Crítica publicada no Site Pecinha é a Vovozinha
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 26.09.2018
O Amor nos Tempos do Tinder
Canções para Amores Líquidos, espetáculo para adultos, fisga também o público jovem ao falar das relações descartáveis contemporâneas surgidas nos aplicativos de ‘pegação’ e sites de ‘crush’
Canções para Amores Líquidos, lotando atualmente o teatro da Cia. da Revista, não foi concebido pensando especificamente no público jovem – mas acerta em cheio na forma como retrata a juventude atual e seu jeito de namorar, ‘ficar’, casar e descasar. A peça conversa muito com os jovens, de uma maneira acertada, tornando-se assim um espetáculo capaz de atrair para o teatro uma faixa etária de público que costuma ser pouco contemplada nos palcos.
Com banda ao vivo, trata-se de uma peça musical, recheada de canções da MPB recente – sobretudo de um mesmo compositor, o incrível Marcelo Jeneci, como os sucessos de seu mais recente álbum, De Graça (O Melhor da Vida, Julieta, Só Eu Sou Eu e Tudo Bem Tanto Faz, entre outras). A integração das letras dessas canções com o que está se passando no palco é perfeita, harmoniosa, inteligente.
Achei o começo um pouco difícil, ralentado, nervoso. Como se os atores estivessem num dia tenso. É um início muito apoiado no jogo corporal, muito ‘coreografado’, bastante milimetrado pela direção de Luiz Rodrigues. Mas depois tudo flui bem melhor. O espetáculo vai crescendo, crescendo, crescendo… ao final, você já está completamente entregue a ele, ao carisma de todo o elenco, ao multifacetado jogo de cena proposto pelo diretor, aos amores e desamores de todos os personagens. Nas falas finais, quando os seis atores se perfilam e dizem várias frases relativas ao tema do amor no mundo contemporâneo, o público já está na palma da mão de cada um deles, aprovação total.
É empolgante ver um elenco jovem cheio de garra, vontade de acertar e todo dedicado a falar para os jovens e com os jovens, mas também atingindo os mais maduros, igualmente perdidos no universo de “amores líquidos” dessa contemporaneidade descartável em que todos – sem distinção – acabamos mergulhados, sobretudo com o advento das redes sociais e das paqueras virtuais, os tais ‘crushes’ digitais. São eles: Beatriz Amado, Cadu Witter, Le Allvez, Letícia Chiochetta, Marcela Gibe e Tiago Valente. O sexteto até desafina de vez em quando em algumas canções, mas quem se importa? A proposta, ao que parece, não é perseguir o canto belting da Broadway. Ao contrário, aqui, desafinar faz parte da interpretação, pois mais vale a história contada pela letra da música do que a perfeição técnica na emissão das notas. Parabéns ao diretor Luiz Rodrigues por ter incorporado ao espetáculo as imprecisões que fazem dele uma atração real, palpável e, por isso, muito digna.
A direção – e eis outro acerto – incorpora a plateia, quebra a quarta parede. Como no momento em que um dos atores diz: “Aqui é o momento em que deveria haver um intervalo, mas o diretor não quis de jeito nenhum!” A plateia é lembrada o tempo todo de que está no teatro, participando de um jogo com os atores. Para os jovens, é cativante perceber essa sinceridade, essa honestidade revelada sem escrúpulos e com essa boutade, esse bom humor. Isso fisga os jovens para o teatro, o que é muito importante, até uma missão. Há também a hora acertadíssima em que as tramas se interrompem para que um “professor” (Cadu Witter) converse com o público (como se as pessoas fossem seus alunos) sobre as ideias do pensador Zygmunt Bauman que inspiraram a dramaturgia. Uma quebra arriscada, mas feita com muita precisão e bastante cuidado. Conforme explica o diretor no programa da peça, segundo Bauman, “estamos transpondo as relações de consumo para as relações pessoais e isso é grave, pois, ao fazermos isso, ‘coisificamos’ pessoas, consumimos relacionamentos, descartamos amores. Nos jogamos fora. Nos desperdiçamos.”
Namoros rápidos podem ser verdadeiros? Todas as relações foram feitas para acabar? Perguntas como essas reverberam e doem em cada um de nós, independentemente da idade. Perguntas como essas, também explicitadas no programa da peça e apoiadas na tese da liquidez fácil das relações esvaídas pela pressa, percorrem a dramaturgia desse espetáculo o tempo todo, sem nenhum tom de autoajuda, sem cair em clichês facilitadores. Era certo que o teatro não demoraria a incorporar tramas dramatúrgicas baseadas no jeito atual de namorar: pelas redes sociais, pelos aplicativos de pegação. Mas também, justamente por ser um tema tão candente e tão presente, o risco seria grande, principalmente de ficar no raso, na superfície de um assunto ainda tão recente e, por isso, tateante e pantanoso, cheio de armadilhas e areias movediças. Cadu Witter, que assina o roteiro original, e a dupla Alexandre Martins Freire e Sergio Virgilio, que assina a dramaturgia, conseguiram a louvável proeza de produzir um texto potente, que dá o seu recado despretensiosamente, mas com compromisso, que retrata com muita propriedade aspectos atualíssimos – e ainda pouco estudados – da vida amorosa contemporânea. É o amor nos tempos do tinder. Não perca.
Serviço
Local: Teatro Cia. da Revista
Endereço: Alameda Nothmann, 1.135, Santa Cecília, São Paulo
Telefone: (11) 3791-5200
Capacidade: 80 lugares
Quando: Dias 29 e 30 de setembro de 2018 (sábado e domingo) e 05, 06 e 07 de outubro de 2018 (sexta, sábado e domingo).
Horários: Sextas e sábados às 21h, domingos às 20h. No dia 7 (dom.), haverá duas sessões, às 17h e às 20h.
Ingressos: R$ 40,00 (inteira) e R$ 20,00 (meia)