Critica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 27.09.2018
Múltiplos talentos em torno de uma pequena que foi grande
Veja por que suas crianças também vão gostar de descobrir a figura de Carmen Miranda
neste musical feito só por gente talentosa, em cartaz no CCBB paulistano.
A afirmação de que Carmen – A Grande Pequena Notável, em cartaz nas manhãs do CCBB-SP, é um espetáculo dito ‘infantil’ pode ser questionável. Trata-se de um musical, talvez um pocket musical, que funciona bem com as crianças, graças sobretudo a alguns detalhes espertamente trabalhados pelo diretor, cenógrafo e figurinista Kleber Montanheiro. Mas, de resto, é um musical muito bem feito e ponto. Tem-se falado muito, cada vez mais, em peças para crianças que também são para adultos. Nesse caso de Carmen, talvez seja mais apropriado dizer o contrário: há como base o jeito adulto de estruturar um espetáculo musical, que inclusive não decepcionaria se fosse exibido à noite, mas que também atinge as crianças graças a determinados cuidados.
Que detalhes são esses, voltados especificamente para o público mirim? Primeiramente, o tempo de duração da peça. O espetáculo tem toda a estrutura de um musical tradicional, mas dura menos (70 minutos, sem intervalo) – um atrativo inegável para se levar crianças ao teatro. Mas esse é até o aspecto mais óbvio. Os outros detalhes agrupam-se fundamentalmente em dois tópicos, a cenografia e a trilha sonora:
A cenografia de Montanheiro é baseada principalmente em seis letras brancas enormes, que são espalhadas pelo palco formando a palavra Carmen em primeiro lugar, mas depois misturadas e rearranjadas, resultando em outros vocábulos de acordo com as necessidades do ritmo da história que está sendo contada: mãe, mar, ar, ame e até urca (com a ajuda de um U que aparece de repente, de forma engraçada, arrancando risos da plateia). Esse foi um achado: brincar com as letras em referência clara ao período de alfabetização das crianças. Muitas dessas crianças com certeza vão se ater por um bom tempo da peça ao jogo proporcionado pelas letras do alfabeto no palco e ‘viajar’ nelas ludicamente – só isso já terá valido a pena. Sobre a cenografia, acrescente-se também o seguinte: é sempre um desafio ali, risco já conhecido pelos encenadores, o fato de as dimensões do palco do CCBB paulistano serem pequenas. Tudo naquele espaço cênico sempre parece grande demais, apertado demais. Mas Kleber Montanheiro resolveu bem: ele inacreditavelmente tirou proveito do atravancamento de itens (os instrumentos musicais, os adereços, os painéis, as letras, alguns volumosos figurinos e até a relativa ‘superpopulação’ de elenco – seis atores, três músicos e um ator-músico). E fez disso, desse amontoado, a estética do espetáculo. Foi muito inteligente. O vaivém de gente no palco o tempo todo, em meio a cenários sendo empurrados e objetos pelo caminho, remete aos bastidores dos cassinos e casas de shows em que Carmen se apresentou pelo mundo.
Quanto à incrível trilha sonora da peça (muito bem escolhida entre o vasto repertório defendido ao longo da bem-sucedida carreira de Carmen Miranda), é curioso notar o quanto aquela malícia de canções carnavalescas ‘apimentadas’ dos anos em que a cantora viveu (1909-1955) virou hoje ingenuidade adequada a peças infantis. Na verdade, isso se dá porque o ‘recorte’ musical escolhido – com direção e arranjos de Ricardo Severo – favorece propositadamente a recepção do público mirim. O fato de Carmen ter ficado famosa também por cantar de maneira vertiginosa, pronunciando as palavras em velocidades recordes, foi utilizado no espetáculo como um dos ‘ganchos’ para fisgar as crianças, associando essa característica da hábil intérprete às brincadeiras escolares de trava-línguas. De novo: muito inteligente. Em uma dessas canções, a letra até aparece inteira reproduzida no painel, para a plateia poder acompanhar extasiada a agilidade da cantora – a protagonista Amanda Acosta ‘arrasa’ na (e)missão…
O que dizer do elenco recrutado, que não seja um monte de adjetivos elogiosos? São nomes de muita tarimba, garra e talento no cenário teatral paulistano, que defendem cada momento do espetáculo com muita propriedade, cantando, dançando e interpretando com igual desenvoltura. A protagonista, Amanda Acosta, sempre impecável no que faz nos palcos, domina, mimetiza, mastiga, engole e incorpora outra personalidade da vida real, entre tantas que já defendeu em sua trajetória, demonstrando em cada gesto, em cada fraseado musical, em cada chiste verbal da irreverente figura, o quanto estudou e se preparou para o desafio.
Um segundo ‘assombro’, por assim dizer, destacando-se no primoroso elenco, é Marco França, ator-músico, músico-ator, a versatilidade em pessoa. Em tantos outros espetáculos, ele também já mostrou que “assovia e chupa cana” ao mesmo tempo, mas aqui isso fica muito evidente – e seu carisma se sobressai aliado a uma visível agilidade corporal. Ele faz um narrador potente, quase onipresente, dominador de palavras e tons, passeia por outros personagens menores, tira a cartola para vestir roupa de freirinha, canta, ilumina as canções com seus dedos no teclado, arrebata com outros instrumentos, faz rir, tira proveito de caretas caricatas bem utilizadas, emociona na fala final sobre a morte precoce da protagonista, enfim, explode em cena. Um coadjuvante de ouro, integrante de um time campeão formado ainda por nomes como Fabiano Augusto, Maria Bia, Daniela Cury, Luciana Ramanzini e Samuel de Assis – cada um deles com pelo menos um momento antológico na peça. Creditemos também, com justiça, os nomes dos três músicos que complementam esse grupo estelar: Betinho Sodré, Maurício Maas e Monique Salustiano.
E, bem, last but not least, nada disso seria possível não fosse a dramaturgia bem arquitetada pelas autoras Heloisa Seixas e Julia Romeu, responsáveis também pelo livro infantil, de mesmo nome do espetáculo, lançado em 2014. Com segurança e escapando com rigor das armadilhas da hagiografia, elas nos mostram – em tão pouco tempo – todas as Carmens, começando pela menininha sapeca da Lapa carioca, que adorava dizer palavrões, e pela jovem operária de uma fábrica de chapéus, que já cantava enquanto costurava.
Vá que é bom – bem bom.
Serviço
Local: Centro Cultural Banco do Brasil SP (CCBB-SP)
Endereço: Rua Álvares Penteado, 112, Centro, São Paulo
Telefone: (11) 3113-3651
Capacidade: 133 lugares
Quando: Sábados, às 11h
Apresentações extras: Nos feriados dos dias 12/10, 2/11, 15/11 e 25/1
Classificação: Livre
Recomendação da produção: Para crianças a partir de 5 anos
Duração: 70 minutos
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia)
Temporada: 15 de setembro a 26 de janeiro de 2019
Fotos: Leekyung Kim