Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 27.09.2019
Basta ser bom, não precisa reinventar a roda
Conheça aqui (e vá ver!) dois infantis que optaram por ser clássicos na linguagem e na estrutura e encantam do começo ao fim: Casa de Brinquedos e Fragmentos de Quintal
Quando implico com peças para crianças e jovens que parecem ter estacionado em estéticas e linguagens ultrapassadas e rançosas, o que mais me incomoda, na verdade, é a falta de talento na hora de executar essa proposta tradicional. Eu não sou contra o passado nem faço campanha para nunca mais fazerem espetáculos contando histórias de formas clássicas e utilizando recursos dramatúrgicos já muito explorados. Não é isso. Só acho que, qualquer que seja a escolha do encenador, ela precisa ser realizada com talento, bom senso e bom gosto. Estou querendo dizer que ninguém precisa ficar o tempo todo “reinventando a pólvora”. Optar pelo caminho do já estabelecido e já reconhecido também pode levar a grandes encenações, criativas e talentosas.
Falo isso a propósito de dois lindos espetáculos que vi no fim de semana passado, feito por artistas consagrados que optaram desta vez por seguir caminhos previsíveis, já bastante testados e aprovados. E acertaram em cheio, me emocionando muito do começo ao fim, sem nada de inovação, sem medo de ficar no terreno do conhecido. São eles: Casa de Brinquedos, com direção e dramaturgia de Carla Candiotto, e Fragmentos de Quintal, com a Cia. Circo de Bonecos. As duas peças me levaram às lágrimas – não só a mim, como a boa parte do público adulto. É teatro dos bons, feito para todas as idades.
Casa de Brinquedos traz a trilha do consagrado álbum de canções infantis de Toquinho e Mutinho, com clássicos como Aquarela, A Bicicleta, O Caderno, A Bailarina, A Bola, O Ursinho de Pelúcia e tantas outras. Boa ideia foi fazer Toquinho abrir a peça, no recurso de gravação em off. Já nos emociona de saída constatar essa reverência ao criador. O elenco é simplesmente incrível e irrepreensível. Cito os nomes: Adriano Tunes (Macaco), Bel Nobre (Bailarina), Caio Merseguel (Robô), Carolina Rocha (Bola), Eduardo Leão (Urso), Flávia Strongolli (Bicicleta), Gabriel Ebling (Macaco 2) e Pedro Arrais (Dudu). Todos cantam, dançam e interpretam com muito talento. Ninguém faz caricatura de nada, ninguém apela para facilidades. É pura graça e encantamento em cada personagem. Carla Candiotto comprova ser uma excelente diretora de elenco. Um conjunto harmonioso e digno de prêmios.
O que Carla comprova também em Casa de Brinquedos é o quanto sabe escrever, o quanto domina o ofício e a arte da dramaturgia para a infância. A estrutura do texto é absolutamente clássica, sem grandes volteios e peripécias, mas tudo está completamente dominado pela pena de uma grande criadora. Por exemplo, ela espertamente usa de bordões engraçados para os personagens, tipo a menina que sempre acha que vai resolver uma situação, mas na hora agá diz: “Ai, fiz xixi!” Isso causa empatia imediata nas crianças e mexe lindamente com a memória dos adultos. Outro recurso que demonstra a sabedoria da dramaturga é o uso de repetição. Alguns diálogos voltam iguaizinhos, em diferentes partes da trama. Isso é técnica a serviço da atenção das crianças, que também adoram um repeteco nas brincadeiras.
Genial é o momento em que os personagens-brinquedos vão passando o celular do protagonista de mão em mão, de orelha a orelha. Nessa hora, a dramaturga homenageia os adultos da plateia, que usavam telefone fixo e passavam trote, com frases hilariantes. É um momento da peça que nos faz ‘viajar’ pelas brincadeiras inofensivas e pueris de uma era sem volta. Mesmo ouvindo aquelas ‘pegadinhas’ pela primeira vez, as crianças também se divertem.
Carla Candiotto, assim, não reinventou o jeito de se fazer teatro infantil, mas soube escrever, dirigir, escolher elenco, mexer com o imaginário da plateia, tudo com emoção à flor da pele. O jeito como ela ‘encaixou’ cada canção na trama simples que criou é de uma eficiência exemplar. Tudo fica muito coerente e fluente. Claro, quem já conhece as canções, logo imagina que o que está dentro daquela caixa de presente (que os brinquedos só conseguem entregar ao protagonista no final) é o caderno da infância dele. A gente já imagina que seja isso, por causa da canção – e se confirma. Mas e daí? Quando a cena acontece, ela é feita com tamanha competência, que a gente se emociona do mesmo jeito, mesmo que, para alguns, seja sem surpresa.
Ah, desculpem se estou enchendo essa crítica de spoilers, mas nada vai tirar sua emoção ao assistir, garanto. Não resisto a elogiar só mais uma cena: ‘a noite caiu!’ Há um efeito de luz (Wagner Freire) e de som que faz parecer que a noite levou um tombo e literalmente caiu no palco. Incrível. A diretora faz uma interpretação literal e brincalhona da expressão ‘cai a noite’. Como é bom quando mero entretenimento e pura inteligência se casam harmoniosamente no palco. Assim é Casa de Brinquedos.
Quero também comentar sobre figurinos e cenários, de Kleber Montanheiro. A concepção dessa direção de arte combina também com a opção por não querer fazer nada além do que o mero clássico bem feito. Já vimos muitas vezes essa estrutura móvel de cenografia em que primeiramente estamos em um ambiente exterior e, em seguida, o cenário gira e os personagens passam para o interior da casa. Nada de novo no front, mas tudo feito com bom gosto e domínio espacial e estrutural. E a harmonia cromática dos figurinos é de um bom gosto extremo. Vestir uma atriz de bicicleta?!?! Repare: você não vai acreditar na sutileza do traje! Menções obrigatórias também a dois parceiros fundamentais para a boa saúde do gênero musical: o diretor de movimento e coreógrafo Fabricio Licursi, que não deixa em nenhum momento os ‘números’ de dança parecerem amadores, e o diretor musical e arranjador Daniel Tauszig, que deu novo viço às canções de Toquinho, sobretudo em Aquarela, que encerra o espetáculo como se estivéssemos ouvindo esse grande sucesso pela primeira vez. Só nos resta aplaudir… e chorar.
Fragmentos de Quintal, com a consagrada Cia. Circo de Bonecos e com roteiro, argumento e direção de Claudio Saltini, é outro acerto total e completo, sem revirar o palco de cabeça para baixo, sem a obsessão por inovar. Ao contrário, é uma atração muito delicada e lembra demais a Cia. Truks de Animação do início da carreira, quando o próprio Saltini ali estava, como um dos fundadores.
O título é ótimo, muito apropriado para o que você vai ver em cena. São fragmentos da infância de um menino em seu quintal. Nada mais do que isso, mas como fica grande na abrangência de um tema que sempre nos cala fundo! Esses fragmentos do título compõem a estrutura do espetáculo, feito de pedacinho a pedacinho, de memória a memória. Curtos blecautes separam as cenas ou as séries de cenas. Muito bonita essa estrutura do espetáculo. Promove a calma, combate a ansiedade.
A trilha também é encantadora: começa e acaba com Villa-Lobos, e não precisaria de mais nada, mas o miolo é todo recheado de canções brasileiras, um cancioneiro bem recolhido pela companhia, todo instrumental, com bons momentos da MPB lírica de raízes.
Fragmentos, da cia. Circo de Bonecos, é, portanto, mais um exemplo de “vamos fazer o que sabemos fazer, não vamos inventar a roda a cada vez”. Vamos falar de uma coisa particular para atingir o universal! Nunca será demais falar das saudades do lugar onde a gente brincava quando era criança e que, para a esmagadora maioria das pessoas, são quintais que viraram construções. Antigas áreas verdes hoje invadidas por prédios. Quantas e quantas vezes o teatro, o cinema e a literatura já falaram disso? Mas, pergunto de novo, e daí? Olha só que peça linda, olha que delicadeza, olha que assunto tocante.
A cada gesto brusco do menino-boneco, a gargalhada das crianças na plateia é uma coisa empolgante, espontânea. O que mais pode querer um artista? E olha que simplicidade de cenas: menino empinando pipa, fazendo ginástica em cima do pneu velho, brincando de esconde-esconde com uma galinha, tudo muito lindo, sem arroubos e pirotecnias. Ah, há um texto final muito bonito de um pai falando ao filho. Lá pelo finalzinho da peça, se ouve a mãe chamando o menino pelo nome, para ele voltar pra dentro de casa, tomar banho, jantar e dormir. Quantos e quantos de nós não ouvimos a mãe gritar: ‘Já pra dentro, menino!’ E é nessa hora que a gente fica sabendo o nome do garoto. E agora suportem o meu spoiler, pois, como eu já disse antes, não é uma peça de revelações, e sim de sensações, e essas não lhe serão tiradas por nada que você leia aqui antes sobre a peça.
O nome do menino é… Manoel, em homenagem a ninguém menos do que o saudoso poeta mato-grossense Manoel de Barros, um dos maiores ‘cantadores’ do tempo dos quintais. O texto final é todo tirado das coisas lindas que Manoel de Barros versejou sobre brincar. Mais uma vez a Circo de Bonecos acertou e mais uma vez precisa de uma longa temporada, precisa ir de teatro a teatro, de cidade a cidade, de festival a festival. Mesmo que felizmente os quintais e as brincadeiras ao ar livre ainda resistam por muitos lugares desse Brasilzão profundo, a poesia do espetáculo é capaz de encantar também aos que ainda vivem uma infância saudável e não foram prejudicados pela força da grana que ergue e destrói coisas belas.
Serviços
Casa de Brinquedos
Local: Teatro Shopping Frei Caneca
Endereço: Shopping Frei Caneca, Rua Frei Caneca, 569, 7º Andar – Consolação, São Paulo
Telefones: (11) 3472-2229, (11) 3472-2230 e (11) 3472-2226
Capacidade: 600 lugares
Quando: Sábados às 16h e domingo às 15h
Duração: 60 minutos
Classificação: livre
Ingressos: A partir de R$ 40,00 (meia) a R$ 80,00 (inteira)
Temporada: De 14 setembro a 27 de outubro de 2019
Fragmentos de Quintal
Local: Sesc Pinheiros – Auditório
Endereço: Rua Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo
Telefone: 11 3095-9400
Capacidade: 98 lugares
Quando: Domingos, às 15h e às 17h
Ingressos: Grátis para crianças até 12 anos. R$ 17,00 (inteira), R$ 8,50 (meia) e R$ 5,00 (credencial do SESC)
Classificação: Livre
Duração: 60 minutos
Temporada: De 15 de setembro até 20 de outubro de 2019