaios, montagem de cenários, confecção de figurinos, criação textual, como é o caso do teatro, não o de rua, mas o realizado em grandes salas de espetáculo fica muito difícil estar sempre “em cima do lance”.
Para que isso seja possível é preciso ou uma programação feita com extraordinária antecedência ou um sério compromisso com o risco. A segunda via parece ter sido a que permitiu a encenação de Céu Azul, um auto de Natal, por um grupo de ex-alunos de Gilda Ghilhon e Antônio Grassi em curso ministrado este ano no Teatro Gláucio Gill dentro do projeto Manhas do Cabaré.
Em 15 dias ergueram um espetáculo natalino. E, tendo em vista tanta rapidez, o resultado é mesmo surpreendente. Mas em parte explicável porque o teatro estava ali, à mão. E o interesse dos moradores do bairro pelo Natal, sobretudo no seu aspecto comercial, também estava ali, na cara. O mais interessante, no entanto, nessa representação natalina, é unir esses dois lados: a ocupação do teatro e o cotidiano de quem está fora dele, o tempo ocioso da sala de espetáculos e o calendário de festejos da cidade é de certo modo trazer para dentro de um teatro a rapidez, a agilidade e a noção de oportunidade das antigas companhias circenses e dos grupos de teatro de rua. É agilizar os contatos com quem não costuma incluir teatro no seu cotidiano e ampliar o repertório comunitário dos grupos ligados à ocupação do Gláucio Gill.
Nesse sentido, a simples tentativa de tematizar o Natal e sua rápida execução já teriam sido oportunas como exercícios para o estreitamento dos laços entre grupo teatral, teatro e moradores do bairro. Ainda mais conseguindo obter um rendimento cênico em geral bom, como acontece em Céu Azul, essa criação natalina do grupo Primor de Maravilha sob a direção de Gilda Ghilhon, em temporada no Gláucio Gill até 6 de janeiro.
Até a escolha dos protagonistas do auto foi oportuna: um grupo de gnomos à procura da Estrela do Oriente. Frágeis, engraçados e mágicos, a identificação da plateia infantil com os personagens é fácil. E dá outro colorido à trajetória em direção ao pequeno estábulo onde nasce Jesus Cristo, geralmente percorrida seguindo os passos dos três reis magos. Em Céu Azul cabe ao espectador seguir a trilha de um confuso grupo de duendes, capazes de enfrentar os mais diversos obstáculos com “fé”, palavra de ordem dos autos de Natal, assim como dos mais diversos discursos políticos pré 15 de janeiro e não é de estranhar que sirva de mote a espetáculo teatral montado agora também. E os duendes resistem ao silêncio do Velho da Montanha, à dúvida de Galileu e às trapaças de uma Vidente, três interlocutores cômicos e misteriosos que se convertem, ao final do espetáculo, nos três reis magos. Transformação que é uma das boas soluções de enredo de Céu Azul, capaz de proporcionar boas cenas e diálogos ágeis nos três encontros, assim como bons momentos de alguns atores, sobretudo Ginho Teixeira (como Galileu) e Analu Lacombe (como a vidente), e da direção musical de Isabel Brazil.
Porque, infelizmente, o rápido arremate da peça deixou muita coisa sem solução. Como os dez minutos iniciais do espetáculo, demasiado narrativos, incapazes de conquistar a atenção da plateia. Nem com o esforço inútil de Andréa Cals que cumpre a ingrata função de narrar, de recitar religiosamente a tradição bíblica. Religiosamente mesmo, porque às vezes o auto assume um certo tom de “Encontro de Jovens” versão Anos 70, certa beatitude alegre gênero Godspell que soa invariavelmente falsa. Exemplar, nesse sentido, é a postura cênica de alguns atores que parecem se sentir na obrigação de sorrir todo o tempo, saltando alegremente como se saídos da Noviça Rebelde.
Passada a semana de estreia talvez certos exageros possam ser atenuados, como esta interpretação-só-riso ou o excesso de caretas de um ator com boa expressão fisionômica como Paulinho Leão, mas tão repetida que deixa de exercer função humorística para se transformar numa máscara da qual o ator não consegue se livrar. Talvez fosse possível também demorar um pouco mais a identificação dos protagonistas como gnomos e explorar com outras cenas, além da luva enorme que os engole, sua estatura e fragilidade. De modo geral, porém, o resultado é bom. E interessante sobretudo pela retomada teatral da tradição católica brasileira, que já recebeu este ano outra versão natalina, o Mistério do Boi Surubim, de Tônio Carvalho, sem dúvida com um trabalho dramatúrgico mais elaborado. Mas, montado fora do Natal, ficou sem a possibilidade de diálogo direto com representação comunitária e a experiência mesma da festa, ao contrário do que acontece com este Céu Azul do grupo Primor de Maravilha.