Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 28.05.1977
Mais vale um pássaro voando do que dois nas mãos
“A chave que serve para trancar também serve para abrir.” Este feliz achado de Sylvia Orthof carrega tanto a essência do texto – a defesa de uma vida cada vez mais autêntica e espontânea – como também todas as implicações mágicas subentendidas na palavra – objeto. Chave.
Antes da estreia de Cantarim de Cantará, entrevistei a autora e ela disse ter reconhecido, agora, que vem escrevendo sempre a mesma peça (Viagem do Barquinho, Zé Vagão da Roda Fina e sua Mãe Leopoldina, Eu Chovo, tu Choves, ele Chove). Na realidade, a preocupação de Sylvia Orthof com seu trabalho é claramente definida: todas as suas peças questionam o conformismo, o desanimo, o falso bom comportamento que nada mais é do que uma posição psicológica de submissão: suas peças colocam em cheque as ideias tão comuns entre pais e educadores, de que as crianças devem crescer procurando ser perfeitas vencer sempre e ser fores (a emoção deve ser amplamente dominada; os afetos devem ser despistados: dessa forma, seremos úteis, práticos, produtivos. E, principalmente, não sofreremos).
Enquanto vários autores de peças infantis continuam escrevendo suas peças pregando fórmulas de vida para que a criança não seja infeliz (quanto menos sonhos, menos frustrações/vale mais um pássaro na mão do que dois voando), Sylvia procura despertar na criança o impulso de que ser feliz é possível e que ser feliz não é apenas alcançar objetivos propostos, mas viver plenamente; e perceber que a derrota existe. E não é mortal. Entretanto, se a pessoa vive exercitando todo o seu potencial, ela vai perceber que a derrota é um acidente (como qualquer vitória) e que ser feliz é ser livre para fazer e refazer, para recomeçar, para reconstruir.
Essa ideia central é desenvolvida, como proposta de espetáculo, através da obtenção de um clima de muita musicalidade, de grande beleza visual e do estabelecimento de uma linguagem poética tristemente doce. Elementos fundamentais para isso são as músicas de Maria Jacobina, a utilização do folclore musical, os cenários, adereços e figurinos, de Tato e Sylvia Orthof. Cantarim de Cantará é uma nova montagem que se mostra, a cada instante, a sensibilidade à flor da pele que existe no grupo Casa de Ensaio. Entretanto, o espetáculo deixa de se realizar mais plenamente à medida em que sua comunicação com o público se estabelece de modo impreciso. Sendo um espetáculo visualmente tão bonito, cheio de cores, com belas músicas, que fala de pássaros e de sua liberdade de voar, o que estaria criando obstáculos a uma comunicação mais profunda entre palco e plateia?
A resposta parece se encontrar na relação que se desenvolve entre o ator e o espaço. O elenco (Lina do Carmo, Lucy Montebello, Gê Menezes, Maria Jacobina, Abelardo Jacobina e Lúcia Oliveira) tem um desempenho bastante bom em nível individual. Entretanto, esse elenco não consegue, talvez por inexperiência ou ausência de orientação, uma postura que amplie e seja coerente com a linguagem proposta pelo espetáculo. Apesar dos trabalhos corretos de interpretação, falta envolvimento e comunicação, e parece-me que a solução estaria na busca da melhor utilização do espaço para as exigências desta montagem. E nisso entra o próprio som (tanto vocal como instrumentos) que não consegue preencher o espaço do teatro e acaba sendo um elemento menor, quando teria todas as possibilidades (e necessidades) de envolver toda a sala, sensibilizando a plateia em nível, mais profundo.
Cantarim de Cantará é um assumido ato de coragem. Largando de lado qualquer macete de um teatro para crianças entre aspas. Sylvia Orthof tenta fazer teatro simplesmente, sem se preocupar com uma suposta linguagem infantil. O preço pago pela ousadia (que deve ser estimulada) é uma comunicação mais difícil. Entretanto está aí uma estrada a ser percorrida. E, conforme tal estrada se torne cada vez mais conhecida há maior facilidade de se chegar ao destino. Sylvia não é uma diretora que termine seu trabalho na estreia. Sei que ela continua mexendo na montagem em função dos testes que vai fazendo com a reação do público. Tudo leva a crer que, resolvendo melhor o obstáculo da comunicação, Cantarim de Cantará caminhará largos passos na busca de um teatro infantil que transe com ávida, mas sem deixar de lado a poesia que nela existe. A pomba-rola tem uma vida difícil, de destruições e de reconstruções, de desespero e de esperança, de prisão e liberdade. Ela morre;
Mas a vida não é estática. Ela é dinâmica e se transforma. Ao final, resta um ovo. Depois de cada morte cotidiana resta sempre a vida.