Matéria publicada no Jornal O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 26.03.1977

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Camaleão e as Batatas Mágicas: entre a festa e a falta de ordem

Fato inédito ocorreu comigo no sábado passado: cheguei ao Teatro Ipanema para assistir a peça Camaleão e as batatas Mágicas, de Maria Clara Machado, fiquei até o fim e não entendi nada. Não consegui formar a menor visão crítica do espetáculo, tal a balbúrdia, a confusão e a gritaria que caracterizaram a sessão. Duvido que dez por cento da platéia tenham entendido 30 por cento do texto.

Ao que parece tudo começou com o sucesso. Antes das quatro horas (quando começaria a sessão), o teatro já estava cheio. Como havia muita gente na rua, em fila, comprando ingresso, o espetáculo atrasou seu início. As crianças evidentemente começaram a se agitar e os pais ficando impacientes, passaram a reclamar o início da peça; Se é para fazer bagunça, as crianças estão aí mesmo: também elas começaram a gritar para a sessão ser iniciada. Entre atender as pessoas que estão quietas na fila lá fora e acalmar os agitados espectadores na platéia, a administração do teatro optou pela segunda alternativa. Com o início da peça as coisas se acalmariam ainda mais que as peças de Maria Clara Machado não tem sua estrutura calcada no estímulo à gritaria das crianças.

As coisas se acalmaram? De modo algum.

As pessoas que estavam na rua comprando ingresso ao entrar na sala de espetáculos se defrontavam com o escuro. Seus filhos começaram a berrar: – Mãe, a gente não vai sentar não? ; – Tá escuro!; – Pai, não estou enxergando nada. – Estou com medo.

O leitor que imagine a cena: na frente, os atores encenando a peça; ao fundo, diversas pessoas carregadas de crianças tentando, no escuro, achar lugar para todas. É claro que todos os comentários feitos pelas pessoas que entravam começaram a impedir que as demais ouvissem e entendessem o que os atores diziam. E, com sua movimentação, começaram a atrapalhar a visibilidade. Veio a resposta! – Silêncio! – Cala aboca! – Senta! – Psiu!

Por outro lado, quem pagou seu ingresso e está com crianças sente que aquela situação não é justa e passa a defender, também aos gritos, os seus direitos: – Paguei e quero sentar. – Manda acender a luz.- Espera, menino, tenha paciência. Já vamos sentar.

Aparece a turma da conciliação: – Olha, aqui tem dois lugares. – A fila aqui atrás está vazia.

Mas, enquanto isso, os atores continuam tentando levar a peça adiante. E ninguém está entendendo nada do que dizem. A administração do teatro, tentando resolver o problema, acende as luzes da parte de trás da platéia. Aplausos, vaias. Enfim, quando todos conseguiram se ajeitar já não havia mais clima para assistir a uma peça de teatro. O clima era de Maracanã. Era absolutamente impossível dominar a agitação das crianças. E aí, parece-me, vem o fato mais grave de todos. De repente, podia-se notar claramente que certos pais incentivavam insistentemente seus filhos aberrar. Isso, inclusive, foi muito fácil de ser observado porque eu, tendo desistido compulsoriamente de ver a peça, passei a analisar o comportamento do público.

Incrível que isso tenha acontecido numa peça de Maria Clara Machado, pois sua posição bem marcada sobre o assunto já virou até lenda: quando começava a existir muita bagunça nas suas peças, Clara ia ao palco, para o espetáculo e conversava com as crianças e com os pais dizendo que o teatro que ela fazia era um teatro para se participar com a emoção, com o envolvimento, com a atenção. Na realidade, essa “participação” aos gritos quase histéricos é uma conseqüência do trabalho que vem sendo desenvolvido há anos por grupos mal orientados e que hoje em dia, parecem ser uma minoria. Entretanto, o mal que causaram está à mostra. Grande parcela das nossas crianças acha que teatro é um lugar onde se berra e se agita. A platéia já (de) formada pelos grupos que atuam na mesma linha de trabalho do Grupo Carroussel (Roberto de Castro) já é uma platéia que sabe que teatro é zorra. Está profundamente viciada. Mas o que chama atenção é o fato de que o público de Maria Clara Machado não é o público de Roberto de Castro. E, ao invés do melhor, estar influenciando o pior, o que está acontecendo é exatamente o contrário: o público de Roberto de Castro influenciando negativamente o público de Maria Clara. As pessoas deveriam compreender que, em se tratando de teatro, existem diferenças fundamentais entre bagunça e participação: entre alegria e histeria, entre uma autêntica festa e uma absoluta falta de ordem.

Voltarei ao teatro Ipanema para tentar ver o espetáculo.